A capa da revista Veja São Paulo de 19 de maio de 2010, com a manchete “Santos, a bola da vez”, repercutia perspectiva de investimentos na cidade de cerca de 5 bilhões de reais, nos anos seguintes. Pouco menos de uma década após, a capa de 4 de setembro de 2019 da mesma publicação revelava a “decadência à beira-mar”, ressaltando problemas urbanos e frustração com promessas econômicas não realizadas.
No início da década de 2010, as perspectivas eram animadoras para a maior cidade do litoral paulista, polo da Região Metropolitana da Baixada Santista – RMBS, sede do maior porto do Brasil e de grande importância na rede urbana paulista. A expectativa de crescimento da indústria petrolífera, devido à exploração da camada pré-sal na bacia de Santos, resultou em transformações socioespaciais relevantes, com grande incremento da produção imobiliária, até a crise econômica de 2014. O mais importante investimento da Petrobras na RMBS ocorreu na área central de Santos, onde foi construída a sede da Unidade de Operações de Exploração e Produção da Bacia de Santos, inaugurada em 2014.
Mas a expectativa frustrou-se, principalmente devido ao processo de desinvestimento da Petrobras, que, desde 2016, vem reduzindo o número de funcionários na região.
Apesar do forte vínculo com São Paulo, com a qual forma historicamente o binômio indústria-porto, após os anos 1970, Santos atravessou quase três décadas de crise, devido ao desmonte do Estado desenvolvimentista. Assim, os investimentos na exploração do pré-sal animaram a economia regional, a partir de meados da década de 2000. Com sua economia historicamente lastreada no porto, na indústria pesada de Cubatão e no turismo balneário, a região antevia o pré-sal como novo ciclo de desenvolvimento.
Essa expectativa impulsionou o mercado imobiliário local, atraindo incorporadoras de fora da região, algumas com capital aberto na bolsa. O mercado imobiliário também se tornou atrativo devido às transformações regulatórias nacionais, havidas desde os anos 1990. Novas técnicas de construção de fundações profundas aliadas ao significativo aumento do potencial construtivo, resultante de alteração da legislação urbanística municipal, também contribuíram para o incremento do setor, mudando a paisagem urbana, com maior e mais dispersa verticalização. Assim, foram reforçadas antigas tendências, como a produção dirigida para demanda com rendimentos mais elevados e em parte voltada para investimentos. A produção de unidades comerciais, praticamente paralisada desde os anos 1980, foi retomada de forma intensa. Com a crise de 2014, essas unidades apresentaram elevada vacância e as incorporadoras reduziram os novos lançamentos, aumentando bastante a desocupação no setor, porém mantendo o valor de comercialização.
Por outro lado, os cinco municípios do cuore metropolitano, Santos, São Vicente, Guarujá, Cubatão e Praia Grande, possuem expressivo déficit habitacional. Assim, o lançamento do programa Minha Casa Minha Vida – MCMV, parecia a solução para provisão de habitação de interesse social. No período estudado, foram utilizados recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo – SBPE, disponibilizados pelo MCMV, juntamente com recursos do ICMS, disponibilizados pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – CDHU, para provisão habitacional de baixa renda. Inicialmente a produção do MCMV foi maior em municípios distantes do cuore metropolitano. Ao mesmo tempo, a Companhia de Habitação da Baixada Santista – Cohab ST, com atuação regional, converteu-se em viabilizadora dos projetos da CDHU e do MCMV. Mas as faixas inferiores da classe média, não atendidas pelo mercado formal, procuravam unidades em projetos de baixa renda.
Portanto, tendo como objeto o município de Santos, este trabalho busca analisar a atuação das incorporadoras, a partir do período de euforia com o pré-sal, além de avaliar a produção estatal de habitação de interesse social, realizando balanço preliminar do período de crise, evidenciando desajustes no atendimento da demanda, bem como o papel da localização em ambos os segmentos. Assim, procura-se apontar caminhos para aperfeiçoamento da política urbana local, de forma a atender a demanda por moradia em localizações adequadas, discutindo em que medida seria possível estimular, mesmo parcialmente, o atendimento dessa demanda, inclusive com mudança de uso de empreendimentos comerciais com vacância elevada.
Financeirização do mercado imobiliário e produção estatal de habitação
No Brasil, durante o século 20, a política habitacional para baixa renda nunca alcançou nível satisfatório de atendimento (1). Nos anos 1980, o Sistema Financeiro da Habitação – SFH e o Banco Nacional da Habitação – BNH haviam entrado em colapso, devido à alta dívida dos mutuários, em um quadro de distorção de seus objetivos, pois atenderam muito mais a classe média, que a baixa renda.
Como aponta Mariana Fix (2), naquela década, o mercado imobiliário brasileiro havia voltado ao sistema de preço de custo e, na década seguinte, a recessão e o confisco da poupança deixaram o SFH sem recursos do FGTS e do SBPE, seus dois pilares. Assim, foram limitados os programas federais para o setor, sendo um dos mais importantes o Habitar Brasil, criado em 1993, com empréstimos do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID.
Nesse período, Santos constituía sua política habitacional, baseada no tripé Lei das Zonas Especiais de Interesse Social – Zeis, Fundo de Incentivo a Construção de Habitação Popular – Fincohap e Conselho Municipal de Habitação – CMH. Embora a produção da Cohab-St tenha sido intensa na época, os recursos do Fincohap não foram suficientes para eliminar o déficit.
A partir da segunda metade da década, a crise econômica se agravou, em função do desemprego no Porto de Santos e na indústria de Cubatão. No mercado formal havia escassez de produção e dificuldade de acesso ao crédito, devido à desvalorização da poupança (3). A solução habitacional das média e média baixa rendas eram cooperativas organizadas por sindicatos e assessorias técnicas, com construtoras contratadas por preço fechado. Com o Plano Real, edifícios comerciais passaram a ser comercializados mais como investimento. Mas, com a crise regional, esse mercado pouco produziu em Santos.
Segundo Fix (4), o Programa de Arrendamento Residencial – PAR, criado em 2001, foi o mais importante para a faixa entre três e seis salários mínimos, em que “o arrendatário paga parcelas mensais por quinze anos e só ao final se torna proprietário, mediante o pagamento (ou financiamento) da dívida remanescente”. Assim, o governo garantia melhores custos e qualidade de construção. A condição era produzir em terrenos com infraestrutura disponível, contribuindo para reduzir vazios urbanos. Em Santos, alguns projetos da Cohab ST chegaram a ser inscritos no PAR, mas mudaram de programa (5).
Nos anos 1990, com recursos da poupança direcionados ao financiamento do déficit público e enriquecimento de instituições financeiras, a produção do SFH não foi significativa. Mas, em 1993, foram criados os Fundos de Investimentos Imobiliários – FII, na tentativa de aproximar o setor imobiliário do mercado de capitais, depois se transformando no Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI (6). Principalmente com aportes de fundos de pensão de estatais, esse novo mecanismo facilitou a desvinculação entre valor de uso e valor de troca, pois atraía mais facilmente investidores. Neste segmento, a localização do empreendimento era determinante, sempre que possível em região vetor de valorização imobiliária. Como Santos enfrentava uma crise, essa inovação não produziu efeitos naquele período.
Embora as lideranças do setor objetivassem implantar um sistema aos moldes americanos, como aponta Fix,
“Enquanto nos EUA a securitização incidiu sobre o sistema de hipotecas estruturado nos anos 1930 e que teve continuidade ao longo do século, no Brasil a extinção do BNH gerou uma interrupção no desenvolvimento do sistema de crédito” (7).
A ideia do setor era implantar dois sistemas, o SFI que captasse fundos para o mercado de capitais e outro para habitação social, com recursos do orçamento ou do FGTS.
Conforme Luciana de Oliveira Royer (8), o sistema lançou instrumentos como Certificados de Recebíveis Imobiliários – CRI, Cédulas de Crédito Imobiliário – CCI e Letras de Crédito Imobiliário – LCI, instituídas em 2004, pela Lei de Patrimônio e Afetação. Esta norma garantiu a segurança dos empreendimentos, evitando que fossem contaminados pela situação das incorporadoras, como no célebre caso da construtora Encol.
Em 1998, o Conselho Monetário Nacional – CMN autorizou a aplicação dos recursos dos fundos de pensão nesses títulos e os reconheceu como valores imobiliários, autorizando considerar títulos de companhias de securitização no cálculo da exigibilidade. Ainda que com limite para aplicação, isso permitiu a retirada de recursos do SBPE. Uma série de resoluções do CMN fez os CRI ganharem espaço, inclusive do FGTS, pois foi autorizada aquisição dos certificados pelo fundo. Assim, os CRI retiram valores das duas principais fontes de financiamento habitacional, direcionando-os para empreendimentos em que o valor de troca é mais importante que o de uso, sobretudo porque o SFI avançou mais no segmento comercial.
No início de 2003, foram criados o Ministério das Cidades e o Conselho das Cidades, atendendo reivindicação de movimentos sociais. Acertadamente, a proposta visava implantar uma política urbana, tendo o recém aprovado Estatuto da Cidade como base legal, articulando setores como habitação, saneamento e mobilidade. Pretendia-se que o mercado privado atendesse as faixas da classe média que não possuíam acesso ao mercado imobiliário, então restrito a 18,5% da população (9), aliviando, assim, a pressão deste segmento sobre a produção para baixa renda, uma das maiores distorções do BNH.
Em 2004, foi regulamentada a Alienação Fiduciária, pela Lei n. 10.931, permitindo ao credor do financiamento manter a posse do imóvel até o devedor quitar a dívida, instrumento defendido pelo mercado, por dar mais segurança jurídica e econômica, devido à notória inadimplência no setor.
Outras medidas ampliaram a disponibilidade de recursos para habitação social, dobrando o orçamento federal do setor em 2005, ano da criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, proposto por movimentos sociais. Com a criação do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, em 2007, projetos de reurbanização de favelas passaram a ser apoiados. Várias fontes de recursos foram combinadas, aumentando a destinação para a faixa até três s.m. Mas, conforme Raquel Rolnik e Kazuo Nakano (10), metade dos recursos foram direcionados para autoconstrução.
Com mais recursos, grandes incorporadoras lançaram divisões com foco no “segmento econômico”, algumas adquirindo empresas locais. Também importante foi a abertura de capital na bolsa de valores e expansão do segmento em cidades médias, como em Santos, já com expectativa do pré-sal.
Estimulado pelo crescimento econômico, o mercado imobiliário regional cresceu com vigor, principalmente em Santos e Praia Grande, que atraíram grandes incorporadoras. Conforme João Fernando Pires Meyer (11), em Santos, a produção era voltada quase inteiramente para alta e média rendas, em áreas mais atrativas como a orla marítima.
Entre 1998 e 2013, segundo a Prefeitura de Santos, foram aprovados 405 empreendimentos verticais de porte muito superior ao produzido anteriormente. Embora a mudança da legislação urbanística tenha ocorrido em 1998, a maior parte dos lançamentos ocorreu após 2005, transformando a paisagem da cidade pela verticalização dispersa, com impactos negativos para a mobilidade urbana, devido ao aumento expressivo de vagas para automóveis (12). A maioria desses empreendimentos utilizou o pré-sal como marketing, com relevante participação de incorporadoras com capital aberto, como apresentado a seguir.
Política anticíclica, pré-sal e a dinâmica imobiliária em Santos
Em 2003, havia expectativa de segmentos que lutavam pela reforma urbana com a atuação do Ministério das Cidades, que estruturou política habitacional marcada por intensa participação social. Com o PAC, projetos de reurbanização de favelas ganharam importante estímulo. Esperava-se que a solução via conjuntos habitacionais cedesse espaço para uma gama variada de projetos mais focados no valor de uso. Mas esse esforço começou a ruir com a crise política que resultou na mudança de comando do Ministério das Cidades, em julho de 2005. Esta mudança provocou inflexão das políticas urbanas, que até então eram consideradas elementos chave da questão habitacional.
Poucos anos após, como resposta à crise americana do subprime, adotou-se política econômica anticíclica, com foco no incentivo à construção civil, cujo potencial de geração de empregos era grande. Em 2009, foi lançado o programa MCMV, o maior da história no enfrentamento do imenso déficit habitacional brasileiro (13) e do modelo segregacionista de desenvolvimento, cuja elaboração foi marcada por baixo nível de participação social (14). Esse programa e as mencionadas mudanças regulatórias do mercado imobiliário dinamizaram a produção, com consequências espaciais importantes nas metrópoles.
Em Santos, no tocante ao mercado formal, entre 2007 e 2013, segundo Zarif (15), 11.844 unidades residenciais foram comercializadas, a preços maiores que 13 mil reais por m² para unidades compactas e superiores a 9 mil reais para unidades com dois dormitórios, concentradas em bairros da orla. Segundo Santos (16), foram produzidos 4.234.461 m² na área correspondente à Zona da Orla – ZO e parte da Zona Intermediária – ZI, contra 840.454 m² na Zona Noroeste – ZN delimitadas pela Lei Complementar n. 1.006, de 16 de julho de 2018, Lei de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo na Área Insular do Município. A Zona Noroeste, com predominância de população de baixa renda, foi pouco afetada pela produção no período, ainda que pela primeira vez tenha sido objeto de lançamentos verticais com elevadores.
No entanto, a área central, que perde população desde o início do século 20 e concentra grande percentual dos postos de trabalho da cidade, com maioria da população vivendo em cortiços, teve produção pífia. Em função da instalação da Unidade de Operações da Petrobras, a área recebeu dois investimentos de grandes incorporadoras, Cyrela e Odebrecht, respectivamente, um edifício comercial e um hotel, colaborando com a formação de uma nova imagem para a área, embora sua degradação permaneça.
No início da década atual, tendo o pré-sal como marketing, houve notável crescimento do segmento comercial, pouco ativo desde os anos 1980, resultando em grande vacância nos anos seguintes (17). Em 2014, a carteira da Real Consultoria Imobiliária, líder do mercado local, tinha vinte empreendimentos.
Entre 2011 e 2014, foram lançadas 3.253 unidades comerciais em Santos (18), mas apenas 2.312 foram vendidas. No lançamento, as salas comerciais se valorizaram e o preço do metro quadrado chegou a 9 mil reais, recuando para 6.500 reais, em 2015.
Desde 2014, houve crescimento dos “distratos” de contratos de aquisição de imóveis. Segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, o cancelamento de compras na planta cresceu 10,7%, em 2015, em relação ao ano anterior, resultando na redução de lançamentos imobiliários. Mas, em Santos, o valor dos imóveis não caiu, conforme pesquisa do Secovi (19), continuando acima das possibilidades de famílias de baixa ou média rendas.
Segundo o Censo Demográfico de 2010, a taxa anual de migração de Santos permanecia negativa, embora tivesse passado de -5,26 para -3,22, por mil habitantes, e a taxa de fecundidade total era reduzida, tendo declinado de 1,6 para 1,3 filhos por mulher, no decênio. Em 2010, o rendimento domiciliar per capita, no município, era de R$ 1.682,00, bem abaixo da renda mínima para obtenção de financiamento no mercado imobiliário, incrementando a migração para municípios como Praia Grande e São Vicente (20).
Assim, pode-se afirmar que o pré-sal impulsionou o mercado imobiliário antes da crise, mas não reverteu a segregação socioespacial no polo regional, que concentrava cerca de 50% dos empregos, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (2010). E não houve redução dos efeitos deletérios da migração na mobilidade regional, pois grande parte dos trabalhadores deslocados para outros municípios do cuore metropolitano ainda trabalhava no polo (21).
A figura “’Divisão da Zona Leste e área central de Santos em “zonas nobres’” apresenta o “zoneamento” adotado pela Real Imóveis, demarcando territórios assumidamente segregados em “zonas nobres”, próximas à orla marítima e na área central onde se localiza a sede da Petrobras.
Ao considerar como “zonas nobres” áreas degradadas do centro, reforçou-se a valorização imobiliária da área, tornando ainda mais difícil a construção de política municipal de repovoamento da área, no período em que a Prefeitura tentava implementar o programa “Alegra Centro Habitação”, com objetivo de reabilitar cortiços.
Segundo dados da Prefeitura de Santos, o quadro “Empreendimentos comerciais verticais lançados em Santos (2010/2014)” e a figura “Localização de empreendimentos imobiliários residenciais lançados entre 2012 e junho de 2019, Santos/SP” apresentam a localização dos lançamentos residenciais e comerciais de empresas com capital aberto, no período de euforia do pré-sal, predominantemente nas ditas “zonas nobres”. Verifica-se concentração da produção na orla marítima, opção preferencial do mercado local, desde o início do processo de verticalização, no final dos anos 1940. Embora empresas com capital aberto e empresas locais tenham se utilizado da mesma lógica locacional, há exceções como os lançamentos da PDG, nos bairros Vila Belmiro e Vila Mathias, assim como da Rossi e da Trisul, no Castelo, na Zona Noroeste. Apesar de mais acessíveis a extratos de renda inferior de classe média, esses empreendimentos pouco contribuíram para atender à demanda por moradias de média e baixa rendas. Embora o programa MCMV pudesse ter suprido esta lacuna, seus condicionantes não o permitiram, como será verificado a seguir.
Na figura “Localização de empreendimentos imobiliários residenciais lançados entre 2012 e junho de 2019, Santos SP”, segundo estudo do Secovi, entre 2012 e junho de 2019, são incluídos lançamentos residenciais das empresas locais, que também utilizaram o pré-sal como marketing. Em ambos os casos, observa-se que a lógica locacional foi a mesma, privilegiando as Zonas Intermediária e da Orla.
Na mesma figura, observa-se ainda que a maior parte dos lançamentos ocorreu no início do período estudado, quando a euforia do pré-sal estava presente. Conforme Secovi (22), em Santos, em 2019, houve recuperação de 5,4% com relação a 2018, nas vendas das unidades, que ainda não é possível considerar como tendência.
Porém, no período estudado, lançamentos e vendas sofreram grande queda, mas os valores apenas pararam de subir. Por outro lado, Praia Grande, município do sul do cuore metropolitano, passou a liderar os lançamentos residenciais, entre junho de 2016 e de 2018, com 56,7% do total de lançamentos dos municípios do cuore, com valores das unidades abaixo da média dos quatro municípios pesquisados. Enquanto isso, Santos praticou valores 43,5% superiores à média. Portanto, há um descompasso espacial relevante, pois no município que mais oferece serviços e postos de trabalho, o valor das unidades é, em média, muito superior e a oferta declinou.
A produção do programa Minha Casa Minha Vida na RMBS
Raquel Rolnik (23) identificou pontos comuns entre o “boom” imobiliário iniciado na década passada e a retomada da produção maciça de HIS no mesmo decênio, descrevendo a gênese do programa MCMV e ressaltando a falta de participação dos movimentos sociais e do próprio Ministério das Cidades em sua concepção. Segundo a autora, incorporadoras financeirizadas teriam lucrado e se salvado da crise de 2008, com o lançamento da primeira versão do programa, mas depois nele deixaram de atuar. Rolnik destacou, ainda, como o papel do poder local limitou-se a fazer rodar o programa, apenas indicando a demanda, como ocorreu em Santos.
A autora ressaltou o esforço para reduzir a margem dos projetos a 15%, bem abaixo do mercado, com adoção de métodos construtivos e programas arquitetônicos enxutos, mas principalmente com aquisição de terrenos mais baratos em localizações periféricas.
Maria Beatriz Cruz Rufino et al (24) explicam o fracasso do MCMV, em Santos, onde, além da notória valorização da terra, o alto custo das fundações, em face da composição do solo, torna a construção mais cara (25), limitando a possibilidade de produção, onde há maior oferta regional de postos de trabalho.
Conforme esta fonte (26), “considerando as duas etapas do programa, foram construídos 52 empreendimentos, totalizando 5.581 unidades habitacionais", na RMBS. Na comparação com as regiões metropolitanas de São Paulo – RMSP e Campinas – RMC, a produção na RMBS foi a menor, em face do total de domicílios existentes: 0,64% contra 1,52% da RMSP e 4,75% da RMC. Comparando com o déficit habitacional (Fundação João Pinheiro), com dados do Censo Demográfico 2010, o estudo apontou que a RMBS atingiu 6,4% do déficit estimado para a população de até três s.m., com a produção de unidades da Faixa 1. Indica desempenho pouco melhor que a RMSP (5,9%), mas muito distante do total do estado de São Paulo (12,7%), e principalmente da RMC (34,7%) (27).
O estudo atribui o baixo desempenho a altos percentuais de moradias de veraneio na RMBS, “que disputam os melhores terrenos e aumentam o valor da terra; e a grande quantidade de áreas de preservação, que restringe e impede a expansão urbana para áreas mais distantes ou ambientalmente sensíveis” (28). Mas, em Santos, o custo da terra e das fundações têm mais peso no fracasso do programa.
Foi relevante o descompasso entre déficit e produção, pois em municípios centrais como Cubatão e Guarujá, o número de unidades da Faixa 1 do MCMV foi menor ou inexistente, enquanto o programa teve relevante produção em Peruíbe e Itanhaém, municípios afastados do polo e com déficit menor.
Portanto, houve desajuste entre oferta e demanda, com repercussões espaciais negativas, com reforço ao crescimento de municípios distantes do polo da RMBS, onde empresas que aderiram ao programa encontraram melhores condições para garantir a margem. Segundo o estudo (29), as empresas que produziram nessas localizações focaram as famílias de menor renda, cujas unidades são quase inteiramente subsidiadas, mas embora seja um aspecto bastante louvável, a produção habitacional para a Faixa 1 ser predominante, ela se tornou, sob condições de produção especificas, um rentável negócio imobiliário.
A mesma fonte (30) aponta que, na RMBS, a meta do MCMV não foi atingida, e que foram construtoras locais que aderiram ao programa, sem ter havido atratividade para empresas de capital aberto, como em outras regiões. Uma única construtora foi responsável pela construção de cerca de 60% das unidades destinadas à Faixa 1, na região. Segundo a empresa, isso se explica pela rapidez e garantia do recurso, diferente do ocorrido com a Faixa 2, em que não há demanda pré-definida e geralmente exige financiamento. Mas para que a produção nesta faixa ocorra, é necessário trabalhar com margens estreias, com projetos em grande escala, caracterizados por monofuncionalidade e resultado urbanístico ruim.
A produção do programa em Santos (31), foi reduzida e afastada das áreas com maior empregabilidade, como o Tancredo Neves III, localizado em São Vicente e promovido pela Cohab ST para atender demanda deste município e de Santos. Este projeto inicialmente foi incluído no PAC, com aportes estaduais.
Em Santos, outros empreendimentos atendem às Faixas 2 e 3, com financiamento. O total de unidades produzidas, mesmo somadas ao empreendimento da Cohab ST, está muito aquém das 16.876 unidades necessárias para eliminar o déficit quantitativo estimado no cenário de menor crescimento populacional (32). Ainda assim, a política urbana do Município não promoveu condições adequadas para tornar mais atrativa a produção residencial para rendas mais baixas em áreas centrais.
O principal instrumento da política urbana de Santos, a Lei de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo na Área Insular (33), manteve baixa atratividade para a produção de empreendimentos residenciais para faixas de renda inferior. Para os extratos inferiores da classe média, não funcionou até o momento o estímulo previsto no Plano Diretor (34), para empreendimentos de Habitação de Mercado Popular. Para baixa renda, as alternativas seguem sendo o MCMV, com todos os obstáculos já apontados e atendimento reduzido para a Faixa 1, assim como parcerias com o Estado, em áreas de Zeis cedidas gratuitamente pela União, como ocorre desde a década de 1990. Mas, nos últimos anos, o desmonte da política habitacional nacional para baixa renda tem gerado dificuldade, mesmo em áreas já cedidas. Inclusive a União está retomando três áreas cedidas gratuitamente à Prefeitura para produção de HIS, localizadas em Zeis, na área central de Santos, por não cumprimento do prazo para construir.
Recentemente foi regulamentado o instrumento do Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios, porém desvinculado de política mais abrangente integrada à política habitacional (35).
Na realidade, o pré-sal contribuiu para ampliar a valorização da terra nas centralidades. Mas embora a euforia tenha passado e os valores de mercado tenham se estabilizado, a produção de HIS segue dependente da ação estatal, em xeque pelo receituário neoliberal. Portanto, são reduzidas as perspectivas de reversão da segregação socioespacial no polo regional.
Neste quadro, a vacância das unidades comerciais, que pode se agravar pela pandemia de Covid-19, poderia ser oportunidade para construção de política de estímulo à mudança dos empreendimentos para uso residencial, pois os lançamentos comerciais estão na mais importante centralidade da região.
Conclusão
A ampliação da produção imobiliária, em Santos, a partir da década de 2000, foi viabilizada por alterações da regulamentação do setor e pelo crescimento econômico, em nível nacional, aliados à ampliação do potencial construtivo, garantida pela mudança da legislação urbanística, em 1998. Nesse contexto, o pré-sal foi utilizado como marketing, alavancando vendas e estimulando o segmento comercial, que há muito não produzia localmente, mas cuja produção foi seguida de grande vacância.
O ingresso de incorporadoras de fora, com capital aberto, foi estimulado pela busca de novos vetores de investimento, reforçando antigas tendências do mercado local, como a concentração dos lançamentos em áreas próximas da orla marítima. Mas com a crise econômica, essas empresas abandonaram o mercado local, que teve o número de lançamentos reduzido, embora os valores das unidades tenham se estabilizado.
No início de 2003 a política habitacional se articulou com políticas urbanas mais inclusivas. Mas a resposta do governo à crise do final da década de 2000 foi o lançamento do MCMV, no qual a questão da localização também foi determinante, porém de forma oposta ao mercado, induzindo a produção periférica. A despeito da maior concentração de empregos na cidade de Santos, o programa pouco produziu e mais recentemente tem focado em suas faixas superiores de renda. Assim, a produção de HIS no município ficou limitada a algumas parcerias com os demais entes federativos.
Neste quadro, a elevada vacância comercial poderia ser utilizada para implantação de política de incentivo à mudança dos empreendimentos comerciais para uso residencial, focando faixas de renda mais baixas, não atendidas pelo mercado. A localização desses empreendimentos os torna estratégicos para o aprimoramento da política habitacional do município. Também é fundamental a reorientação da política urbana, para fixação da população de baixa renda na área central.
notas
1
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo, Estação Liberdade, 1998.
2
FIX, Mariana. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil. 2011. Tese de doutorado. Campinas, IE Unicamp, 2011.
3
Idem, ibidem.
4
Idem, ibidem, p. 124.
5
PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTOS. Plano Local de Habitação de Interesse Social. Santos, Prefeitura Municipal de Santos, 2009.
6
FIX, Mariana. Op. cit.
7
Idem, ibidem, p. 128.
8
ROYER, Luciana de Oliveira. Financeirização da política habitacional: limites e perspectivas. 2009. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2009.
9
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Renda e déficit habitacional, 2000.
10
ROLNIK, Raquel; NAKANO, Kazuo. As armadilhas do pacote habitacional. Le Monde Diplomatique. São Paulo, 5 mar. 2009 <https://bit.ly/3hfp0Ru>.
11
MEYER, João Fernando Pires. Demanda residencial – adequação da análise de mercado imobiliário – o caso de São Paulo. 2008. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2008.
12
O setor passou a produzir torres com embasamento com pavimentos destinados a vagas de automóveis, permitido pela mudança da legislação, em 1998.
13
Segundo dados da Caixa Econômica Federal (2019), o MCMV superou 5,5 milhões unidades construídas, contra 4,5 milhões em 22 anos de existência do BNH.
14
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo, Boitempo, 2015.
15
SOMEI IMÓVEIS apud ZARIF, Robert Michel. Estudo do Mercado Imobiliário da Baixada Santista. São Paulo, Robert Michel Zarif Assessoria Econômica Ltda., 2013.
16
PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTOS. Diagnóstico do Plano Diretor de Santos. Santos, Prefeitura Municipal de Santos, 2013.
17
“Mesmo antes da pandemia de Covid-19, a vacância da cidade configurava-se como alta”. SANTOS, Juicy. Locação Comercial e Covid-19 em Santos, Santos, jun. 2020, p. 3 <https://bit.ly/3w8JC3g>.
18
REIS, Lucas. Crise da Petrobras cria ressaca do pré-sal e congela prédios em Santos. Folha de São Paulo, Caderno Mercado, São Paulo, 5 abr. 2015 <https://bit.ly/2Ubxv8c>.
19
SINDICATO DAS EMPRESAS DE COMPRA, VENDA, LOCAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO DE IMÓVEIS RESIDENCIAIS E COMERCIAIS DE SÃO PAULO. Baixada Santista – Guarujá, Praia Grande, Santos e São Vicente – Economia e Demanda, principais indicadores. São Paulo, Secovi SP, 2019.
20
Dinâmica identificada em FARIAS, Luiz Antonio Chaves de. Mobilidade populacional e produção do espaço urbano na Baixada Santista: um olhar sociodemográfico sobre sua trajetória nos últimos 20 anos. Tese de doutorado. Campinas, IFCH Unicamp, 2018.
21
EMPRESA METROPOLITANA DE TRANSPORTES URBANOS. Pesquisa Origem e Destino da Baixada Santista. São Bernardo do Campo, EMTU, 2012.
22
Idem, ibidem, p. 14.
23
ROLNIK, Raquel. Op. cit.
24
RUFINO, Maria Beatriz Cruz et al. A produção do Programa PMCMV na Baixada Santista: habitação de interesse social ou negócio imobiliário? In AMORE, Caio Santo; SUIMBO, Lúcia Zanin; RUFINO; Maria Beatriz Cruz (org.). Minha casa... e a cidade? Avaliação do programa minha casa minha vida em seis estados brasileiros. Rio de Janeiro, Letra Capital, 2015.
25
Até 2018, em Santos, o valor máximo financiado pelo MCMV, faixa 1,5 a 2, era de R$ 90 mil. Como o custo da unidade era de R$ 120 mil, a COHAB-St recebia subsídio de R$ 30 mil da CDHU, para completar o custo da unidade, não incluído o do terreno.
26
RUFINO, Maria Beatriz Cruz et al. Op. cit., p. 112.
27
Idem, ibidem.
28
idem, ibidem, p. 112-113.
29
Idem, ibidem, p. 117.
30
Idem, ibidem.
31
Em Santos, a demanda a ser atendida nas faixas 1,5 e 2 é estabelecida por um Termo de Compromisso, elaborado por empreendimento, de modo geral, a partir do momento em que as unidades são anunciadas e ofertadas, de acordo com ordem preferencial definida pelo Município.
32
PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTOS. Plano Municipal de Habitação de Santos. Santos, Prefeitura Municipal de Santos, 2009.
33
CÂMARA MUNICIPAL DE SANTOS. Lei Complementar n. 1.006, de 16 de julho de 2018. Lei de Uso e da Ocupação do Solo na Área Insular do Município. Santos, Diário Oficial, 17 jul. 2018.
34
CÂMARA MUNICIPAL DE SANTOS. Lei Complementar n. 1.005, de 16 de julho de 2018. Plano Diretor de Desenvolvimento e Expansão Urbana do Município. Santos, Diário Oficial, 17 jul. 2018.
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Decreto n. 8.455, de 20 de maio de 2019.
sobre os autores
José Marques Carriço é doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo e professor pesquisador da Universidade Católica de Santos.
Clarissa Duarte de Castro Souza é doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo e professora pesquisadora da Universidade Católica de Santos.
Renata Sioufi Fagundes dos Santos é mestre em Direito Ambiental e Internacional pela Universidade Católica de Santos.