No planejamento urbano de uma cidade questões como mobilidade, habitação e infraestrutura urbana são palco de grandes discussões e tornam-se diretrizes essenciais na produção do espaço, tendo em vista que a população mundial se torna cada vez mais urbana (1). O acelerado crescimento dos centros urbanos associado às expressivas mudanças climáticas que vêm ocorrendo nos últimos anos (2), apontam a necessidade de se discutir e incorporar a sustentabilidade na organização espacial das cidades, considerando o aumento da temperatura média mundial, no chamado aquecimento global, que ocasionou, dentre outros eventos (3), no derretimento de calotas polares e no aumento das ocorrências de inundações nos centros urbanos consolidados.
Relacionado à repercussão negativa das mudanças climáticas, outro desafio a ser discutido para a inserção da sustentabilidade na produção e ordenação territorial, é a própria consolidação dos grandes centros urbanos. A rigidez da infraestrutura urbana consolidada torna-se um obstáculo para a adoção de medidas sustentáveis, tendo em vista que sua alteração é de difícil ocorrência e custosa em termos econômicos e sociais (4), além de evidenciar uma debilidade na maneira com a qual as questões ambientais têm sido abordadas no planejamento urbano das cidades (5).
Do ponto de vista institucional, embora existam medidas e incentivos ambientais em algumas legislações, estas se apresentam insuficientes para amenizar os impactos das mudanças climáticas, como pode ser observado no expressivo número de desastres ambientais em centros urbanos consolidados (6). Este cenário reforça a necessidade de mudança no modo como se compreende e produz o espaço, indicando a importância de se discutir estratégias sustentáveis que promovam o uso eficaz dos recursos naturais, como a implantação de sistema viário paralelo aos ventos, adoção de afastamentos laterais condizentes com a densidade de edificações existentes e a priorização de parques urbanos nas cidades (7).
Em outubro de 2016 a Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável, conhecida como Habitat 3 (8), adotou a Nova Agenda Urbana com o objetivo de definir padrões globais para o alcance de um crescimento urbano-ambiental, que atenda medidas sustentáveis. O documento propõe dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável — ODS, oferecendo orientações para planos de ações e visa uma conscientização global. A proposta, baseada no uso sustentável do solo e de recursos naturais, visa cidades compactas que adotam, dentre outras medidas (9), a redução da malha viária e consequentemente a redução do uso do automóvel, um dos principais emissores de poluentes atmosféricos e a redução de áreas impermeabilizadas, ocasionadas pela constante expansão e implantação de infraestrutura urbana.
Diante do exposto, este artigo pretende discutir o uso estratégico dos espaços públicos como alternativa ambiental para mitigação dos impactos das mudanças climáticas nos centros urbanos consolidados. Estes espaços, aqui entendidos como potenciais sustentáveis, possibilitam intervenções nos contextos rígidos que compõem os centros urbanos. Para tanto, a fim de direcionar a proposta, serão ponderados dois dos dezessete objetivos propostos pela Nova Agenda Urbana, sendo eles as ODS’s onze e treze, que visam “cidades e comunidades sustentáveis” e “ação contra a mudança global do clima” respectivamente. A escolha destes objetivos fundamentou-se na avaliação de suas relações com o planejamento urbano das cidades, fundamentando o objetivo deste artigo. O trabalho abordará a importância da integração do planejamento ambiental e urbano para a garantia de um desenvolvimento sustentável das cidades, buscando a possibilidade de uma naturalização extensiva (10) em centros urbanos consolidados.
Contextualização da problemática urbano-ambiental
A relação do homem e da natureza é questionada desde 1962, com Rachel Carson em sua obra A primavera silenciosa (11). O livro que denuncia o uso de pesticidas e problematiza seus efeitos no meio ambiente e na saúde humana rendeu à bióloga uma série de retaliações das indústrias químicas, resultando em um discurso no Congresso Americano de 1963, no qual Rachel reivindicou novas políticas em defesa do meio ambiente (12). A partir de então, considerando o crescimento progressista da época, que acontecia desde o final da Revolução Industrial, a preocupação mundial acerca dos efeitos da degradação ambiental no desenvolvimento das cidades foi palco de eventos e debates que se sucederam como pode ser observado:
- Em 1972 aconteceu a Conferência de Estocolmo, realizada pela Organização das Nações Unidas — ONU em que se discutiu temas relacionados à poluição atmosférica e o uso dos recursos naturais. Neste mesmo ano, o Clube de Roma produziu o relatório “Os limites do crescimento”, descrevendo as consequências a longo prazo (cem anos) do crescimento da população e do progressivo uso dos limitados recursos naturais;
- Em 1987 as nações mundiais inauguraram o Protocolo de Montreal com um tratado internacional que abordou o buraco que se formava na camada de ozônio, apontando para a necessidade de inversão desta situação. Além disso um relatório elaborado pela ONU apontava para a incompatibilidade entre os padrões de consumo vigentes na época e definia o desenvolvimento sustentável: “Nosso Futuro Comum”;
- Em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente — ECO 92 cria a Agenda 21, baseada em um programa de ação que viabiliza um novo padrão de desenvolvimento ambiental racional, conciliando métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica. O documento apresentava a mais abrangente tentativa já realizada, com a participação de 179 países;
- Em 2002 o Conselho de Informações sobre Biotecnia — CIB incorpora a Agenda 21 no ambiente construído, promovendo construções sustentáveis em países em desenvolvimento. Seu objetivo era o estabelecer um processo holístico para ambientes naturais e construídos;
- Mais tarde, em 2015, o Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática — COP 21 em Paris, discutindo ações contra o aquecimento global e os efeitos das mudanças climáticas;
- Em outubro de 2016, em Quito, foi elaborada a Nova Agenda Urbana com o objetivo de estabelecer condutas para a maneira com o qual se tem planejado cidades e aglomerados humanos. O documento resultante da Habitat 3 define padrões globais para o alcance de um crescimento urbano/ambiental, que atenda medidas sustentáveis.
Embora as questões relacionadas ao meio ambiente seja uma discussão antiga, com inúmeras metas e resoluções estabelecidas a cada encontro mundial, os problemas climáticos ocorrem progressivamente a cada ano, tornando mais evidente a discussão a respeito das mudanças climáticas.
Em uma escala geral, embora tenham sido grandes os esforços dos tratados internacionais, o que se observa nos últimos quatro anos, é que as ações antrópicas contribuíram para a regressão dos compromissos climáticos e ambientais, conforme os relatórios do IPCC de 2019 (13), e seus efeitos podem ser observados principalmente na esfera ambiental. Este cenário reflete como a questão da sustentabilidade, embora recorrente, vêm sendo pouco priorizada.
Questões ambientais x planejamento urbano
Para se discutir a cidade e as mudanças necessárias para alcançar um desenvolvimento sustentável é preciso compreender que a forma como se produz uma espacialidade, seja ela pontual ou de grande escala, gera consequências positivas ou negativas. O modelo de cidade compacta (14), já mencionado anteriormente, é um exemplo positivo de boas práticas urbanísticas e por consequência sustentáveis. A proposição de uma malha viária reduzida (grande escala) e a locação da mão de obra próxima ao seu local de trabalho (escala pontual) são medidas de um planejamento urbano eficiente e sustentável, tendo em vista a redução de poluentes e a qualidade de vida do trabalhador, dentre outros benefícios físicos e sociais (15). Entretanto, conforme pode ser observado nos grandes centros urbanos, a construção de edifícios revestidos em vidro ou a produção de espaços que atendam exclusivamente às legislações urbanas e/ou entendidos como ferramenta de valorização imobiliária (16), retratam um desenvolvimento irrefletido e reforçam a necessidade imediata de transformação.
Atualmente, do ponto de vista institucional, a produção do espaço é fruto do parcelamento do solo que pode ocorrer, essencialmente, em duas modalidades distintas (17): o desmembramento e o loteamento. Partindo deste pressuposto, estas ações implicam, principalmente nos loteamentos, na doação de áreas públicas (18) que dão origem ao sistema viário, as áreas institucionais e os espaços livres de uso público, que podem ser classificados em parques, praças e áreas de lazer dos centros urbanos. Todavia, estes espaços de uso público não são tratados como potenciais sustentáveis, ao observar a sua implantação, uso e ocupação destas áreas nos centros urbanos consolidados. De um modo geral estas regiões apresentam uma infraestrutura predominantemente impermeável, com mobiliário urbano em concreto e baixa arborização. Por se tratar de uma concepção urbanística fundamentada em leis (19), estes espaços encontram-se por vezes fragmentados e obsoletos, ao se tratar de espacialidades com baixas características atrativas e poucos elementos convidativos à permanência (20).
O desafio de se construir espaços que ofereçam um maior conforto ambiental para a qualidade de vida urbana, está no atual modelo de planejamento urbano, fundamentado em interesses políticos. Isso se justifica na lógica pré-estabelecida de planejamento que, por meio de ferramentas jurídicas, estimula um atendimento irrefletido de quantitativos e normas, ditando um crescimento e desenvolvimento padronizado, massificado e desorientado das cidades. Este controle e direcionamento da produção do espaço desassociado a um desenvolvimento sustentável, reforça os acentuados efeitos negativos das variáveis climatológicas e evidenciam a deficiência das atuais legislações urbanísticas no que diz respeito à sustentabilidade.
Isto posto, fica evidente a necessidade de revisão e criação de indicadores ambientais nas legislações urbanísticas que regulamentam o uso e a ocupação do solo, de modo que atendam a uma demanda sustentável, contrapondo o raciocínio existente de que as questões relacionadas ao meio ambiente são obstáculos ou burocracias a serem superadas em um projeto urbanístico. Entende-se que a transformação deve partir não somente das leis, mas também da conscientização dos construtores e dos usuários do espaço, superando soluções e propostas limitadas às escalas pontuais. Embora existam algumas medidas que incentivam ações sustentáveis, como por exemplo o IPTU verde, do ponto de vista macro estas iniciativas ainda se apresentam brandas e precisam ser discutidas ainda na etapa de concepção urbanística da cidade, que antecede a criação de lotes e/ou edificações.
Discutir e propor, nas legislações de parcelamento do solo, medidas sustentáveis para a implantação, uso e ocupação das áreas públicas objetiva a criação de espacialidades de qualidade com benefícios sociais e ambientais, promovendo uma nova forma de concepção dos espaços públicos. Acredita-se, assim como Marta Adriana Bustos Romero (21), que por meio de uma concepção bioclimática à escala da cidade é possível uma inversão deste raciocínio, ao possibilitar um entendimento ambiental do espaço público, atingindo uma produção socioespacial de qualidade.
Planejamento estratégico: a utilização de espaços públicos como alternativa sustentável para os centros urbanos consolidados
Para além dos desafios intrínsecos entre as questões ambientais e o planejamento urbano, a aplicabilidade de um desenvolvimento sustentável se depara com mais um obstáculo, ao se observar o contexto consolidado dos centros urbanos. Nesse sentido, a importância do tratamento dos espaços livres de uso público é reforçada, tendo em vista que estas regiões se apresentam como alternativa espacial de tratamento ambiental (22). Estes espaços, ainda disponíveis na malha urbana estabelecida, são resultado de um parcelamento do solo que consiste em quantitativos em detrimento de uma qualidade. Assim como discutido anteriormente, esta metodologia de produção espacial não valoriza a importância social destas áreas, enquanto espaço público, e sua importância ambiental ao atender padrões fundamentados em ideais teóricos que desconsideram as particularidades de cada região (23). Segundo o estudo microclimático de Camila Araújo de Sirqueira (24), foi possível constatar que a inserção de vegetação e a adoção de áreas permeáveis na malha urbana influência diretamente no microclima de uma localidade. A metodologia, que consistiu na análise comparativa de algumas regiões da cidade de Belo Horizonte, mostrou que a associação de intervenções sustentáveis ao uso racional dos recursos naturais é capaz de influenciar um recorte de aproximadamente dez quadras em uma área de 360 mil metros quadrados.
Tendo tudo isso em vista, acredita-se que o ponto de partida para o planejamento sustentável dos espaços públicos é o diagnóstico destas áreas por meio do estabelecimento da influência da massa urbana na qualidade climatológica (25). Nas zonas urbanas as temperaturas tornam-se elevadas à medida em que as variáveis de adensamento, ou seja, a forma de ocupação do espaço desconsidera o aproveitamento de recursos naturais, favorecendo a criação de ilhas de calor (26). Nesse seguimento, Teresa Santos, Caio Frederico Silva, Bárbara Gomes Silva e Filipa Ramalhete (27) utilizaram a modelagem microclimática em ambiente de Sistema de Informação Geográfica — SIG, que adota um modelo digital de superfície associado às informações sobre a ocupação do solo e as condições climáticas da região estudada. Através da definição de um recorte, utilizou-se a mesma área considerando um contexto urbanizado (real) e um contexto sustentável (hipotético), para comparar a influência da inserção de vegetação na temperatura diária.
Os resultados demonstram que o logradouro verde, dotado de intervenções sustentáveis, apresenta uma mitigação da temperatura, especialmente entre os horários de 12h00 e 15h00. Assim, este método se apresenta como uma importante ferramenta para o processo de intervenções nos espaços públicos ao promover uma avaliação prévia dos seus efeitos no cotidiano da cidade, em que:
“A transformação de variáveis geográficas em indicadores de conforto permite transmitir informação de forma sucinta e clara, e deste modo apoiar estratégias de adaptação às alterações climáticas, essenciais num contexto de desenvolvimento urbano sustentável, sobretudo no apoio técnico para a formulação de políticas públicas que considerem o verde urbano como estratégia de mitigação do calor extremo” (28).
Isto posto, para o êxito das intervenções, a requalificação estratégica dos espaços públicos deve associar esta investigação à diretrizes projetuais que aproximem as variáveis ambientais às condições de conforto. Para tanto, a base para o processo de projeto urbano deve basear-se em um conjunto de medidas parametrizadas que explorem os recursos naturais e os integrem aos “múltiplos elementos envolvidos na arquitetura dos espaços públicos” (29). Indicadores legislativos devem abordar ações e parâmetros estratégicos de aproveitamento do solo, hidrografia, ventilação e vegetação. Sendo assim nos espaços públicos deve-se considerar:
- Uso racional do solo: envolve o tratamento e compatibilização da topografia natural do terreno, considerando o mínimo possível de movimentação de terra. Além disso, a taxa de permeabilidade a ser empregada em terreno natural deve relacionar-se a particularidade de cada região, ou seja, seu percentual deve ser flexibilizado de acordo com o contexto em que se insere: como em terrenos alagadiços e sujeitos a inundação ou em áreas de urbanização expressiva (30);
- Uso racional da hidrografia: implica no aproveitamento de recursos hídricos respeitando seus impedimentos ambientais, como as áreas de preservação permanente ao longo de nascentes e cursos d’água. A utilização de águas pluviais também é uma alternativa sustentável para áreas públicas, adotando sistemas de captação pluvial que reutilizem essa água na manutenção da vegetação (31);
- Uso racional da ventilação: relaciona-se a implantação e disposição dos elementos físicos estruturantes do espaço. Isto quer dizer que para que ocorra um aproveitamento da ventilação natural é necessário considerar o contexto consolidado do entorno, tirando partido das ações antrópicas, como os corredores de vento formados entre os edifícios. Além disso, a priorização de campos livres e parques verdes amenizam as ilhas de calor dos centros urbanos (32);
- Uso racional da vegetação: consiste na valorização da vegetação local existente e do sombreamento proporcionado por estes elementos. Além do apelo estético, a arborização proporciona maior conforto e bem-estar aos pedestres ao criar uma proteção à radiação solar, regulando a temperatura e umidade do ar. Sua importância se expressa nas paisagens urbanas áridas que compõem os centros urbanos e influencia diretamente no fluxo cotidiano das cidades (33).
Outro importante fator sustentável a se considerar nas diretrizes projetuais são os materiais empregados na construção dos espaços públicos. Atualmente estas áreas contam com elementos constituídos, majoritariamente, de concreto, metal e madeira. O uso aleatório destes materiais prejudica o desempenho ambiental destas espacialidades, sendo necessário a ponderação e conscientização de sua utilização, fundamentando-se nas suas propriedades térmicas como: a capacidade térmica, transmitância térmica e condutividade térmica. Ou seja, associado a um contexto estrategicamente planejado, os elementos que compõem praças, parques e áreas de lazer devem potencializar este conforto por meio de sua infraestrutura (34). Este cuidado reflete diretamente na qualidade ambiental dos espaços públicos, por meio de pisos e acabamentos termicamente adequados. Assim, do ponto de vista urbano, para a inserção de sustentabilidade deve-se considerar:
- Revestimentos: materiais porosos têm efeitos ambientais significativos em relação aos não porosos, pois permitem uma infiltração perene através do material. Além disso, o uso de materiais claros nos pisos é uma estratégia para mitigação dos efeitos da ilha de calor nos espaços públicos (35);
- Piso: uma pavimentação sustentável ou permeável, ajuda na mitigação dos impactos negativos da pavimentação convencional, reduzindo o escoamento de águas pluviais, melhorando a qualidade da água, reduzindo as inundações e aumentando a quantidade de águas subterrâneas. Também filtra e remove poluentes e cria comunidades mais sustentáveis (36).
A proposta de reunir um conjunto de orientações de desenho urbano pretende valorizar o potencial sustentável dos espaços livres de uso público, fragmentados ao longo da malha urbana (37), incentivando as boas iniciativas sustentáveis nas legislações urbanísticas de parcelamento do solo. A definição de parâmetros ambientais para estes espaços promove a inserção de áreas permeáveis e arborizadas na malha urbana estabelecida, além do uso eficaz dos recursos naturais para a produção ambiental e social destas espacialidades. Dentre outros benefícios (38), são previstos o aumento da umidade do ar, a diminuição da temperatura média diária e a redução dos focos de inundação nos centros urbanos consolidados.
Além da cidade de Porto Alegre, o município de Vitoria-Gasteiz, localizado na Espanha, também ilustra o desempenho exemplar em iniciativas sustentáveis e preservação ao meio ambiente (39). Embora trata-se de uma cidade consolidada, diretrizes sustentáveis foram adotadas e podem ser observadas na expressiva cobertura vegetal do município e no cinturão verde implantado no entorno do centro. As intervenções realizadas na sua malha urbana tiveram reconhecimento internacional quando a cidade foi eleita Capital Verde Europeia em 2012 (40). Os reflexos destas ações, embora locais, repercutem em escala global e reforçam a importância de se discutir o planejamento estratégico dos espaços livres de uso público como alternativa sustentável em centros urbanos consolidados.
Tendo tudo isso em vista, a proposição de diretrizes projetuais tem por objetivo conduzir construções, reformas e/ou intervenções sustentáveis em espaços públicos, buscando reduzir os impactos das mudanças climáticas na qualidade de vida urbana dos centros consolidados. Sua eficiência depreende de uma concepção abrangente que integra a determinação de parâmetros para a localização dos espaços livres de uso público, o uso racional dos recursos naturais, o posicionamento estratégico dos elementos construídos e a escolha consciente dos seus materiais, contrapondo o atual modelo de produção do espaço que dispõe sobre o atendimento quantitativo destas áreas. Acredita-se que essa metodologia se apresente como uma forma consistente de se alcançar a sustentabilidade urbana, mitigando os efeitos negativos das mudanças climáticas, ao relacionar-se com as metas estabelecidas para os ODS onze e treze, que consistem no aumento da urbanização sustentável, na redução do impacto ambiental negativo das cidades, entre outros (41).
A adoção de medidas sustentáveis em centros urbanos consolidados: barreiras e soluções
Para a aplicação de estratégias urbanísticas no planejamento de uso e ocupação do solo, como no caso das intervenções ambientais propostas para os espaços livres de uso público, se faz necessária uma avaliação hipotética de suas implicações, sejam elas positivas e/ou negativas. A reestruturação dos espaços públicos como medidas sustentáveis em centros urbanos consolidados pode resultar em ações efetivas para o conforto e bem-estar dos pedestres, bem como na mitigação dos efeitos negativos das mudanças climáticas (42). Todavia, há de se considerar que estas ações também podem se deparar com obstáculos teóricos e empíricos que vão desde um estudo preliminar à burocrática aprovação urbanística de um projeto. Afinal, como se pode quantificar algo que é qualificável?
Propor um novo modelo de planejamento urbano para os espaços livres de uso público provoca uma série de discussões a respeito de sua aplicabilidade prática em centros urbanos já consolidados, tendo em vista seu contexto estabelecido por um conservadorismo legislativo, que atualmente regula o parcelamento, uso e ocupação do solo. Embora as cidades apresentem em sua malha urbana certa regularidade legislativa quanto a disposição de vias e espaços públicos, o tratamento adequado das áreas livres enfrenta grandes desafios no que diz respeito à sua qualidade urbanística. A falta de integração de profissionais como arquitetos e urbanistas, geólogos e geógrafos, biólogos, engenheiros e demais profissionais ligados ao planejamento urbano, configura um grande obstáculo para o êxito de uma proposta de reestruturação.
Entender a legalidade destas intervenções implica na abordagem formal de estratégias bioclimáticas, estabelecendo normas e critérios para o planejamento e uso racional do solo em espaços livres de uso público. A metodologia de implantação de um novo modelo de planejamento destas áreas deve promover a integração dos diversos profissionais relacionados às questões urbanísticas e ambientais, tornando os parâmetros e diretrizes coerentes à realidade local e assim alcançar o objetivo de proporcionar conforto nos espaços livres de uso público. Um modelo bem-sucedido desta metodologia é a proposta do Plano Diretor de Infraestruturas Verdes criado para a cidade de Udon Thani, localizada na Tailândia. Seu desenvolvimento (43) reuniu arquitetos urbanistas, arquitetos paisagistas, cientistas e engenheiros de diversas áreas com o objetivo de criar soluções para mitigar os efeitos das enchentes e secas no município.
Outro ponto a se observar é a contradição intrínseca na criação de um planejamento estratégico baseado em diretrizes e parâmetros urbanísticos. A problemática dos atuais modelos de planejamento urbano se dá pelas padronizações decorrentes da excessiva carga de normas e critérios (44), por vezes, genéricos. Acredita-se que “esses padrões fundamentam-se em ideais teóricos e, em alguns casos, podem apresentar uma baixa aplicabilidade ao desconsiderar as particularidades de cada região” (45). Nesse sentido, com a racionalização e estratégias próprias que refutem a atual legislação urbanística, é possível se obter resultados positivos, principalmente para a minimização dos efeitos das mudanças climáticas. Ao se considerar as particularidades de cada região, com um conjunto de medidas flexíveis, o planejamento estratégico dos espaços públicos consiste no agrupamento de parâmetros de desenho urbano sustentável e normativas legislativas que viabilizem um desenvolvimento ambiental orientado. Entende-se que,
“A política urbana executada pelos municípios, através dos planos diretores, deve buscar um tratamento coletivo do espaço através de regras específicas que seguem as particularidades de cada região. Deste modo, deve-se estabelecer que flexibilizações criam situações específicas que objetivam resultados diferentes e opostos às padronizações empregadas pela excessiva carga de regulação genérica. [...] O objetivo disso é que se possa alcançar a efetiva democratização do espaço, com a criação de espacialidades adequadas à demanda local” (46).
Assim, a proposição de medidas sustentáveis em centros urbanos consolidados deve considerar como parte integrante do processo de planejamento estratégico dos espaços públicos, a dicotomia existente entre barreiras e soluções. É necessário compreender que, para além das situações aqui já apontadas, existem inúmeros outros obstáculos e saídas inerentes a todo processo de mudança. Deste modo, a adoção destas medidas sustentáveis na malha urbana estabelecida deve ser assertiva e planejada pelos diversos profissionais ligados ao planejamento urbano, pois seus reflexos são futuros com repercussões a longo prazo.
Conclusão
O objetivo deste artigo foi abordar a importância de um planejamento estratégico nos espaços livres de uso público, baseado nos princípios de sustentabilidade, previstos pelos ODS onze e treze, e sua aplicabilidade em centros urbanos consolidados. A reflexão acerca da produção de espaços públicos sustentáveis, dotados de medidas ecológicas que consistem, dentre outras, no aumento da arborização e das áreas permeáveis, além da adoção de materiais termicamente adequados para o mobiliário urbano, enfatiza o potencial ambiental destas regiões por vezes subestimados e aponta para uma possibilidade de intervenção na massa urbana já estabelecida. A proposição de medidas capazes de amenizar as mudanças climáticas se dá por meio de um conjunto de diretrizes projetuais que definem a implantação, parâmetros urbanísticos e o uso eficaz dos recursos naturais, com o objetivo de conduzir construções e intervenções sustentáveis em espaços livres de uso público. Propor uma política do solo ambiental visa, assim como na Nova Agenda Urbana, alcançar um desenvolvimento sustentável, capaz de superar os desafios urbanos impostos nos grandes centros consolidados.
Do ponto de vista institucional, a produção de espaços capazes de proporcionar uma qualidade de vida urbana desafia o legislativo e exige um planejamento inovador, que além de cumprir as normas propostas, promova um desenvolvimento sustentável e consciente. Nesse sentido, a viabilidade da proposta consiste, dentre outras medidas, na integração de profissionais relacionados ao planejamento para a proposição de efetivas intervenções sustentáveis nas legislações, refutando a parametrização quantitativa do atual modelo de planejamento. Este tipo de mudança demanda tempo e um amadurecimento da questão por parte das legislações, autoridades e sobretudo da população. Por fim, não assumir a responsabilidade, enquanto cidadão, ou esperar por mudanças significativas sem que haja uma conscientização coletiva é retroceder ao processo de desenvolvimento urbano, principalmente no âmbito ambiental. Proporcionar conforto ao usuário e promover um desenvolvimento sustentável trata-se de uma demanda real e recorrente, cujo impacto transcende a uma escala global.
notas
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STOCKER, T. F. et al. The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. IPCC 2013, Summary for Policymakers. Climate Change 2013 <https://bit.ly/3i6GqUC>.
3
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4
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5
CERON, Luciano Peske. Cidades: planejamento urbano e ambiental. Revista TAE, vol. 7, ano 2, jun. 2012 <https://bit.ly/3hWLRoU>.
6
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7
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8
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9
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10
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11
CARSON, Rachel [1962]. A primavera silenciosa. São Paulo, Gaia, 2010.
12
BONZI, Ramón Stock. Meio século de Primavera silenciosa: um livro que mudou o mundo. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 28, Curitiba, Editora UFPR, jul./dez. 2013, p. 207-215 <https://bit.ly/3gv8xw9>.
13
HURLBERT, Margot. et al. Climate Change and Land. IPCC 2019, Chapter 7, Summary for Policymakers. Climate Change 2019 <https://bit.ly/3XquOfh>.
14
RIBEIRO, Edson Leite; SILVA, Geovany Jessé Alexandre da; SILVEIRA, José Augusto Ribeiro da. Op. cit., p. 79.
15
GEHL, Jan; SVARRE Birgitte. A vida na cidade: como estudar. São Paulo, Perspectiva, 2018.
16
SILVA, Geovany J. A. et al. A construção de indicadores para a avaliação da qualidade do espaço urbano no Distrito Federal do Brasil. Pluris — 4º Congresso Luso-Brasileiro, São Carlos, 2010. Paper ID 276 <https://bit.ly/3XuTKSI>.
17
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei no 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras Providências. Brasília, Câmara dos Deputados, 1979, artigo 2º.
18
Idem, ibidem, inciso I do artigo 4º.
19
SOUSA, Gabriela Mara Batista de. A produção de espaços públicos qualificados e os limites impostos pela legislação: um estudo de caso em Belo Horizonte. Anais de la Asociación de Escuelas y Facultades Públicas de Arquitectura de América del Sur, Belo Horizonte, 2019 <https://bit.ly/3U07LoM>.
20
GEHL, Jan. Cidades para pessoas. 2ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2013.
21
ROMERO, Marta Adriana Bustos. Arquitetura Bioclimática do espaço público. Brasília, UNB, 2016.
22
Idem, ibidem.
23
SOUSA, Gabriela Mara Batista de. Op. cit.
24
SIRQUEIRA, Camila Araújo de. Estudo microclimático de recortes urbanos vegetados em Belo Horizonte — MG, através de modelagem micrometereológica. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte, UFMG, 2014.
25
ASSIS, Eleonora Sad. A abordagem do clima urbano e aplicações no planejamento da cidade: reflexões sobre uma trajetória. Anais do Encac-Elacac, Maceió, 5 a 7 out. 2005 <https://bit.ly/3V7wSXZ>.
26
GARTLAND, Lisa. Ilhas de calor: como mitigar zonas de calor em áreas urbanas. São Paulo, Oficina de Textos, 2010, p. 9-23.
27
SANTOS, Teresa; SILVA, Caio Frederico; SILVA, Bárbara Gomes; RAMALHETE, Filipa. Indicadores de conforto térmico para áreas verdes urbanas. Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Regional — 26 APDR Congress, Aveiro, 2019 <https://bit.ly/3V1AOtl>.
28
Idem, ibidem, p. 370.
29
SILVA, Geovany J. A. et al. Op. cit.
30
DUARTE, Denise Helena Silva. Op. cit.
31
FREITAS, Thyago Phellip. F. Influências das massas d’água em climas urbanos: primeiras reflexões. In: SEMCAC Seminário de Conforto no Ambiente Construído e Mudanças Climáticas: Clima urbano na dinâmica das cidades. Palmas, 2017 <https://bit.ly/3Exw2Nc>.
32
SOUSA, Joana Pack Melo. Influência da forma urbana na ventilação natural: um estudo de caso no cais José Estelita, Recife. Dissertação de mestrado. Recife, UFPE, 2014.
33
ALMEIDA JÚNIOR, Nicácio Lemes. Estudo de clima urbano: uma proposta metodológica. Dissertação de mestrado. Mato Grosso, UFMT, 2005.
34
LONDE, Patrícia Ribeiro. Sistema de espaços livres: uma avaliação da qualidade ambiental das áreas verdes de Patos de Minas/MG. Dissertação de mestrado. Uberlândia, UFU, 2015.
35
WINKLER, Greg. Green Facilities: Industrial and Commercial LEED Certification, McGraw-Hill Education; Edição: 1, 2011, p. 256.
36
WINKLER, Greg. Op. cit. p. 256.
37
PANERAI, Philippe. CASTEX, Jean. DEPAULE, Jean Charles. Formas Urbanas: a dissolução da quadra. Tradução Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Bookman, 2013.
38
OLIVEIRA, Ângela Santana. Influência da vegetação arbórea no microclima e uso de praças públicas. Orientador Flávia Maria de Moura Santos. Tese de doutorado. Mato Grosso, Instituto De Ciências Exatas UFMT, 2016.
39
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40
HOLANDA, Marina de. Como fazer cidade: Vitoria-Gasteiz Capital Verde 2012. Archdaily Brasil, São Paulo, mai. 2012 <https://bit.ly/3EX1h5F>.
41
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42
ROMERO, Marta Adriana Bustos. Op. cit.
43
TAGLIEANE, Simone. Entenda a importância de um plano diretor verde para o futuro das cidades. Blog da Arquitetura, fev. 2018 <https://bit.ly/3GHmIZU>.
44
BRASIL. Ministério Público. Guia do parcelamento do solo e da regularização fundiária urbana para municípios. Edição Guia do Solo. Revista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017 <https://bit.ly/3GI9o7C>.
45
SOUSA, Gabriela Mara Batista de. Op. cit., p. 1.
46
Idem, ibidem, p. 1.
sobre a autora
Gabriela Mara Batista de Sousa é pós-graduada em Arquitetura Bioclimática pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela mesma universidade, obtida em 2018. Explora em suas pesquisas a importância do planejamento urbano na qualidade de vida urbana, com ênfase na produção dos espaços públicos da cidade.
Ana Carolina de Oliveira Veloso é arquiteta e urbanista, mestre e doutora em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal de Minas Gerais, com período sanduíche na University Of California. Atualmente é professora na pós-graduação em Arquitetura Bioclimática: Desempenho Ambiental da Edificação da PUC MG e da graduação do Centro Universitário UMA.