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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O propósito do texto é fornecer elementos sobre valor do patrimônio e alternativas de salvaguarda, como subsídios para classificação do patrimônio de Curitiba, bem como para futuras ações que possam contribuir para sua efetiva preservação.

english
The purpose of the text is to provide elements about heritage value and safeguard alternatives, as a subsidy for the classification of Curitiba´s heritage, as well as for future actions that can contribute to its effective preservation.

español
El propósito del texto es proporcionar elementos sobre el valor del patrimonio y alternativas de salvaguarda como subsidios para la clasificación del patrimonio de Curitiba, así como para futuras acciones que puedan contribuir a su preservación efectiva.


how to quote

CASTRO, Elizabeth Amorim de; SANTOS, Maria da Graça Rodrigues dos. O valor do patrimônio como iniciativa de salvaguarda. Políticas de preservação em Curitiba: fundamentos e práticas (parte 1). Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 253.08, Vitruvius, jun. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.253/8128>.

No Brasil, aparte as importantes contribuições teóricas e experiências práticas, que sempre resultam em avanços no sentido de alargamento das fronteiras conceituais do patrimônio, no âmbito institucional, permanecemos amarrados às definições tradicionais de valor – histórico e artístico – presentes no Decreto-Lei n. 25/1937, as quais parecem desprezar esforços, como o de Alois Riegl que, desde o início do século 20, aprofundou o debate sobre valores associados aos monumentos.

Os registros de tombamento do patrimônio edificado na perspectiva tradicional nem sempre garantem a preservação do bem, tendo sido muitas vezes um instrumento de aceleração da sua degradação. Por exemplo, a simples restrição ao uso de imóveis, sem uma efetiva política de salvaguarda, pode contribuir para o afastamento completo da população, que afinal lhe reconhece valor, e consequentemente para seu completo abandono.

Retomando os esforços de Riegl e reconhecendo contribuições mais recentes nesta mesma perspectiva, algumas alternativas de identificação e atribuição de valor do patrimônio, bem como de participação da sociedade no processo, merecem ser examinadas para reverter problemas que as classificações tradicionais já não conseguem.

Trazendo esta discussão para a realidade de Curitiba, o propósito do texto é fornecer elementos teóricos sobre valor do patrimônio e alternativas de salvaguarda, como subsídios tanto para o estudo da experiência local de classificar o seu próprio conjunto de bens de valor cultural, como para futuras ações que possam contribuir para sua efetiva preservação. Com esse objetivo, traz contribuições de diferentes períodos históricos, evidenciando que decorrem sempre de reflexões anteriores aplicadas a contextos específicos.

As análises se iniciam pelas reflexões teóricas de Alois Riegl, do início do século 20; prosseguem com a interpretação de Françoise Choay, que em certa medida resgata as ideias do historiador da arte austríaco; as recomendações presentes em documento publicado pelo Gethy Conservation Institute; a abordagem adotada em duas cartas patrimoniais, produzidas no século 21; e ideias presentes no Relatório de Caracterização e Diagnóstico de Valores Patrimoniais do Plano Diretor do Porto, Portugal, de 2017. Por fim, examina-se a contribuição de Nestor Goulart Reis, contida no parecer do processo de tombamento de Antonina, Paraná. A sequência apresentada traz conceitos que podem embasar normativas e ações de preservação e salvaguarda do patrimônio, num contexto contemporâneo, em situações diversas.

Valor e salvaguarda 

1. Alois Riegl, no texto Cultura e valor, publicado originalmente em 1903 (1), manifestou suas preocupações frente à necessidade de reorganização dos fundamentos para conservação dos monumentos públicos da Áustria e as expressou enfatizando questões de valor ligadas aos monumentos, como suporte teórico para sua conservação.

Com esse fim, discutiu exaustivamente o conceito de valor, iniciando pelas categorias histórico e artístico, adotadas nos procedimentos de preservação na Áustria e em conformidade com ideias dos séculos 16 ao 19, o que naquele momento já poderia provocar mal entendidos, considerando novas concepções da “essência do valor da arte” (2).

Parte da concepção original de valor histórico – tudo que ficou no passado e que é insubstituível – e promulga que “qualquer atividade ou destino humano” pode aspirar a condição de histórico e a escolha sobre o que deve representar tal valor é arbitrada pela sociedade. Por outro lado, entende que todo monumento artístico tem o referido valor histórico, resultando ineficaz tal subdivisão. Mas estes monumentos contêm outros elementos, inerentes à atividade artística, que dizem respeito a propriedades de concepção, forma e cor, independentes da sua posição na “cadeia evolutiva histórica” (3).

A resposta dada à questão da arte encontrava-se em duas formas distintas de encará-la: uma mais clássica que pressupõe a existência de um cânone artístico inquestionável, que todo artista aspira alcançar, ligado à antiguidade clássica; a outra pressupõe uma determinada valoração, que muda de acordo com o tempo e perspectivas da sociedade. Daí decorre o fato de não ser possível falar em valor artístico absoluto, mas tão somente relativo.

Para equilibrar essas mudanças que podem pôr em risco a preservação de monumentos antigos, Riegl propôs o valor de antiguidade, a ser aplicado àquelas edificações, que produzem no homem uma impressão que a obra moderna não consegue, uma vez que são produzidas com técnicas ou materiais não mais utilizados. Essas divisões, segundo ele, interferem nos procedimentos de conservação e restauração dos bens. Se o mais importante for a idade deste bem (antiguidade), as marcas da passagem do tempo seriam importantes; se ele estiver relacionado a um fato ou momento histórico específico, salientar-se-ia o aspecto original.

Os valores iniciais de monumentalidade e de antiguidade – que abrangeriam o histórico – foram definidos como rememorativos. A estes, Riegl acrescentou outros: 1. de contemporaneidade, que abrigariam o valor de uso, no qual manifestou a importância em se manter o edifício em plena utilização; e 2. artístico, subdividido em valor de novidade, para obras recém criadas e vinculadas à unidade de estilo, e valor artístico relativo, para aquelas que atenderiam aos critérios estéticos do homem contemporâneo.

É interessante observar a contemporaneidade de tais questões e como Riegl as vincula com procedimentos de conservação e restauração baseados em ideias elaboradas anteriormente, que indiretamente influenciaram as intervenções no patrimônio no século 20. São evidentes os vínculos com as posturas adotadas por John Ruskin, mais próxima do que estabelece como valor de antiguidade, e por Viollet-le-Duc, que exalta o valor histórico da sua definição, ambas da segunda metade do século 19.

Da mesma forma, o pensamento de Riegl influenciou teóricos que o sucederam. Ao tratar do valor instrumental, vincula-se a posturas mais recentes sobre intervenção em edifícios históricos, de modo a garantir sua manutenção. Nesse sentido, suas ideias possibilitam a discussão sobre a adaptação dos monumentos à realidade contemporânea, ação que muitas vezes requer alterações significativas no edifício, ressaltando seu valor histórico em detrimento do valor de antiguidade, por ele considerado o mais importante.

Há que se levar em conta o contexto do período no qual Riegl escreveu, quando ainda não havia a necessidade de reconstrução efetiva de monumentos, como ocorreu com a destruição provocada pelas duas guerras mundiais, levando a adoção da perspectiva histórica nessas ações, sendo então a forma mais eficaz de recuperação dos conjuntos antigos (4).

2. Françoise Choay, no livro A alegoria do patrimônio (5) apresenta, em longo e curioso percurso, o desenvolvimento do conceito de patrimônio histórico, mais precisamente do construído, abrangendo desde a antiguidade até o final do século 20. Apesar de tomar como base a realidade francesa, a obra auxilia na compreensão das relações que se estabelecem em torno do tema e das mazelas que subjazem ao manto patrimonial, com alcance internacional.

O texto, que se apresenta, em primeira vista, sob uma perspectiva temporal linear, permite leituras transversais, mais específicas, sem prejuízo da compreensão do conceito geral de patrimônio, o que parece ser a intenção principal da autora. Na introdução do livro, Choay explica como a abrangência do conceito de patrimônio se alterou nos sentidos cronológico, geográfico e tipológico e mostra como e porque ocorreram tais transformações, ao longo do período abordado. A leitura parcial do texto, por capítulos, oferece contribuições teóricas importantes, ainda que sejam parte do objetivo maior de situar historicamente algumas questões que envolvem o patrimônio, como contribuição à sua preservação e gestão contemporâneas.

O capítulo 4, que trata dos valores do monumento, evidencia o modo como Choay os desvela e os hierarquiza frente a interesses específicos de cada período, ao mesmo tempo que resgata ideias de Alois Riegl. Segundo a autora, já na constituição do monumento histórico estavam presentes os valores moral e artístico. Na França revolucionária acrescentou-se o valor nacional, que alcançou rapidamente toda a Europa, decorrente de outros: o cognitivo, reconhecendo o monumento como testemunha irrepreensível da história; e o econômico, caracterizando-o como elemento de atração de visitantes estrangeiros. Ainda no século 18, o valor artístico situava-se em último lugar, devido ao conceito impreciso de arte, então associada a um papel pedagógico, e à noção então recente de estética.

No rol deste debate, a autora destaca a distinção entre monumento e patrimônio, resultante dos valores presentes em cada um. O conceito de patrimônio estaria ligado ao poder institucional de representação, forjado para designar bens pertencentes à nação, o qual após o período revolucionário caiu em desuso. Afirma que Riegl desenvolveu um dos mais importantes estudos sobre a conservação de monumentos antigos, apesar de não ter feito referência ao valor nacional, que considera importante. O advento da era industrial contribuiu para inverter os valores do monumento, privilegiando aqueles relativos à sensibilidade, principalmente estética. Acrescenta que John Ruskin atribuiu ao monumento um valor de reverência e respeito pelo seu culto ao passado, no qual homens de bem produziram monumentos, como frutos do seu trabalho manual. Nesse ponto, retoma a importância do valor de antiguidade de Riegl.

3. Em 2000, o Getty Conservation Institute publicou um conjunto de textos relativos à preservação do patrimônio no contexto contemporâneo, trazendo uma contribuição à definição de valor. Segundo os documentos, tal definição é importante para as decisões sobre preservação, as quais requerem reflexões sobre “o que” e “como” preservar, “onde” estabelecer prioridades e “como” lidar com o conflito de interesses, principalmente quando se trata de dimensionar valores sociais. Dentre os textos, o Assessing values in conservation planning: methodological issues and choices, de Randall Mason (6), propõe a incursão em novas áreas de conhecimento e apresenta uma visão geral da questão, bem como os desafios a serem enfrentados na tentativa de integrar instrumentos tradicionais do campo cultural a outros que atendam demandas contemporâneas. Discute, também, os métodos de avaliação de valor do patrimônio. Pela pertinência com o tema do presente artigo, essa abordagem é apresentada com mais detalhes, buscando contribuir para a reflexão sobre os valores a serem definidos no caso específico do patrimônio de Curitiba.

O autor aponta como problema inicial a diversa natureza de valores – cultural, econômico, político, estético –, os quais, muitas vezes, se sobrepõem e competem entre si, são alterados com o tempo e estão submetidos a fatores contextuais – tais como forças sociais, oportunidades econômicas e tendências culturais –, que podem entrar em conflito. Acrescenta-se a este panorama a enorme variedade de métodos e instrumentos utilizados por disciplinas diferentes nos processos de avaliação dos valores.

A avaliação e gerenciamento de valor do patrimônio apresenta como desafios a necessidade de identificar todos os seus diferentes tipos; descrevê-los; integrá-los – mesmo que, muitas vezes, sejam conflitantes e ligados a diferentes interesses –; e classificá-los. Na sequência, apresenta alguns pressupostos para o desenvolvimento de tal processo: 1- a conservação do patrimônio é uma prática sociocultural, mais que uma atividade técnica; 2- deve-se levar em conta o contexto social, cultural, econômico, geográfico e administrativo, na mesma medida que o bem ou o lugar é considerado; 3- os valores do patrimônio são variados e estão sempre em conflito; 4- os métodos tradicionais baseiam-se em valores de história, história da arte e arqueologia, numa visão uni disciplinar; 5- a integração de valores econômicos com valores culturais configura-se como um desafio, na medida que aqueles não são considerados na abordagem tradicional; 6- nenhuma disciplina ou método isolado é capaz de produzir uma avaliação eficaz do patrimônio; 7- deve-se estabelecer uma estratégia de inclusão com a participação de “insiders” e “outsiders” no processo de avaliação; 8- é necessário fazer uma avaliação mais abrangente dos valores patrimoniais e sua integração, a fim de obter resultados mais efetivos e sustentáveis; 9- a efetividade de uma proposta se obtém pelas respostas que oferece às partes interessadas.

Metodologia do processo de planejamento. Elaborada por Randall Mason, para explicar a sequência de identificação, descrição, avaliação, análise, respostas e controle, sobre o valor do patrimônio
Imagem divulgação [Assessing values in conservation planning: methodological issues and choices]

Dando seguimento, o texto explora quatro questões que se apresentam no processo de avaliação e dizem respeito à: caracterização dos valores; definição de metodologias e estratégias; escolha de ferramentas, para se obter os valores; e integração de avaliações e auxílio na tomada de decisões. Para isso, explicita que a noção de valor adotada leva em conta as “qualidades positivas (reais e potenciais) vistas das coisas” (7), em oposição à visão tradicional, que privilegia a arte e a história. O valor de um bem está associado ao benefício que traz para a sociedade, sob o ponto de vista simbólico, de uso ou outro. Deve estar incorporado à vida da sociedade, do lugar, não deve ser “encontrado” e registrado por especialistas.

Para contribuir com o processo de caracterização destes valores, propõe a definição de duas tipologias (8) – a sociocultural e econômica – que permitiriam a expressão e comparação efetiva das opiniões das partes interessadas. Essa distinção é importante porque evidencia o grau de influência da lógica do mercado, cada vez mais presente nas esferas da vida social e se constituindo em uma questão contemporânea premente. O estabelecimento destas tipologias permite a conexão com os debates tradicionais em torno de noções de base econômica e superestrutura cultural e sua relação nas sociedades modernas. Contudo, representam duas atitudes/perspectivas bastante distintas em relação ao assunto de valores e de valorização.

Segundo o documento, a tipologia sociocultural abriga os valores histórico, cultural/simbólico, social, espiritual/religioso e estético; e a econômica abrangeria os de uso, de não uso, existência, opção (9) e legado. A proposta de classificação não tem sentido normativo, nem é uma listagem exaustiva, devendo ser adaptada a cada realidade.

No que concerne à definição de metodologias e estratégias, mais que procurar a melhor resposta ou produzir objetividade, precisão técnica ou uma técnica única para o planejamento eficaz da conservação, a adoção destas tipologias pode trazer informações relevantes e dar transparência ao processo, além de favorecer uma participação mais ampla e significativa. Acrescenta a necessidade da adotar métodos de avaliação de outras áreas de conhecimento, como a antropologia e a economia. Para a escolha dos métodos e ferramentas mais adequados à avaliação, o autor propõe quatro estratégias: incorporar questões intrínsecas às avaliações de valor; adotar métodos qualitativos e quantitativos no processo, reconhecendo diferenças práticas e epistemológicas entre eles; combinar diversas ferramentas no processo de avaliação; e dar voz aos agentes interessados no processo.

No quesito de escolha das ferramentas para eleger os valores a serem colocados para discussão propõe estudos de impacto econômico, de avaliação ocasionais e etnográficos de grupos culturais específicos, além de contextos históricos escritos por historiadores e análise acadêmica de méritos artísticos.

Quanto à integração das avaliações e sua priorização para auxiliar tomadas de decisões, o texto traz quatro “degraus conceituais”, adaptados a casos específicos: a) criar declarações de significância; b) combinar valores com recursos físicos e características do lugar; c) analisar ameaças e oportunidades; e d) fazer políticas e tomar decisões.

3. Nos conteúdos relativos às cartas patrimoniais, observa-se, pela sua leitura cronológica, a ampliação do leque de valores atribuídos ao patrimônio decorrente das mudanças no conceito de cultura e, consequentemente, no respeito às culturas tradicionais, em contraposição à valorização da erudita que caracterizou as diretrizes das primeiras cartas e das ações e legislações voltadas à preservação do patrimônio. Um conjunto destes documentos detém-se especificamente em análises e recomendações acerca da atribuição de valor para o patrimônio, seguindo a ideia contemporânea relativa à pluralidade das manifestações, ao vínculo com a comunidade e ao reconhecimento da questão econômica, dentre outras considerações. A nova visão levou, cada vez mais, a uma aproximação entre o monumento (o bem) e a população que lhe confere valor.

Na Carta de Cracóvia de 2000 (10) consta a definição de patrimônio como o conjunto de obras do homem nas quais uma determinada comunidade reconhece valor, sendo estes “específicos e particulares e com os quais (esta população) se identifica”.

A Convenção de Faro de 2005 (11), que discute o valor do Património Cultural para as Sociedades, dá sequência a algumas ideias do documento produzido por Mason, examinado anteriormente. Nos preâmbulos consta o reconhecimento da importância de incorporação da pessoa e dos valores humanos no centro da discussão ampla sobre patrimônio cultural e da autonomia de cada pessoa para se envolver com tal questão na medida da sua escolha e interesse. Essa postura distancia-se da presença única do especialista na definição do que é patrimônio e como deve se dar a sua fruição. O documento também aponta para a necessidade da promoção da integração e da valorização de todas as expressões do patrimônio cultural.

Nos itens relativos ao estabelecimento de valores para o patrimônio e o seu processo de classificação apresenta em seus artigos:

  1. No que trata sobre “patrimônio cultural e diálogo”, destaca o respeito pela diversidade de interpretações sobre o tema e a necessidade de estabelecer processos que possam gerir “de modo equitativo as situações em que são atribuídos valores contraditórios” ao mesmo bem, por diferentes grupos;
  2. No que se refere a “ambiente, patrimônio e qualidade de vida”, propõe o incentivo a processos de desenvolvimento econômico, político, social e cultural, bem como aqueles de ordenamento do território e estudos de impacto do patrimônio cultural, o que pressupõe a integração do bem de valor cultural no conjunto das ações e decisões de governo aplicadas ao território;
  3. No que trata sobre “patrimônio cultural e atividade econômica”, adota a perspectiva de pensar o patrimônio cultural no contexto do desenvolvimento sustentável e, para isso, propõe valorizar o seu potencial econômico e utilização e levar em consideração as suas especificidades na concepção de políticas econômicas, respeitando os valores que lhe são inerentes; e
  4. No “acesso ao patrimônio cultural e participação democrática”, incentiva a participação de todos os grupos que se sentem representados por ele nos processos de identificação, estudo, interpretação, proteção e conservação, ampliando a reflexão e o debate público.

Além disso, reconhece que se faz necessário considerar os valores atribuídos ao patrimônio com o qual se identificam os diferentes grupos que participam do processo.

4. O Relatório de Caracterização e Diagnóstico de Valores Patrimoniais (12) constante do Plano Diretor Municipal (PDM) da cidade do Porto, em Portugal, é utilizado aqui como referência pelo modo como a questão do patrimônio é abordada no documento maior que define as diretrizes urbanísticas de uma cidade. O texto aponta que a perspectiva valorativa do patrimônio é utilizada como “suporte para a estratégia de desenvolvimento de um território”; expressa a importância na definição de valores para o objetivo da preservação e salvaguarda; e apresenta a metodologia utilizada no processo.

O Relatório destaca a relevância do acompanhamento do patrimônio, com a intenção de detectar problemas de descaracterização ou degradação de imóveis em estágio inicial e tomar as medidas necessárias para sua recuperação, em contraposição à prática usual de constatação de problemas em estágios avançados, quando as condições de recuperação são difíceis e, em muitos casos, inviáveis. Outro ponto importante refere-se à abrangência espacial no processo de reconhecimento do patrimônio, que inclui a rua, a praça, a malha urbana e não apenas o edifício. Com tal abordagem, entende-se a necessidade de trabalhar com valores patrimoniais de matrizes distintas e desenvolver ações de proteção e salvaguarda, mediante a construção contemporânea dos conceitos de patrimônios e salvaguarda. Curiosamente utilizam na base conceitual das análises, ideias de Riegl e Choay, similarmente ao que se propõe no presente texto.

O documento se apropria do conceito de paisagem urbana histórica (13), advindo das Recomendações para as paisagens urbanas históricas de 2011, nas quais se reconhecia um conjunto de valores no patrimônio local: memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade e exemplaridade. Contudo, o PDM, entendendo que os critérios ali estabelecidos são técnicos-acadêmicos, propõe uma classificação prévia dos bens, conforme previsto em documentos anteriores, e a incorporação de novas categorias: áreas de interesse urbanístico e arquitetônico; núcleos e lugares; espaços verdes com valor patrimonial; e imóveis de interesse patrimonial.

A “área de interesse urbanístico e arquitetônico”, segundo consta no PDM de 2018, foi definida previamente no Plano Diretor de 2005 e então atualizada. Caracteriza-se por trechos representativos na consolidação da paisagem urbana, que contam com unidades volumétricas morfológicas e construtivas, as quais correspondem a períodos representativos do processo de expansão da cidade, estão situadas em vias representativas de fatos históricos importantes e apresentam traçados peculiares.

A definição de “núcleos e lugares” é trazida do PDM de 2012 que os interpreta como os espaços históricos mais antigos da área consolidada da cidade, com a presença de elementos identitários.

Os “espaços verdes com valor patrimonial” fogem dos objetivos deste texto. A classificação seguinte trata dos “imóveis de interesse patrimonial”, cujos critérios foram adaptados no atual PDM e apresentam uma subdivisão de valores: arquitetônico, artístico, histórico, paisagístico-ecológico, simbólico, cultural ou social e técnico-científico. Os dois últimos trazem inovações que estão afinadas com os documentos apresentados anteriormente. O primeiro deles desfaz uma confusão em relação ao valor histórico, conforme vem sendo empregado em muitos processos de tombamento. Ali, esta classificação é atribuída ao edifício pela sua linguagem histórica, ou relacionada com um período marcante da história da cidade. Desta forma, o valor simbólico, cultural ou social refere-se ao edifício onde residiu uma importante personalidade da cidade, mas também inclui edificações de grande representatividade para um determinado grupo social. Já o valor técnico-científico está relacionado com as expressões de grande proeza técnica, conforme definição de Choay. Tais categorias apoiam-se no conceito geral de matriz, ali definido (14), e seu detalhamento e agrupamento se dão mediante a adição de critérios específicos e elementos definidores.

5. Finalizam-se as contribuições com elementos do parecer de Nestor Goulart Reis no processo de Tombamento do Centro Histórico de Antonina PR (15), de 2012. O primeiro diz respeito à proposta de atribuição de valor do conjunto urbano de Antonina pelas características do tecido urbano e modo tradicional de implantação, que “se conservam como um conjunto histórico, como um documento material da formação da região”, mais que pelo valor individual das edificações. Sob outro aspecto, Reis faz referência ao modo de preservação das edificações, que não pressupõe a reconstrução de cenários históricos, apenas a recuperação de elementos – como telhados –, no caso de ainda subsistirem vestígios de elementos originais. Já em relação às novas edificações, alterações ou acréscimos ocorridos ao longo do tempo e com valor arquitetônico, recomenda a sua aceitação e incorporação, como propõe Gustavo Giovanoni (16), aceitando perdas e alterações de algumas unidades, para garantir a preservação do conjunto desde que respeitada a escala geral. A pertinência de tais critérios decorre da possibilidade de auxiliar classificações em processos de valoração do patrimônio, contribuindo para a sua salvaguarda e gestão. Consideram-se similaridades com áreas protegidas de Curitiba, quanto à diversidade das edificações e valor individual de algumas delas.

Considerações finais

As ideias extraídas e apresentadas neste texto visam subsidiar etapas de instrução e encaminhamentos de processos de tombamento e salvaguarda das áreas históricas de Curitiba, que se encontram em processo de tombamento, de acordo com as diretrizes do Decreto 360/2019 (17). Mas, aparte a demanda específica, traz considerações acerca da importância da identificação e classificação de valores do patrimônio, para fins de proteção e salvaguarda, numa perspectiva contemporânea, que podem contribuir para a reflexão e ações em outras áreas históricas.

Para fins de conclusão, procede-se a uma síntese das contribuições extraídas dos documentos apresentados, procurando destacar os pontos principais discutidos que apontam para alternativas de preservação ou de salvaguarda. No primeiro caso, incluem-se as que se detém nas definições de valor; no segundo, aquelas que apresentam procedimentos para encaminhamento de processos que dão sequência às ações de preservação.

Os documentos sobre valor apresentam: 1. a necessidade de refletir sobre a definição de valores, interpretando-os de acordo com as especificidades e demandas de cada época; 2. a ampliação do leque de valores, atrelada às mudanças no conceito de cultura; 3. a relação entre os valores e os grupos sociais que interagem com o bem; 4. a discussão sobre o valor ou valores econômicos, no processo de classificação do patrimônio; e 5. a necessidade de considerar todas as contribuições no processo de reconhecimento de valor, lidando com os conflitos que surgem pelas diferentes interpretações.

No que concerne à gestão, destacam-se: 1. o reconhecimento das áreas históricas no direcionamento das políticas de desenvolvimento urbano; 2. a constatação das especificidades de um sítio para adotar políticas de gestão mais efetivas; 3. a incorporação de estudos de impacto do patrimônio cultural, incluindo o econômico; e 4. a inclusão do patrimônio no contexto do desenvolvimento sustentável.

O texto não se propôs a estabelecer regras ou definir procedimentos que possibilitem ser diretamente aplicados em processos de tombamento ou de outro tipo de proteção, mas a apresentar diretrizes que possam ser elaboradas e sintetizadas em casos específicos, adequadas a demandas contemporâneas.

A afirmativa sobre tal contemporaneidade pode ser explicada não apenas pelo fato de se basearem em referências que foram escritas nas duas últimas décadas, a maioria, mas, sobretudo, por apresentarem questões que incorporam a preocupação com a gestão do patrimônio pós-proteção, questão fundamental no caso de Curitiba.

A elaboração de uma normativa para proteção e gestão do patrimônio é importante, assim como sua efetiva implantação. Para isso, deve-se ultrapassar a adoção dos tradicionais critérios técnicos e buscar a inclusão dos diversos agentes interessados na produção do espaço urbano, além da adoção de novas metodologias e instrumentos. É preciso identificar e considerar no processo todos os interesses envolvidos e lidar com os conflitos que tal ação gera, para ampliar o leque dos agentes de proteção e aumentar a possibilidade real de preservação.

notas

NE – Este é o primeiro texto de uma série publicada nas edições de 253 a 255 de Arquitextos:

CASTRO, Elizabeth Amorim de; SANTOS, Maria da Graça Rodrigues dos. O valor do patrimônio como iniciativa de salvaguarda. Políticas de preservação em Curitiba: fundamentos e práticas (parte 1). Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 253.08, Vitruvius, jun. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.253/8128>.

CASTRO, Elizabeth Amorim de; SANTOS, Maria da Graça Rodrigues dos. Trajetória da preservação do patrimônio cultural em Curitiba. Um relato de inovações, avanços e simplificações. Políticas de preservação em Curitiba: fundamentos e práticas (parte 2). Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 254.07, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.254/8206>.

CASTRO, Elizabeth Amorim de; SANTOS, Maria da Graça Rodrigues dos. Preservando o patrimônio. Uma alternativa contemporânea. Políticas de preservação em Curitiba: fundamentos e práticas (parte 3). Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 255.16, Vitruvius, ago. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.255/8236>.

1
RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. São Paulo, Perspectiva, 2014.

2
Idem, ibidem.

3
Idem, ibidem.

4
ALVES, Alice. Os valores dos monumentos: a importância de Riegl no passado e no presente. Research Gate, out. 2015 <https://bit.ly/3dmvdde>.

5
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Estação Liberdade/ Editora Unesp, 2001.

6
MASON, Randall. Assessing values in conservation planning: methodological issues and choices. In DE LA TORRE, Marta (org.). Assessing the Values of Cultural Heritage. Los Angeles, The Getty Conservation Institute, 2002, p. 5-30.

7
Sobre isso, segundo o autor, há dois tipos de consideração a respeito de valor. A que o texto adota tem base antropológica e é dinâmica. Decorre da tentativa de compreender toda a gama de valores e processos de valorização associados ao patrimônio, opondo-se à visão normativa histórica da arte comum no campo da conservação, que privilegia a priori a arte e a história e caracteriza o primeiro tipo. “Values is most often used in one of two senses: first, as morals, principles, or other ideas that serve as guides to action (individual and collective); and second, in reference to the qualities and characteristics seen in things, in particular the positive characteristics (actual and potential). This paper is concerned directly with the second definition. The perspective taken here is an anthropological one, and it values the attempt to understand the full range of values and valuing processes attached to heritage—as opposed to the normative, art historical view common in the conservation field, which a priori privileges artistic and historical values over others.” MASON, Randall. Op. cit., p. 7.

8
A definição de tipologia adotada pelo autor, pressupõe a possibilidade de articular diferentes tipos ou categorias de valores, que entram muitas vezes em conflito. Tal emprego possibilita equilibrar distintas categorias de valores que se sobrepõem ou são descartadas, numa ou noutra perspectiva. Como exemplo, Mason cita a Carta de Burra que minimiza o valor econômico, porque são vistos como derivados de valores culturais e históricos. MASON, Randall. Op. cit., p. 8-13.

9
Option Value: The option value of heritage refers to someone’s wish to preserve the possibility (the option) that he or she might consume the heritage’s services at some future time. MASON, Randall. Op. cit., p. 13.

10
CARTA DE CRACÓVIA. Princípios para a conservação e o restauro do património construído, 2010 <http://www.igespar.pt>.

11
CONSELHO DA EUROPA. Convenção-quadro do conselho da Europa relativa ao valor do património cultural para a sociedade. Faro, 2005, <http://portal.iphan.gov.br>.

12
DIREÇÃO MUNICIPAL DE URBANISMO. Revisão do Plano Diretor Municipal do Porto. Valores patrimoniais: relatório de caracterização e diagnóstico, abr. 2018 <https://bit.ly/361aNm4>.

13
A paisagem urbana histórica é o assentamento urbano entendido como uma sobreposição histórica de valores culturais e naturais, que vai além da noção de Centro Histórico ou Conjunto, para incluir o contexto urbano mais amplo e sua configuração geográfica”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Recommendations for the Historic Urban Landscape, 2011.

14
“Conjunto de elementos arquitetônicos essenciais que associados e materializados com rigor disciplinar, permitem identificar a obra e respeitar a memória do seu processo histórico”. PDM, 2018.

15
REIS, Nestor. Parecer para o tombamento do Conjunto Histórico e Paisagístico do Município de Antonina. In Ata da 69ª reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, Iphan, 25 jan. 2012.

16
KUHL, Beatriz (org.). Gustavo Giovannoni: textos escolhidos. Cotia, Ateliê Editorial, 2013.

17
Decreto que regulamenta a Lei 14. 794/2016, sobre o tombamento do patrimônio de Curitiba <https://leismunicipais.com.br/>.

sobre as autoras

Elizabeth Amorim de Castro é arquiteta e urbanista, doutora em História (UFPR, 2010), professora adjunta do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (UFPR). Pesquisa a História da Arquitetura e Urbanismo, com ênfase nos temas: Patrimônio Cultural e Urbanização/ Arquitetura de Curitiba. É autora do livro Morar nas Alturas!, entre outros. Atualmente, integra o Conselho do Patrimônio Cultural de Curitiba.

Maria da Graça Rodrigues Santos é arquiteta e urbanista, doutora em Estruturas Ambientais Urbanas (USP). Estágio de pós doutorado em andamento (Ppggeo UFPR). Pesquisadora do ambiente urbano, com ênfase em preservação e desenvolvimento urbano; legislação urbana; teoria e história da arquitetura e urbanismo; teoria da preservação. Co-autora do livro Da sociedade moderna à pós-moderna no Brasil.

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253.08 patrimônio
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253

253.00 cenografia

João Mendes Ribeiro: viver cenas e(m) paisagens

Elizabeth Lopes, Marta Bogéa and Nathalia Valença Duran

253.01 habitação e covid-19

Os reflexos da pandemia do Covid-19 nas moradias da população de baixa renda

Luiz Antonio Perrone Ferreira de Brito

253.02 morfologia urbana e segregação socioespacial

O desafio de caracterizar as localizações das classes populares

Cartografias das transformações do Alto Tietê Cabeceiras SP entre 2006 e 2016

Jonathas Magalhães Pereira da Silva, Isabella Freitas da Silva Oliveira, Thaina Isabela Silva and Camila Garcia Kuhl

253.03 arte urbana

Street River

Natureza e cores

José Ferreira Junior, Lucilinda Ribeiro Teixeira and Will Montenegro Teixeira

253.04 concursos de arquitetura

O julgamento nos concursos de arquitetura

Fabiano Sobreira

253.05 mercado imobiliário

Produção imobiliária na “capital do pré-sal”

Euforia, vacância e demanda reprimida

José Marques Carriço, Clarissa Duarte de Castro Souza and Renata Sioufi Fagundes dos Santos

253.06 políticas públicas e favela

Escalas de ação política e os projetos de urbanização de favelas

O estudo de caso do Complexo do Alemão, Rio de Janeiro

Camila Carvalho and Nuno André Patrício

253.07 vazios urbanos

Análise dos vazios urbanos infraestruturados

Oportunidade de adensamento populacional e absorção de população em área de risco de deslizamento: cenários para Nova Friburgo (RJ) de 2015 a 2050

Carlos Leite, Andresa Ledo Marques, Wilson Levy and Ana Wernke

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