No último domingo, em São Paulo, faleceu a socióloga Maria Ruth Amaral de Sampaio. Professora Titular da Faculdade de Arquitetura Urbanismo da USP, onde lecionou por quase cinco décadas e que dirigiu entre 1998 e 2002, ela dedicou a vida à docência, aos estudos de arquitetura, urbanização e habitação social e ao direito fundamental de todos à moradia.
Formada em Ciências Sociais em 1956 pela antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Maria Ruth viveu talvez os anos de ouro do projeto uspiano calcado na colaboração entre distintos âmbitos das ciências, entre universidade e escola pública, entre vida acadêmica e vida nacional.
O momento de sua formação coincide com enorme impulso de revisão critica das interpretações do Brasil então disponíveis, com base em pesquisas empíricas metodicamente conduzidas, com recortes precisos e teorias a eles adequadas. Exemplares desses anos são trabalhos realizados por alguns de seus professores no curso de ciências sociais: estudos de comunidade, como os de Emilio Willems sobre Cunha (1947) e sobre Buzios (1952), este último em parceria com Gioconda Mussolini; estudos sobre cultura afro-brasileira e relações raciais de Roger Bastide, como a grande pesquisa que coordenou ao lado de Florestan Fernandes sobre Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo (1955), envolvendo Oracy Nogueira, Virginia Bicudo, Aniela Ginsberg e dezenas de jovens pesquisadores; ou trabalhos a respeito de organização e mudança social entre variados grupos indígenas, como os de Florestan sobre os Tupinamba (1949 e 1952), o de Egon Schaden sobre os Guarani (1954) e outros.
Nesse inicio dos anos 1950, na verdade, além de desenvolvimentos importantes no campo da etnografia, começava a tomar corpo na USP a chamada escola sociológica paulista. Um de seus marcos foi em 1954 – Maria Ruth ingressara na faculdade em 1952 – quando o retorno de Roger Bastide à França levou à nomeação de Florestan Fernandes como catedrático de Sociologia 1. Tendo como assistentes Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Renato Jardim Moreira e Marialice M. Foracchi, a mudança representou uma inflexão importante em relação ao que consideravam excessivamente livresco e generalista na herança dos professores estrangeiros que haviam fundado a Faculdade. Tratava-se agora de estimular a investigação sociológica especializada com o desenvolvimento de pesquisas originais sobre assuntos considerados relevantes para o país, em sintonia com os influxos de desenvolvimento econômico e transformação social, especialmente dramáticos em São Paulo.
Colega ou aluna de todos eles e de outros, como Maria Isaura Pereira de Queiroz, Juarez Brandão Lopes, João Baptista Borges Pereira, Ruth Cardoso e Eunice Ribeiro Durham, foi nesse vibrante espaço intelectual que Maria Ruth se formou. Era um momento de consolidação da sociologia como ciência e profissão, no interior do qual um conjunto expressivo de mulheres – que sempre representara parte substantiva do corpo discente da FFCL, tamanha a importância das licenciaturas em seu interior – viria a se afirmar no corpo docente da Universidade de São Paulo.
Como alguns de seus colegas, Maria Ruth enveredou pelos estudos da realidade urbano-industrial emergente. Recém-formada, ingressou no curso de especialização em planejamento urbano oferecido por Anhaia Mello na FAU USP, no interior do qual conheceu também de perto os trabalhos do Padre Lebret e de Economia e Humanismo na cidade. Em 1958, a convite do ex-professor da FFCL Roger Bastide, embarcou para nova especialização em Paris, aprofundando-se nos estudos de sociologia junto a École Pratique des Hautes Études da Sorbonne. Aluna do sociólogo Georges Gurvitch, por quem sempre nutriu enorme admiração, foi então que pela primeira vez tomou contato com as pesquisas do sociólogo urbano Paul-Henri Chombart de Lauwe sobre moradia e família entre a população operária de Paris. A estadia de Maria Ruth na Franca coincide com a recente publicação de alguns dos principais escritos desse discípulo de Mauss, Halbwacks e dos sociólogos de Chicago: sua tese de doutorado sobre Paris et l’agglomération parisienne (1952), e os livros La vie quotidienne des familles ouvrières (1956) e Famille et Habitation, esse ultimo em dois volumes (1959-1960).
Apos o retorno ao Brasil em 1959, Maria Ruth inicia o mestrado na FFCL, procurando justamente relacionar os estudos sociológicos com a prática do planejamento urbano. Pouco depois, logo após a reforma pedagógica de 1962, passa a colaborar com a FAU, como auxiliar de pesquisa do professor Nestor Goulart Reis Filho, arquiteto que acabara de se graduar em ciências sociais, e que iniciava a sua pesquisa de doutorado sobre evolução urbana no Brasil. Colaborando desde o inicio com a disciplina de Fundamentos Sociais da Arquitetura e do Urbanismo, então liderada por Juarez Brandao Lopes, Maria Ruth se junta ao final dos anos 1960 ao professor Carlos Lemos, que desde 1964 vinha desenvolvendo estudos pioneiros sobre habitações autoconstruídas na periferia de Sao Paulo, no interior da disciplina eletiva que criara junto ao Departamento de Historia da FAU sobre Habitação Popular no Brasil. O envolvimento de Maria Ruth na disciplina repercutiu no modelo de pesquisa adotado, mas também para recolocar o problema da habitação para além das questões de arquitetura e técnica construtiva, valorizando aspectos ligados a planejamento urbano e política pública, o que compreendia uma série de aspectos ainda pouco examinados, como as formas de uso e entendimento da moradia, a questão da grande escala e dos serviços coletivos, a organização social das comunidades, o papel intermediador dos especialistas. A própria ideia de pesquisa social, conforme revelam as mudanças dos programas da disciplina ao longo dos anos, parece ter sido refinada naquele momento: pensada no curto prazo dos semestres letivos, envolvendo a atuação em campo dos estudantes, ela agora se afirmava no âmbito científico por sua dimensão aplicada, isto é, por sua capacidade de produzir dados concretos e repercutir sobre a ação governamental e a opinião pública no setor da habitação, da sociabilidade e dos níveis de vida populares.
Além das 1320 casas levantadas com Lemos e dezenas de alunos da FAU ao longo dos anos, Maria Ruth desenvolveu o seu doutorado, com orientação de Nestor Goulart, justamente nessa fronteira: Metropolização: estudo da habitação popular paulistana, titulo de sua tese apresentada em 1972, é um exemplo do esforço de entendimento das condições de moradia na cidade como efeito de seu processo peculiar de metropolização: diferentemente de outras cidades, como o Rio de Janeiro, o Recife ou Belém, a autoconstrução paulistana relacionava-se ao surgimento de um poderoso mercado de terra urbana voltado a camadas populares organicamente vinculadas às migrações internas, à expansão imobiliária e à mobilidade sócio espacial que vinham constituindo a grande metrópole industrial brasileira.
Essa parceria entre Carlos e Maria Ruth no estudo da habitação atravessou as décadas, um alimentando e completando no outro o interesse recíproco pelos fatos arquitetônico e social da moradia, em seus precedentes históricos e manifestações contemporâneas. Não custa lembrar o episodio pessoal que me levou a conhecê-los em 1990. Eu morava no Recife, formara-me no ano anterior em arquitetura pela Universidade Federal de Pernambuco, e continuava envolvido em um projeto de pesquisa sobre casas de madeira “autoconstruídas” no Pina e em Brasília Teimosa. Eram anos em que ainda nos comunicávamos por meio de carta e telefone de fio. Por recomendação do professor Geraldo Gomes da Silva, escrevi ao seu antigo orientador de mestrado e doutorado na FAU a respeito da possibilidade dele vir a me orientar no desenvolvimento de um projeto de mestrado que nascera de meu TFG sobre vilas operarias na região metropolitana do Recife. Os livros de Carlos Lemos eram então obrigatórios a quem quer que se dedicasse a pesquisa em história da arquitetura no Brasil naqueles anos. Já havia lido muitos deles na graduação: O que é arquitetura, O que é patrimônio histórico, Arquitetura brasileira, História da casa brasileira e Alvenaria burguesa (Cozinhas etc só bem depois). Escrevera-lhe uma longa carta de intenções, incluindo uma primeira versão do projeto de pesquisa. Ele me respondeu dizendo não poder assumir minha orientação dado o número excessivo de alunos sob sua responsabilidade naquele momento, mas que comentara a meu respeito com uma colega socióloga, que manifestara interesse pelo projeto, pedindo que lhe telefonasse assim que pudesse. Obviamente fiquei muito honrado com sua atenção, mas também em pânico em ter que falar em viva voz com a professora Maria Ruth Amaral de Sampaio, com cujo trabalho ainda não tinha tomado contato. Obviamente, pra não passar vergonha, fui a biblioteca atrás do que pudesse descobrir a seu respeito, e lhe telefonei. Quem conheceu Maria Ruth sabe de sua enorme elegância no trato, de sua voz firme e direta, de seu espirito generoso e pragmático. Depois de duas ou três frases, disse-me que eu deveria me inscrever no processo e que me aceitaria com prazer como orientando caso eu viesse a ser selecionado. Ate hoje guardo com gratidão, e enorme afeto o gesto do professor Carlos Lemos ao me apresentar a esta a que não somente – eu viria a descobrir – ele se associaraem longuíssima parceria acadêmica, mas em sólido vínculo de amizade. Com gratidão também por ter me apresentado a orientadora mais fascinante, mais acolhedora que eu jamais poderia ter tido. E não somente pela orientadora que ele me apresentou, mas pelo privilégio de ter podido desfrutar de sua amizade por mais de trinta anos.
São tantos os momentos que me vêm à memória nesses dias de despedida da querida Maú, que corro o risco de tornar esse relato por demais sentimental. Como da primeira vez em que fomos a Heliópolis com os alunos da disciplina de Habitação popular paulistana conhecer o bairro e conversar, a pedido da comunidade, sobre sua arborização. As lideranças locais nos conduziram de cima a baixo pelas vielas e casas que não paravam de se adensar, preservando apenas as vias publicas, os campinhos de futebol e um ou outro pedaço, como aquele em que a associação de moradores se instalara. Poucas eram as ruas pavimentadas em 1991; havia areia, barro e lama em toda parte e confesso que me assustei quando vi Maria Ruth descer de seu carro usando lindo tailleur amarelo e salto altíssimo. Durante a graduação no Recife, não somente por segurança, mas por achar que fazia bem pra observação participante nas favelas que pesquisávamos, eu sempre procurava me vestir de maneira mais casual. Claro que não tinha jeito, e vez ou outra um conhecido gritava, “Ei galego! Tudo bom?”, sabotando o meu disfarce. Aos poucos fui aprendendo duas coisas sobre Maria Ruth que me ajudaram a situar aquele modo de se apresentar em Heliópolis. A elegância no traje, no trato, na postura eram um traço permanente de sua personalidade, quase uma segunda natureza, não importando onde ela estivesse – num evento social, em casa, caminhando na rua com o cachorrinho Pereque, na FAU, num congresso acadêmico ou em uma favela; sentia-se tão à vontade naquele ambiente que nada lhe sugeriria mudar o figurino. Em segundo lugar, é importante observar, o trabalho de Maria Ruth nos bairros e habitações populares, como Heliópolis ou o Edifício União no Bom Retiro, ultrapassava em muito o interesse acadêmico; visava melhorias reais e se ancorava na aliança estabelecida com os moradores locais e em seu papel mediador em relação à universidade, ao poder público e às elites. Porque era reconhecida como tal – aliás, sem a autorização da prefeitura a comunidade de Heliópolis nomeara e emplacara uma rua nos arredores da Associação de Moradores como Rua Maria Ruth – a invisibilidade não fazia qualquer sentido. O contato de Maria Ruth com muitas dessas comunidades, aliás, iniciara-se como representante do Estado: ainda nos anos 1970, ela foi assessora do Secretário de Educação do Estado de São Paulo, José Bonifácio Coutinho Nogueira, e do presidente da Emurb, Nestor Goulart Reis Filho; nos anos 1980, coordenou a atuação de estudantes de arquitetura e engenharia na periferia do Município no âmbito do Projeto Anchieta, assessorou a Emurb nos Programas Promorar, Properiferia e Profavela, e, entre 1983 e 1988, foi consultora da Presidência da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo, a Cohab-SP. Viam-na como uma aliada no interior da máquina pública, procuravam-na quando das negociações por investimentos, e não me esqueço da ocasião em que, já diretora da FAU, interpelada por seus amigos de Heliópolis atormentados por uma ordem judicial de reintegração de posse de uma grande gleba da USP no bairro, ela intermediou pessoalmente, junto à Universidade, o direito daquelas famílias há décadas ali instaladas. Mais do que uma cientista, aos olhos da comunidade ela era uma aliada, não representava ninguém, nem a ilusão de neutralidade, ela tinha uma história de vida ao seu lado, e tinha um nome: era Maria Ruth.
De fato, Heliópolis se urbanizara enquanto Maria Ruth passava da pesquisa acadêmica às políticas públicas em habitação. Conhecera a sua gênese, portanto, na condição de especialista a serviço de organismos públicos atuantes no setor. Foi só anos depois que o tema de sua tese de livre docência se impôs: Heliópolis, o percurso de uma invasão, defendida em 1991, constitui-se talvez no mais amplo trabalho a respeito das primeiras décadas de formação daquela que se tornaria “a maior favela paulistana”. Com base em vasta documentação oficial, pesquisas sociais, relatos de moradores, observação direta, diários de campo, anotações de assembleias e reuniões entre comunidade e poder público, mais uma vez a questão da terra urbana, dos loteamentos irregulares e da moradia precária vinha a tona, agora, porém, pensada à luz dos conflitos e conquistas dos movimentos sociais em relação ao Estado.
1991 foi o ano em que iniciei os meus estudos de mestrado na FAU, concluídos em 1997 com a defesa de minha Tese de Doutorado. Lembro-me do entusiasmo com que ao longo dos anos 1990 Maú conduziu no âmbito da sequência de Fundamentos uma série de projetos de pesquisa coletivos, um após o outro – “Transformações urbanas e mercado de trabalho”, “Heliópolis, de favela a bairro”, “Habitação econômica e arquitetura moderna no Brasil, 1930-1964”, “Os profissionais da cidade” – nos quais reunia colegas e bolsistas, promovia grupos de estudo, encontros acadêmicos, redes de pesquisadores, organizava inventários, coletâneas e outras publicações. No ano seguinte, ela se tornaria diretora da FAU. Eu começara a dar aulas em São Carlos um pouco antes, e enveredei por outras frentes de trabalho. Nem por isso perdemos o contato.
E quando em meados de 2003 fui aprovado em concurso docente para a sequência de Fundamentos da FAU, na vaga criada quando de sua aposentadoria um ano antes, retomamos o contato em outro patamar. Ela e o professor Celso Lamparelli convidaram-me a colaborar na disciplina de Teoria do conhecimento aplicada à arquitetura e urbanismo, que ministravam juntos no curso de pós-graduação. Durante cinco anos, tive a honra de tê-los como colegas de sala de aula, e a confiança e o incentivo com que fora recebido por ambos naquele momento foi o melhor ponto de apoio em meu início de carreira na FAU. Viríamos a colaborar também em novos empreendimentos acadêmicos: no trabalho de extensão Cortiço Vivo, que ela conduziu junto à comunidade do cortiço vertical da rua Sólon no Bom Retiro; no projeto internacional apoiado pela Unesco “Les Mots de la Ville”, liderado por Christian Topalov e Stella Bresciani; no Projeto Temático Fapesp, “São Paulo: os estrangeiros e a construção da cidade”, liderado por Ana Lanna.
Deles, talvez aquele em que menos tenha podido colaborar, foi justamente aquele a que mais ela se devotara: o do edifício da rua Sólon. Seja como for, tenho orgulho de ter sido o primeiro a falar-lhe de sua existência. Em algum momento de 2002, passeando pelo Bom Retiro, deparei-me com aquele arranha-céu em concreto armado, visivelmente inacabado e inteira e informalmente ocupado por moradores. O aspecto de cortiço contrastava com a circunstância de obra abandonada pelo mercado imobiliário e comentei com ela a respeito. Não fazia ideia do que ali poderia vir a se tornar, mas no fim de semana seguinte ela me ligou para dizer que lá estivera com Herbert, seu marido, e que ela iria montar um projeto de extensão de requalificação do edifício, envolvendo os moradores além de outros professores, especialistas e estudantes da USP. Não deu outra: em pouco tempo, Maria Ruth já havia montado um grupo de trabalho envolvendo as 42 famílias residentes, a FAU, a Faculdade de Saúde Pública, a Escola Politécnica e o Centro Gaspar Garcia e elaborado um plano de requalificação do cortiço. Pouco tempo depois, envolveria um grupo de estudantes da USP na realização de uma enquete detalhada das condições de vida e habitação no prédio. Em seguida, conseguiu a elaboração e aprovação de projetos de instalação elétrica, hidráulica, de elevadores e equipamento de combate a incêndios; angariando recursos privados para a execução de uma ou outra demanda. Mais adiante, por intermédio do então Secretário Municipal de Habitação, o atual deputado Paulo Teixeira, conseguiu a regularização cadastral do imóvel, com a aprovação do primeiro usucapião urbano do país; viria ainda a envolver o professor Paulo Helene, da Poli, na confecção de minucioso dossiê das condições da estrutura de concreto e em projeto de reforço da mesma. Não por outra razão, em 2008, o projeto que ainda tomaria vários anos da vida de Maria Ruth, recebeu o prêmio Deutsche Bank/Urban Age, no valor de US$ 100.000,00, inteiramente destinado a execução das obras necessárias (1).
Conduzido por ela incansável e discretamente, que visitava o imóvel todos os domingos com o marido, que lidava com a comunidade com a mesma seriedade com que se preocupava com a formação dos alunos e cativava a participação dos colegas, o processo inteiro é o retrato de uma vida. Da vida dessa mulher que nasceu no seio da comunhão paulista, filha de Antônio de Paiva Sampaio e Maria Lurdes de Souza Barros e Amaral de Sampaio, descendente de bandeirantes, cafeicultores, militares e artistas, que formada no Ginásio Estadual Caetano de Campos e na Universidade de São Paulo, fez de suas origens de classe a possibilidade de atravessar de um extremo a outro, pelo estudo e pela ação, essa sociedade marcada pela exclusão, em favor do direito à cidade. Com que intensidade vivia sua autonomia intelectual e profissional enquanto mulher! Com que entusiasmo acompanhava as conquistas dos movimentos de moradia! Com que alegria via jovens alunos negros ou da periferia ingressarem na universidade publica, ou ascenderem profissional ou socialmente.
Claro que sou suspeito para falar a seu respeito, até porque de uma relação professor-aluno, nossa amizade desdobrou-se em outros níveis, menos hierárquicos, sempre mais descontraídos, cada dia mais pessoais. Passara a encontra-la e a Herbert em outras situações: nas grandes e pequenas festas de aniversário que fazia anualmente em sua casa, em minhas próprias festinhas de aniversario, à beira de sua piscina quando meus irmãos me visitavam do Recife, em um jantar de domingo em restaurante badalado, em um concerto ou outro a que me convidavam no Cultura Artística, em passeios e confraternizações durante congressos acadêmicos no Recife, em Porto Alegre, em Salvador, em Chicago, em Istambul, ou em Paris. Quando lá residi em 2015, por volta do outono, ela e Herbert, austríaco de nascimento, fizeram sua viagem anual à Europa e demoraram-se alguns dias na cidade. Uma noite assistimos o réquiem de Mozart executado pelo coro da igreja de Saint-Germain-de-Pres in loco, num outro dia fomos juntos visitar a Cite de l’Architecture et du Patrimoine no Trocadero, e durante a jornada anual do patrimônio acompanhamos um longo roteiro de visita aos lindos conjuntos HBM do 20º Arrondissement, que se prolongou na travessia do parque dos Buttes Chaumont até o topo, onde eu morava, e onde comemos uma quiche feita em casa. Segundo ela, “nos divertimos horrores”, e é verdade: nós nos divertimos horrores, Maú! Sua alegria, sua generosidade, seu carinho, fizeram toda diferença em minha vida! Mas eu ainda me surpreendo quando me lembro que naquele dia você, já com 80 anos e o indefectível sapato de salto alto, não se queixou um só minuto das longuíssimas caminhadas que fizemos!
Universidade de Princeton, 23/11/22
José
notas
NE – O presente artigo não passou pelo processo de avaliação cega por pares e sua publicação em Arquitextos, decisão pessoal do editor da revista, se dá pela relevância da homenageada e pelo formato do texto.
1
Para maiores detalhes do episódio, ver: CRUZ, Fernanda. Ocupações: de cortiço em ruínas a vencedor de prêmio internacional de moradia. Agência Brasil, Brasília, 08 set. 2015 <https://bit.ly/3EFKMtp>.
sobre o autor
José Tavares Correia de Lira foi orientando de Maria Ruth Amaral de Sampaio na FAU USP, entre 1991 e 1997. É professor titular do departamento de história da arquitetura e estética do projeto da FAU USP e atualmente atua como professor e pesquisador visitante da Universidade de Princeton e Diretor (licenciado) do Centro MariAntonia da USP. É autor de Warchavchik: fraturas da vanguarda (Cosac Naify, 2011) e O visível e o invisível na arquitetura brasileira (DBA, 2017), e coorganizador, entre outros, de Caminhos da arquitetura, de Vilanova Artigas (Cosac Naify, 2004) e Arquitetura e escrita: relatos do oficio (Romano Guerra, no prelo).