Introdução
A Região Serrana do Rio de Janeiro é marcada por desastres ambientais, decorrentes de deslizamentos nos morros e encostas com perdas humanas, materiais e ambientais: os riscos e ameaças decorrentes da mudança climática são intensificados devido à forma de ocupação e antropização de áreas de proteção ambiental e de proteção permanente. Por outro lado, paradoxalmente, a pesquisa revelou também a existência de vazios urbanos infraestruturados em regiões centrais que poderiam ser adensados com os instrumentos de qualificação urbana e ambiental, através de cenários gradativos ao longo do tempo e receber a população que ainda habita as áreas de risco. Assim, o artigo apresenta indicações para a construção e aprimoramento de políticas públicas urbanas e ambientais baseadas em evidências para cidades com territórios geologicamente vulneráveis.
O Brasil é um país marcado por profundas desigualdades sociais e ambientais que se revelam no uso do território. Essa realidade perversa está refletida na configuração e estrutura das cidades brasileiras em diferentes escalas e contextos, inclusive na ocupação de áreas ambientalmente frágeis que acarretam riscos a uma população vulnerável. Carlos Leite e parceiros destacam, entretanto, que essa realidade perversa que exacerba as diferenças não é somente fruto da falta de planos e de projetos mas antes, da implementação equivocada de políticas que não priorizam os processos de inclusão social e ambiental (1).
Em função da mudança climática, fenômeno de escala global e que tem desdobramentos no clima local e regional, os eventos extremos do clima serão cada vez mais frequentes, este fato aumenta e potencializa os riscos de comunidades que vivem em áreas suscetíveis ao risco de deslizamento, inundação, enxurrada, entre outros. Logo, os gestores públicos – em especial dos municípios suscetíveis à ocorrência de desastres decorrentes de movimentos de massa - deverão implementar soluções que possibilitem a proteção destas comunidades e evitem desastres, mortes e perdas patrimoniais. Mas, quais seriam as soluções possíveis?
Analisou-se os vazios urbanos centrais como espaços de oportunidade para requalificação urbana, adensamento populacional qualificado e absorção da população residente nas áreas de risco, utilizando como estudo de caso a cidade de Nova Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro (RJ). A metodologia da pesquisa envolveu ensaios de morfologia urbana construindo cenários de adensamento gradativo das áreas melhor infraestruturadas da cidade de 2015 à 2050. Os resultados apontam que é possível promover a absorção qualificada do crescimento populacional estimado e da população que ainda habita as áreas de risco de deslizamento no município nestes vazios urbanos. A pesquisa aplicada aponta novas diretrizes, estratégias e instrumentos de políticas públicas que podem alimentar um futuro e urgente Plano de Ação Climática e a revisão do Plano Diretor municipal de modo a integrar e territorializar políticas públicas.
A ocupação de áreas de risco no Brasil e o planejamento urbano municipal
O agravamento contínuo da disparidade social no Brasil tem causado graves consequências em diferentes âmbitos, inclusive na construção das cidades. Apesar dos avanços técnico-científicos e a geração de riquezas terem alçados novos patamares no último século, os benefícios destes avanços não alcançam a todos os cidadãos de forma igualitária. As novas formas de financiamento para a produção imobiliária se tornaram um ativo financeiro, deste modo, a produção da cidade passou a priorizar as lógicas de mercado em detrimento de sua função social.
A especulação imobiliária e financeirização da cidade gera espaços vazios, residuais, em áreas centrais e infraestruturadas nos quais a rentabilidade financeira supera sua finalidade funcional. Por outro lado, uma parcela expressiva da população vive em áreas precárias, sem acesso a oportunidades de emprego e serviços sociais essenciais, resultado do aumento do valor da terra nos centros urbanos e a falta de efetividade de políticas habitacionais. Logo, a superfície da cidade é negada à determinados grupos e destinada a outros, formando um estoque especulativo de riqueza (2).
Como resultado deste processo, há um movimento de espraiamento das cidades pelas bordas protegidas que se configuram sobretudo em assentamentos precários e/ou loteamentos irregulares sem acesso à infraestrutura, gerando situações de exposição ao risco, e estabelecendo forte relação entre degradação ambiental e vulnerabilidade social (3).
O processo de espraiamento urbano somado à falta ou ineficácia de políticas públicas resulta muitas vezes na ocupação de áreas de risco, como encostas e áreas ambientalmente frágeis. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (4), área de risco é toda área suscetível a fenômenos naturais e/ou induzidos que acarretem efeitos danosos à integridade física e/ou perdas patrimoniais e materiais a população que ali habita. A ocupação destas áreas resulta em um elevado número de óbitos em território nacional.
Os desastres associados a movimentos de massa (escorregamentos, fluxo de detritos, queda de blocos etc.) são responsáveis por um grande número de vítimas fatais no país, tendo sido registrados 3.237 óbitos, entre 1998 e 2011, de acordo com dados do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo – IPT. Assim, há uma complementaridade entre o planejamento urbano e a redução dos riscos de desastres, pois a localização da população em áreas suscetíveis é fator deflagrador dos riscos, em especial os decorrentes de movimentos de massa (5).
Os desastres decorrentes da ocupação de áreas de risco, sobretudo na década de 2010, culminaram na criação de leis que visam a prevenção e redução de riscos de desastres, em especial a Lei Federal n. 12.608, de 2012, que dispõe sobre as diretrizes e os objetivos da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil. Este marco legal é importante, pois define que gestores públicos, de diferentes instâncias, devem adotar ações que visem reduzir e prevenir os riscos de desastres, e não apenas adotar ações emergenciais após a ocorrência.
Além da Lei Federal, surgiram algumas iniciativas com vistas à gestão de riscos no país. Uma delas foi a parceria com o governo do Japão por meio da Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA) e do extinto Ministério das Cidades que deu apoio a municípios brasileiros afetados por desastres naturais (6). O convênio teve duração de quatro anos (2013 a 2017), e conferiu aos municípios seis manuais de respostas a riscos e ameaças.
Os Manuais técnicos recomendam a criação de uma legislação urbanística e edilícia atualizada para que a Administração Pública exerça o controle e a fiscalização do uso do solo urbano e alerta que as normas como a Lei de Parcelamento do Solo Urbano e a Lei de Uso e Ocupação do Solo Urbano sejam transversalizadas com os conceitos de riscos de desastres apontando áreas que podem ser ocupadas ou não. Cabe à legislação urbanística regular as áreas de restrição à urbanização por estarem sujeitas às ameaças decorrentes de eventos extremos. A importância dessa abordagem acerca da legislação urbanística é clara: é preciso conhecimento pleno e atualizado para gerir o território de acordo com suas demandas.
Mudança climática e áreas de risco
A mudança climática tem uma concepção nefasta: os fatores que levam ao aumento da temperatura ocorrem de maneira não equânime no globo, impactando sobremaneira as cidades (7). No mesmo ritmo, quem tem que lidar e solucionar de maneira mais direta e imediata com as consequências decorrentes do aumento da temperatura são os governos locais. A mesma lógica pode ser pensada para as populações mais vulneráveis. São elas que menos consomem energia, são as que menos produzem resíduos, ou seja, são as que menos impactam o meio ambiente por emissão de gases de efeito estufa, no entanto, são as que mais sofrem com os impactos advindos das alterações de temperatura no globo terrestre (8).
Populações residentes em áreas de risco, como as inúmeras áreas de aglomerados subnormais encontradas em maioria nas grandes cidades brasileiras, mas não exclusivamente, são as mais vulneráveis às ameaças decorrentes de chuvas intensas, como deslizamentos e alagamentos. Soma-se a esses fatores o desconforto térmico devido ao aumento de temperatura. Esta questão global aterrissa no território trazendo consequências cujas respostas batem às portas do poder público local, já que acarretam prejuízos humanos (demandas na área da saúde) e prejuízos financeiros (recolocação de infraestrutura, produção/aluguel social de moradia para a população atingida).
Os pontos levantados se potencializam quando a pesquisa coloca uma lupa sobre os territórios geologicamente vulneráveis como a Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, composta por Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, palco da maior catástrofe ambiental ocorrida no Brasil segundo o Anuário de Desastres do Brasil (9). Para estas cidades os riscos e ameaças decorrentes da mudança climática são intensificados ainda devido à forma de ocupação e antropização de áreas de proteção ambiental e de proteção permanente. Portanto, o planejamento urbano torna-se ainda mais essencial nesse contexto.
Esforços vêm sendo envidados pela municipalidade de Nova Friburgo no sentido de mitigar as ocorrências desses desastres, mais detidamente por meio do Plano Municipal de Redução de Riscos (10), que conta com plano de redução e de contingência de desastres.
É necessário destacar, entretanto, que as medidas de adaptação no âmbito municipal estão, ao que aparenta, sendo tomadas de forma dissociada da mudança climática. Nova Friburgo não conta com um plano de adaptação formulado com base em diagnósticos recentes de riscos e vulnerabilidades georreferenciadas com base na ocupação e uso do solo para o incremento da capacidade de respostas aos extremos climáticos decorrentes do aumento da temperatura global, tornando a resposta muito mais reativa do que propositiva, posto que carece das lentes da mudança do clima. Os eventos extremos ainda são tratados no âmbito da Defesa Civil, ainda que pese a excelência dos serviços prestados por este órgão, a atuação de caráter de urgência decorrente da concentração de expectativas nesses órgãos poderia ser mitigada se um planejamento urbano efetivo e integrado, considerando os fenômenos advindos da mudança climática fosse posto em prática.
Nesse sentido, torna-se urgente pensar em estratégias propositivas no âmbito do planejamento da cidade, tendo em vista a adaptação a mudança climática, bem como a proteção de comunidades vulneráveis que habitam áreas suscetíveis a fenômenos que colocam em risco sua integridade física e material (11).
Os vazios urbanos infraestruturados como oportunidade de adensamento e absorção de população em área de risco
O espraiamento urbano ocorre concomitantemente com a transformação das regiões centrais. Há uma mudança funcional dos centros urbanos, na qual muitas cidades que tinham sua base econômica no século 20 concentrada nas atividades industriais, passaram a ter uma economia centrada no setor de serviços no século 21. Esta transformação gerou um rearranjo das forças produtivas e, consequentemente, vazios urbanos em áreas infraestruturadas.
Desde a década de 1980 há um crescente número de investigações no campo do urbanismo que tem como objeto a requalificação de vazios urbanos, desde o célebre texto “Terrain Vague” de Ignasi de Solà Morales (12), embora haja diversas matrizes discursivas e interpretações acerca dos vazios urbanos (13).
De acordo com Andréa Borde (14), as condições de produção e reprodução dos vazios urbanos no contexto atual adquire extrema relevância posto que a existência de áreas vazias na malha urbana infraestruturada e o processo de periferização das cidades brasileiras nas últimas décadas apresentam uma contradição.
Estas áreas representam uma oportunidade de construir cidades mais adensadas, com a reciclagem do espaço urbano construído classificado pela literatura como “brownfields” e aproveitamento da infraestrutura existente. Para o urbanismo, uma das discussões mais candentes é a requalificação de territórios centrais, redirecionando o desenvolvimento urbano para uma estratégia na qual a reciclagem das localidades centrais é alinhada ao aproveitamento de infraestrutura instalada com o aumento de densidade populacional.
Diversos autores apontam que o modelo de cidade espraiada, monofuncional e em constante expansão do período pós-industrial é insustentável, e gera problemas sociais e ambientais que afetam a sociedade como um todo (15). A construção das cidades no presente século deve estar baseada em pilares sociais e ambientais, por meio da aproximação das atividades de lazer, trabalho, e moradia, mobilidade ativa, redução da emissão de gases de efeito estufa, valorização dos espaços públicos, diversidade de usos e funções, remanejamento das áreas já construídas (evitando o espraiamento) e redução das desigualdades socais e ambientais.
O quadro de mudança climática, a limitação de recursos orçamentários para a construção de onerosas infraestruturas urbanas, a necessidade de superar os gargalos que retardam a circulação de mercadorias e pessoas, nos leva cada vez mais a pensar na reciclagem e adensamento com usos mistos dos espaços urbanos já construídos com o objetivo de aproveitar a infraestrutura existente nessas áreas, reduzir os deslocamentos e evitar a degradação ambiental causada pela ocupação de novas áreas.
O contexto: a Região Serrana do Rio de Janeiro
A Região Serrana do Rio de Janeiro tem enfrentado um cenário de aumento de população em área de risco de deslizamento, com destaque para as três cidades com maior população e importância econômica: Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. As cidades dividem uma história conjunta de ocupação e consolidação, que reforça o papel da ferrovia no século 19 como um dos elementos transformadores dos povoados coloniais para cidades de destaque no setor industrial têxtil, e mais tarde, consolidando-se como cidades de matriz econômica terciária, seguindo a tendência de crescimento dos comércios e serviços, como a maioria das cidades médias brasileiras.
A história da ocupação da Região Serrana do Rio é marcada por desastres com perdas humanas, materiais e ambientais. Somam-se ainda a este quadro as questões relacionadas à mudança climática, com o aumento da temperatura em âmbito global, a ocorrência de eventos extremos do clima decorrentes de chuvas acumuladas intensifica os riscos de desastres. Para uma região geologicamente vulnerável, como a da Serra Fluminense, os riscos e ameaças são potencializados, e esta deve ser uma pauta central no planejamento urbano municipal.
O ano de 2011, entretanto, foi um divisor de águas na história das tragédias na Região Serrana do Rio de Janeiro, seja pelo volume de danos à vida e ao patrimônio, seja pelo nível de resposta do Governo Federal, que à época fortaleceu a Defesa Civil por meio da criação do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil e da Política de Proteção e Defesa Civil (Lei 12.608/12).
De acordo com o relatório intitulado “Avaliação de Perdas e Danos: Inundações e Deslizamentos na Região Serrana do Rio” do Banco Mundial (16), os eventos de 11 e 12 de janeiro de 2011 ocorridos em sete municípios após chuvas torrenciais causaram a morte de mais de 900 pessoas e afetaram mais de 300 mil pessoas. O Instituto Nacional de Meteorologia – INMET registrou 166 mm de chuva para a cidade de Nova Friburgo, o que representa mais de 70% do valor médio histórico para o mês de janeiro.
Quantos aos números, a avaliação do Banco Mundial (17) informa que foram 910 mortos e 662 desaparecidos até o dia 18 de fevereiro. Nova Friburgo com 426 mortos, Teresópolis 382, Petrópolis 74, Sumidouro 22, São José do Vale do Rio Preto, Santo Antônio de Pádua e Bom Jardim 2 mortos em cada município. Segundo a Defesa Civil estadual, as chuvas deixaram 23.315 desalojados (momentaneamente impedidos de voltar para casa) e 12.768 desabrigados (quem perdeu suas casas) em 15 cidades.
De acordo com o IBGE (18), os Municípios de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, possuem respectivamente 72 070 (24,4% do total do município), 45 772 (28,0% do total do município) e 33 660 (18,5% do total do município) moradores em situação de risco.
Estes dados alarmantes, somados ao quadro de mudança climática evidenciam que os municípios desta região devem propor soluções de planejamento e gestão de riscos.
Metodologia
Para análise dos vazios urbanos centrais como espaços de oportunidade para requalificação urbana, adensamento populacional e absorção de população residente em área de risco, a metodologia de pesquisa foi desenvolvida em quatros etapas:
1) Seleção do estudo de caso: a seleção do estudo de caso se deu em função do percentual da população residente em área de risco de deslizamento em relação a população municipal total dos municípios da Região Serrana do Rio de Janeiro. Com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que serão expostos posteriormente, foi selecionado o caso do Município de Nova Friburgo.
2) Levantamento da população em área de risco de deslizamento e projeção do crescimento populacional: nesta etapa foi realizada a quantificação da população em área de risco em Nova Friburgo a partir de dados do IBGE seguida da projeção do crescimento populacional no município que foi feita com base nos dados do Censo de 2010 (IBGE) e com a aplicação da taxa de crescimento vegetativo do bairro, chegando ao valor estimado da população residente entre 2015 e 2050.
3) Mapeamento dos vazios urbanos centrais com infraestrutura adequada: os vazios urbanos das áreas centrais de Nova Friburgo foram mapeados a partir de dados de uso do solo disponibilizados pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Sustentável da Prefeitura de Nova Friburgo – Semadus. Foram considerados como vazios urbanos passíveis de transformação e ocupação: (a) áreas ociosas não edificadas; (b) terrenos com uso de estacionamentos horizontais; (c) galpões de uso industrial inativos; (d) lotes subutilizados.
4) Cenários: os cenários de adensamento gradativo para o período de 2015 a 2050 foram elaborados a partir dos dados construídos na etapa de levantamento de população em área de risco, projeção do crescimento populacional e mapeamento dos vazios urbanos centrais.
Estudo de caso: Nova Friburgo
O município de Nova Friburgo possui 182.082 habitantes (19). Ocupa uma área de aproximadamente 93 hectares que é dividida em oito distritos: Centro, Riograndina, Campo do Coelho, Amparo, Lumiar, Conselheiro Paulino, São Pedro da Serra e Mury. Grande parte do território municipal não é urbanizada e 85% é composto por Mata Atlântica. A cidade passou por um intenso crescimento populacional com a chegada da indústria na década de 1950 e sua população triplicou entre 1950 e 1990 (20).
O crescimento populacional continuou ocorrendo nos anos seguintes, fato que gerou um espraiamento urbano desordenado e a ocupação de áreas vulneráveis, de risco e encostas. Como em muitas cidades brasileiras, uma parcela das pessoas de baixa renda passou a residir nas bordas da cidade, distantes das oportunidades de emprego, equipamentos públicos e infraestrutura. Como consequência, houve o crescimento da população vulnerável em área de risco, o aumento da mancha urbana, e o colapso do sistema viário e de transportes causados por movimentos pendulares.
A seleção da cidade de Nova Friburgo como estudo de caso da presente pesquisa se deu devido a este contexto de risco e vulnerabilidade. A escolha se deu em função do percentual da população residente em área de risco de deslizamento em relação a população municipal total.
Ao analisar os dados da Região Serrana do Rio de Janeiro nota-se que a cidade de Nova Friburgo se destaca ao apresentar o maior percentual entre a população residente em áreas de risco e a população total residente, tendo como base o Censo 2010, conforme dados expostos na Tabela 1.
Nova Friburgo foi bastante atingida pelas chuvas de 2011, e possui uma legislação municipal (Decreto n. 285 de 24 de setembro de 2019) que arrola as classificações de risco, inventário dos escorregamentos e movimentações de terra, e localização das áreas mais críticas a partir de um relatório técnico elaborado pelo Núcleo de Análise e Diagnóstico de Escorregamentos do Serviço Geológico do Rio de Janeiro – NADE/DRM-RJ. No entanto, o decreto não atualiza ou traz especificidades sobre o número de domicílios ou quantificação da população residente nas áreas críticas de alto e muito alto risco, confirmando uma falha no planejamento para mitigação de possíveis desastres.
O mapa abaixo demonstra a grande quantidade de deslizamentos ocorridos em janeiro de 2011, principalmente na porção Noroeste do município, no bairro Córrego D’antas. As manchas em rosa claro são as chamadas áreas de especial interesse geológico e geotécnico (CPRM), que demonstram em síntese as localidades de suscetibilidade geológicas da cidade abrangendo também as áreas de Alto e Muito Alto Risco da Carta Geotécnica do município de Nova Friburgo.
A situação de risco da cidade é um fator limitante da sua expansão urbana. Seguindo os preceitos da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei Federal nº 12.608, de 2012) e do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257, de 2001), estas áreas não devem ser ocupadas por apresentarem condições instáveis. A configuração geomorfológica de Nova Friburgo, assim como os demais municípios da região Serrana do Rio de Janeiro, é central para o ordenamento urbano exigindo um mapeamento preciso das áreas seguras das cidades, para embasar criteriosamente as delimitações de perímetros urbanos, localidades de expansão e áreas para adensamento e qualificação urbanas, visando o equilíbrio socioambiental.
Vazios urbanos e as oportunidades de adensamento progressivo em Nova Friburgo
Com relação ao tratamento dos seus espaços centrais, Nova Friburgo possui notáveis áreas de interesse urbanístico com potenciais de transformação expressivos, que são os territórios onde se localizavam as antigas fábricas mais importantes da cidade, Ypú, ARP e Filó. Os vazios urbanos em Nova Friburgo se concentram no eixo principal da cidade, sentido Norte-Sul, ao longo da mancha da área urbanizada do território, conforme mapa abaixo.
As áreas consideradas como vazios urbanos foram levantadas, mapeadas e identificadas conforme a metodologia proposta. Essas áreas somadas quantificam aproximadamente 3.276.020 m2, ou 327,6 hectares e são uma grande potencialidade no quesito de transformação urbana pelo adensamento populacional, condição contrastante ao deficit habitacional de Nova Friburgo e das famílias em situação de risco nas encostas e nas áreas sujeitas a inundações. Percebe-se uma maior concentração destes terrenos ociosos em Conselheiro Paulino, Centro e Olaria. A simulação apresentada no presente artigo tem como objeto a região Olaria.
Cenários: ensaios urbanos
A análise da formação urbana do município de Nova Friburgo, como foi brevemente descrita anteriormente, revela nos seus espaços centrais o processo de obsolescência das grandes fábricas que se esvaziaram após a desindustrialização ocorrida pós 1970, e é possível identificar que três das antigas fábricas Ypú, ARP e Filó, possuem em seu entorno as “Infraestruturas de Oportunidade”, o que reforça seu caráter de notável potencial de transformação.
Desse modo, o presente estudo se propõe a apresentar um ensaio urbanístico de adensamento da localidade elegida, demonstrada pelo polígono em preto no mapa abaixo, chamada de Olaria. Como critério adicional, adotou-se a estratégia de ocupação de Desenvolvimento Orientado pelo Transporte – DOT, que se traduz na articulação entre a mobilidade e o desenvolvimento urbano, por meio da orientação de crescimento em áreas próximas dos eixos de transporte.
A região Olaria, com área de 137.000 m2, contém um vazio urbano significativo dentro de seu perímetro, constituído de um terreno não edificado com o uso de estacionamento rotativo. Este é um território prioritário para o desenvolvimento urbano da cidade, no qual é previsto e incentivado o adensamento. Isso se dá devido a proximidade de Olaria com o centro, seu acesso à infraestrutura e a presença de terrenos ociosos (21).
O recorte temporal para simulação de densidades progressivas e qualificação do território, é o período de 2015 a 2050. O período de 35 anos foi então dividido em quatro cenários com intervalos iguais, a saber: 2015, 2027, 2039 e 2050.
A população atual do município é oriunda de dados do Censo de 2010 e o cálculo do crescimento vegetativo previsto para os anos seguintes, foi desenvolvido pela Fundação COPPETEC – Laboratório de Hidrologia e Estudos de Meio Ambiente em 2014. Desta maneira foi possível estabelecer uma taxa de crescimento vegetativo ao longo dos anos, com percentagem utilizada para a definição da população em cada um dos quatro cenários temporais.
A poligonal de Olaria tem uma área total de 13,7 hectares (ha). Esta área possui duas densidades diferentes (Figura 6): uma de 50 a 100 hab/ha (média 75 hab/ha), com 9,32ha e outra com 100 a 250 hab/ha (média 175 hab/ha), com recortes que somados, totalizam 4,37ha. Desta forma calculou-se que nos 9,32ha, existem 699 habitantes (75 x 9,32) e que nos 4,37ha restantes, a população é de aproximadamente 765 habitantes (175 x 4,37), totalizando 1.464 moradores e densidade média de 106,86 hab/ha.
A partir do valor da população atual inserida na poligonal, foi possível aplicar a taxa de crescimento vegetativo do Bairro no período de 2015 até 2050, que corresponde a 20,3%, chegando à população residente em 2050 nesta mesma área, totalizando 1.930 habitantes. Desta forma, obteve-se a população residente na poligonal para cada um dos cenários (2015, 2027, 2039 e 2050) após a distribuição do crescimento vegetativo populacional em conformidade e proporcionalmente aos intervalos temporais adotados.
Além dos quatro cenários temporais citados anteriormente, foi realizado um quinto ensaio, no qual a localidade absorveria parte proporcional da população atual que se encontra em áreas de risco hidrológico/geológico no município de Nova Friburgo (tabela 2).
Destaque-se a importância da construção dos cenários da morfologia urbana procurando demostrar visualmente a aplicação dos critérios de adensamento e dos instrumentos de qualificação dos espaços públicos. A simulação visa demonstrar o possível impacto gerado pela aplicação de instrumentos urbanos que possibilitam a construção de uma cidade compacta, multifuncional e mais democrática.
Simulação de adensamento gradativo e absorção de população em área de risco: Cenários de 2015 a 2050
O desenho abaixo ilustra o cenário recente de Olaria, no ano de 2015, enfatizando os vazios urbanos mapeados que se configuram em grandes terrenos de estacionamento e no espaço da Autran.
Para além do adensamento, outros princípios de urbanismo contemporâneo com vistas a sustentabilidade foram considerados na construção dos cenários. Na simulação, propôs-se para o ano de 2027 a recuperação das margens do rio que passa pela região com implantação de um parque linear em suas margens, corredor de ônibus na Avenida Júlio Antônio Thurler, novas unidades habitacionais com fachada ativa no pavimento térreo ao longo do corredor de ônibus, ciclovias, ruas de trânsito exclusivo para pedestres e um parque urbano, conforme ilustra o desenho abaixo.
Nesta configuração, Olaria teria uma população de 19.641 habitantes e densidade populacional média de 165 hab/ha. O foco desta primeira etapa seria o de trazer melhor qualidade urbana e ambiental para a região a partir da implantação dos parques, mobilidade urbana (ciclovia e faixa de ônibus), melhoria da fruição pública e alguns prédios habitacionais. Essas melhorias atraíram novos investimentos e, consequentemente, a nova população proposta para esta área.
No cenário de 2039 (conforme desenho abaixo), propôs-se a construção de mais unidades habitacionais com fachada ativa no térreo ao longo da faixa de ônibus, seguindo princípios do Desenvolvimento orientado pelo transporte. Nesta etapa, além da provisão habitacional, seriam incorporados elementos de fruição pública. A população estimada seria de 20.752 habitantes e densidade populacional média de 174 hab/ha.
Para o ano de 2050, propôs-se a implantação de prédios de habitação com fachada ativa no térreo, ruas exclusivas para pedestres ao longo da fachada ativa e uma praça para acolher eventos e feiras. Nesta simulação a população de Olaria seria de 21.751 habitantes e a densidade populacional média de 183 hab/ha (conforme desenho abaixo).
Até aqui, as simulações propostas foram realizadas a partir de uma estimativa do crescimento vegetativo de Nova Friburgo, ou seja, as unidades habitacionais construídas receberiam a nova população estimada para a cidade. Ainda para o ano de 2050, foi simulada a construção de provisão habitacional para parte da população em área de risco. Neste cenário, a poligonal teria 29.729 habitantes e densidade populacional média de 250 hab/ha, conforme desenho abaixo.
Conclusões
As simulações propostas, baseadas nos dados e projeções para o município de Nova Friburgo, apontam o potencial de transformação existente nos vazios urbanos do município, assim como de muitas outras cidades brasileiras. Os cenários demonstram que os vazios urbanos de Olaria poderiam abrigar tanto a população prevista (advinda do crescimento urbano esperado), quanto parte da população de área de risco do município. Ou seja, a partir da aplicação de instrumentos e estratégias urbanas que tem como objetivo a construção de cidades mais justas e resilientes a mudança do clima, é possível combinar benefícios sociais, econômicos e ambientais.
É importante destacar que a aplicação dos instrumentos urbanos que visam evitar a ociosidade dos imóveis e/ou vazios urbanos das áreas infraestruturadas, como o Parcelamento, Edificação ou Uso Compulsório – PEUC, é essencial para garantia da função social da propriedade e do planejamento participativo celebrados na Constituição Federal e Estatuto da Cidade. No entanto, como aponta Nabil Bonduki (22) estes instrumentos só podem ser aplicados se estiverem previstos nos planos diretores municipais, regulamentados e aprovados por leis específicas na câmara de vereadores. Logo, apesar destes instrumentos fazerem parte do arcabouço legal brasileiro, poucas cidades os regulam e praticam devidamente. No que tange à aplicação efetiva das normativas derivadas de políticas públicas urbanas e ambientais, a sociedade como um todo deve estar disposta e consensuar os ônus e bônus da reestruturação urbana.
A pesquisa aplicada aponta novas diretrizes, estratégias e instrumentos de políticas públicas urbanas e ambientais que podem oferecer subsídios para a formulação do desejável Plano de Ação Climática e futuras revisões do Plano Diretor de Nova Friburgo, assim como de outros municípios que enfrentam situação semelhante. Para estas cidades, os riscos e ameaças decorrentes da mudança climática são intensificados. A proposição de um planejamento urbano que integre políticas públicas urbanas e ambientais e as territorialize, absorvendo políticas públicas de adaptação aos riscos e ameaças decorrentes da mudança climática e proteja a população, é premente.
notas
1
LEITE, Carlos; et al. Social Urbanism in Latin America. Cases and Instruments of Planning, Land Policy and Financing the City Transformation with Social Inclusion. Cham, Springer Nature, 2020.
2
MARICATO, Erminia. Para entender a crise urbana. São Paulo, Expressão Popular, 2015.
3
MAGALHÃES, Sérgio; IZAGA, Fabiana Generoso de. Cidade brasileira do século 21. Demografia, moradia e ocupação do território: uma avaliação urbanística. Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 206.01, Vitruvius, jul. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.206/6624>
4
IBGE. População em áreas de risco no Brasil. Rio de Janeiro, Coordenação de Geografia do IBGE, 2018 <https://bit.ly/3dz0WrA>
5
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Manual técnico para redução de riscos de desastres aplicado ao planejamento urbano – Movimentos de massa. Volume 6. Brasília, Projeto Gides/Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano, 2018 <https://bit.ly/3yf9agu>.
6
Idem, ibidem.
7
ANELLI, Renato. As cidades e o aquecimento global: desafios para o planejamento urbano, as engenharias e as ciências sociais e básicas. Journal of Urban Technology and Sustainability, v. 3, n. 1, 1 dez. 2020, p. 4-17 <https://bit.ly/3qFYogS>.
8
ACSELRAD, Henri; et al. (Org.). Justiça cambiental e cidadania. Rio de Janeiro, Relume Dumará/Fundação Ford, 2004.
9
MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. Anuário brasileiro de desastres naturais 2011. Brasília, Cenad, 2012.
10
NOVA FRIBURGO. Plano Municipal de Redução de Riscos. Nova Friburgo, Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais, 2007 <https://bit.ly/3AeBzW5>.
11
MAGLIO, Ivan; PHILIPPI JÚNIOR, Arlindo. Sustentabilidade ambiental e mudanças climáticas: desafio para o planejamento urbano das cidades. In: Gestão urbana e sustentabilidade. Barueri, Manole. 2019, p. 428-453.
12
SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Terrain Vague. In: DAVIDSON, Cynthia C. (Org.). Anyplace. Cambridge, MIT/Any, 1995, p. 118-123.
13
BORDE, Andréa. Vazios urbanos: avaliação histórica e perspectivas contemporâneas. In: Anais do VIII Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Niterói, PPGAU UFBA / ARQ.URB UFF / Ippur UFRJ / Prourb UFRJ / Igeo UFRJ, 9-12 nov. 2004 <https://bit.ly/3xfdYCK>.
14
Idem, ibidem.
15
SACHS, Ignacy. Estratégias de transição para o século XXI: desenvolvimento e meio ambiente. São Paulo, Fundap, 1993; SILVA, Rachel Coutinho Marques da. A cidade pelo avesso: desafios do urbanismo contemporâneo. Rio de Janeiro, Viana & Mosley, 2006.
16
BANCO MUNDIAL. Avaliação de perdas e danos: inundações e deslizamentos na Região Serrana do Rio de Janeiro. Brasília, Banco Mundial, 2012 <https://bit.ly/363RKaG>.
17
Idem, ibidem.
18
IBGE. População em áreas de risco no Brasil (op. cit.).
19
IBGE. Censo demográfico 2010. Rio de Janeiro, IBGE, 2010.
20
PMNF. Plano de Desenvolvimento Urbano Estratégico Nova Friburgo 2050 – estratégias centrais da revisão do Plano Diretor 2015. Nova Friburgo, Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano Sustentável, 2015 <https://bit.ly/3qH6Z2F>.
21
PDUE. Op. cit.
22
BONDUKI, Nabil. O modelo de desenvolvimento urbano de São Paulo precisa ser revertido. Estudos avançados, São Paulo, v. 25, n. 71, abr. 2011, p. 23-36 <https://bit.ly/3AkVIJN>.
sobre os autores
Calos Leite é arquiteto e urbanista, mestre e doutor pela FAU USP, professor no PPG Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Insper e pesquisador do programa Capes PRINT Mackenzie-Universidade de Hannover.
Andresa Ledo Marques é arquiteta e urbanista, mestre e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisadora do programa Capes PRINT Mackenzie-Universidade de Hannover.
Wilson Levy é advogado (PUC SP), mestre (FD USP) e doutor em Direito Urbanístico pela PUC SP, com estágio de pós-doutoramento junto à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Diretor do PPG em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Uninove.
Ana Wernke é advogada, especialista em Direito Público e Direito Ambiental, mestre em Cidades Inteligentes e Sustentáveis e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Membro do Comitê de Mudança do Clima e Ecoeconomia da cidade de São Paulo e Coordenadora do ICLEI América do Sul.