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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo analisa intervenções arquitetônicas de conservação e valorização de áreas arqueológicas, revelando equívocos no reconhecimento e ressignificação dos vestígios, e desafios entre arqueólogos e arquitetos.

english
This article analyzes architectural interventions for the conservation and valorization of archaeological areas, revealing mistakes in the recognition and re-signification of the remains and the challenges between archaeologists and architects.

español
Este artículo analiza intervenciones arquitectónicas para la conservación y valorización de áreas arqueológicas, revelando errores en el reconocimiento y resignificación de los restos y los desafíos entre arqueólogos y arquitectos.


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COSTA, Tatiana de Carvalho. Arquitetura para a arqueologia. Desafios na conservação e valorização de áreas arqueológicas. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 270.04, Vitruvius, nov. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.270/8649>.

Integridade das evidências arqueológicas e sua ressignificação através da arquitetura

A inter-relação entre arquitetura e arqueologia na preservação do patrimônio material pode ser experimentada tanto na aplicação da pesquisa arqueológica em restaurações arquitetônicas, como no desenvolvimento de projetos arquitetônicos voltados à proteção e valorização de áreas arqueológicas. O segundo caso envolve locais onde as evidências constituem, dentre outros, restos de antigos edifícios encontrados em escavações. São estruturas que afloram às vezes após séculos de esquecimento — como é o caso de inúmeras cidades romanas ou templos de antigas civilizações no México e no Peru — e consequentemente passam por um novo processo de apropriação em que novos valores são atribuídos, além do valor como documento material de história.

O processo de desintegração de antigas arquiteturas até o seu sepultamento sob o solo está ligado principalmente ao abandono e a ação gradativa do tempo, mas também pode ser consequência de uma catástrofe natural (erupções vulcânicas, terremotos etc.) ou provocada, como incêndios e guerras. Basicamente, é a perda da função a qual era destinado o que desencadeia o processo de abandono de edifícios e permite que os mesmos sejam entregues às forças da natureza. Assim, as construções soterradas podem ser encontradas em variados graus de deterioração física e de alteração das relações espaciais, sendo encontrados pequenos fragmentos construtivos dispersos em camadas estratigráficas ou cidades em grande parte intactas como Pompéia (1748) e Herculano (1709).

A consistência formal do achado e sua integridade são fundamentais para a valoração do objeto arqueológico e para as decisões projetuais posteriores. Tanto no que concerne à pesquisa arqueológica (objetivos, extensão, continuação etc.) quanto à opção pela apresentação dos vestígios, quando a promoção da leitura dos fragmentos de modo que a interferência humana possa ser reconhecida nos achados é essencial.

Quanto mais íntegro o manufato e menor a interferência da natureza, mais evidentes são os traços da sua criação como obra humana, ou seja, maior o seu valor histórico. Se tomarmos a definição de Alois Riegl para o valor histórico de um monumento, este resulta “do fato de ele representar um estágio evolutivo individual de um domínio qualquer da atividade humana” e será maior “quanto mais o monumento tenha conservado a sua integralidade e quanto mais inalterado estiver após a sua criação” (1).

A variabilidade formal e de contexto dos vestígios edilícios, portanto, condiciona sua apropriação de diferentes maneiras pela arquitetura e pela arqueologia. Antigos fragmentos arquitetônicos dispersos num terreno localizado em uma área rural, por exemplo, representam para o arqueólogo a possibilidade de inferência sobre o comportamento de civilizações remotas. Já para o arquiteto, estes restos podem ser o componente paisagístico de um novo projeto de arquitetura o qual pode ou não ser pautado no respeito aos valores documentais dos achados. Não é rara a ocorrência de obras arquitetônicas em que a preexistência de valor arqueológico é um pretexto ao exercício projetual autorreferente do arquiteto, como é identificado pela arqueóloga Andreina Ricci ao relatar a frequente indiferença de alguns arquitetos com a história dos lugares, se limitando a incluir os vestígios arqueológicos no novo projeto sem compreender a sua relação com o contexto mais amplo (2).

Expressar o discurso do arqueólogo através da linguagem arquitetônica é uma tarefa delicada para o arquiteto encarregado do projeto de conservação e valorização dos achados, o que resulta muitas vezes em certa distância crítica entre os princípios da arqueologia e as intervenções arquitetônicas realizadas. Tal distanciamento pode ser gerado em função de equívocos no reconhecimento e valoração da preexistência revelada nas escavações, mas também pela desconexão entre os profissionais envolvidos.

O descompasso na interação destas duas disciplinas gera consequências para a conservação e compreensão do patrimônio arqueológico, principalmente com a intensificação de escavações e o grande número de sítios arqueológicos descobertos nos últimos cinquenta anos (3). Além disso, manter monumentos e sítios em seu contexto original é mais recentemente um dos objetivos fundamentais da conservação do patrimônio arqueológico, como disposto na Carta de Lausanne (resultante da 9ª Assembleia Geral do International Council on Monuments and Sites — Icomos, em 1990). Este documento reclama a colaboração de especialistas de diversas disciplinas, inclusive para evitar que o patrimônio arqueológico fique exposto aos riscos e às consequências da escavação ou que seja abandonado após a mesma.

Antigamente, sobretudo no século 18 quando foram empreendidas escavações arqueológicas sistemáticas em diversas partes do mundo, era comum a prática de remoção do sítio arqueológico daqueles elementos decorativos encontrados e considerados de grande valor, seja para enriquecer coleções particulares ou para integrar o acervo de museus. Na Europa, somente com o avanço das formulações e reflexões teóricas no campo da conservação e do restauro, já no século 20, é que a manutenção dos vestígios em seu lugar de origem começou a ser um dos temas centrais para a arqueologia. Entretanto, a abordagem projetual era grandemente direcionada à reconstrução estilística e refazimento dos estratos arquitetônicos remanescentes — a exemplo de intervenções em Pompéia, durante a gestão do Superintendente Vittorio Spinazzola (1911–1923).

A experiência da Itália na conservação de áreas arqueológicas em ambientes rurais

Na Itália do segundo Pós-guerra, a intenção de reconstruir a identidade nacional a partir da valorização do patrimônio cultural, inicia reflexões e discussões sobre as intervenções de conservação in situ de bens arqueológicos e para tanto, são desenvolvidos estudos junto ao Ministero della Pubblica Istruzione e ao Istituto Centrale del Restauro — ICR, em Roma (4). O então Diretor do ICR, Cesare Brandi, formula abordagens conceituais e teóricas para o tratamento do repertório arqueológico, rejeitando a descontextualização de fragmentos de elementos arquitetônicos e artísticos de seu sítio original e propondo a sua conservação e fruição in situ através de um adequado projeto de musealização. A convite de Brandi, o arquiteto italiano Franco Minissi, se torna responsável pelo restauro e musealização de sítios arqueológicos na Sicilia a partir de 1951, desenvolvendo com ele uma relação profissional profícua que resultará em experiências no campo da arqueologia e da museografia, dentre elas, as intervenções realizadas na Villa del Casale (Piazza Armerina), na Mura di Capo Soprano (Gela) e no Teatro Eraclea Minoa (Agrigento).

A Villa del Casale seria uma edificação tardo-romana provavelmente do século 4 d.C. Nela foi encontrada a maior e mais completa série de mosaicos romanos localizados numa única construção, os quais estavam em excelente estado de conservação e ilustram com grande representatividade a riqueza econômica daquele período. Estas qualidades não deixaram dúvidas quanto à necessidade de exposição da obra ainda na década de 1950, quando foi elaborado o projeto de musealização in situ por Minissi, a partir das diretrizes organizadas por Brandi.

Projeto de Franco Minissi para a Villa del Casale, Piazza Armerina, Itália
Foto Betânia Brendle, 2015

Brandi rejeitou a retirada dos mosaicos da Villa para conservação em um museu argumentando que este ato comprometeria a beleza do local, de uma vista incomparável, deixando no abandono o que ainda restava do monumento e que era de grande importância cultural. Assim, propôs orientações para uma intervenção projetual crítica que considerasse a leitura e preservação do sítio e da paisagem, sua composição remanescente, materiais e elementos decorativos, total visibilidade de sua estrutura e dos componentes restaurados, enfatizando a repulsa a qualquer tentativa de reconstrução (5). A solução de Minissi apresentou problemas de manutenção com o tempo e foi substituída parcialmente por uma nova e polêmica estrutura cujo projeto foi coordenado pelo arquiteto italiano Guido Meli.

O novo projeto (2007–2012) consistiu na construção de um telhado de cobre com aberturas para ventilação, mantendo o espírito do desenho e abordagem museológica de Minissi (relativa à sugestão dos volumes originais e colocação de passarelas com vistas a partir do alto), conforme argumentado pela equipe. Entretanto, propondo a alteração do exterior com a substituição do material translúcido por painéis e telhados opacos, com o objetivo de eliminar o efeito estufa e restaurar a condição original da luz em que os mosaicos eram vistos: não um clarão, mas uma penumbra (6).

Interior da basílica da Villa de Casale com o projeto de Guido Meli
Foto Tatiana de Carvalho Costa, 2020

Do ponto de vista técnico da conservação dos mosaicos — referências mais importantes do conjunto, cuja qualidade artística e dimensão justificaram inclusive sua inscrição na Lista do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura — Unesco em 1997 — a opção pela construção de uma nova estrutura parece justificável, já que a obra de Minissi estava gerando patologias nesses elementos. Também com a nova intervenção são amenizados os efeitos de luz e sombra que dificultavam a visibilidade exclusiva dos mosaicos. Mas no tocante à percepção geral dos espaços há sérios empecilhos. Principalmente porque o sistema de vedação das paredes — baseado em painéis alveolares de gesso, molduras de alumínio, cabos de aço e estruturas de madeira e ferro — concorre com o pavimento artístico na quantidade de tramas, cores, texturas e informações. O deleite artístico da observação dos mosaicos é obstaculizado por um esqueleto engenhoso que fecha as paredes e a cobertura da antiga vila e nos instiga a entender o seu funcionamento, mais do que as figuras representadas nos mosaicos têm a nos revelar sobre a vida aristocrática da Roma antiga.

As duas intervenções realizadas na Villa del Casale trazem reflexões sobre o que deve ser privilegiado na conservação e valorização da preexistência arqueológica. De um lado, o projeto de Minissi beneficiava a leitura do todo, embora com problemas na visibilidade exclusiva dos mosaicos em dias de sol, a estrutura transparente não se sobressaía na percepção do conjunto e facilitava não só sua compreensão, mas a do sítio e da paisagem. De outro lado, o projeto de Guido Meli que propõe um envelopamento opaco da preexistência atenua a luminosidade sobre os pavimentos artísticos, mas compromete a percepção do espaço e ambientes da vila. O que acontece em decorrência da rivalidade criada entre a fruição dos mosaicos e a própria observação da trama estrutural do novo sistema de vedação.

Em suma, a nova concepção arquitetônica para a proteção e apresentação dos achados arqueológicos da Villa del Casale foi voltada apenas o valor histórico e artístico dos mosaicos em si, deixando de lado sua relação com os ambientes e destes, com a paisagem. Além disso, outros aspectos relacionados à infraestrutura de serviços do complexo, que podem trazer inferências sobre as relações sociais do período, não são colocados à luz em nenhuma das duas intervenções. É clara a quantidade de espaços que foram excluídos do circuito principal de visitação e que são deixados à exposição das intempéries, alguns inclusive pavimentados com mosaicos.

Um outro tipo de abordagem, desta vez sobre vestígios construtivos sem valor artístico individual, foi desenvolvida pelo arquiteto Franco Ceschi nos arredores de Roma. Seguindo o princípio de uma passagem mais gradual do estado de ruína para outro com maior conotação arquitetônica, o arquiteto propôs uma forma de compreensão dos achados do Templo de Apolo a Veio (1992), de modo que os mesmos ainda fossem percebidos na sua fragmentariedade sem perder a conexão com paisagem natural.

A partir da reduzida consistência material dos vestígios, o arquiteto alcançou com poucos elementos a escala volumétrica da edificação, nos dando uma imagem virtual com dimensões e proporções originais e significado decorativo daquilo que existiu.

A reconstituição volumétrica evocativa realizada por Ceschi era uma intervenção temporária de quatro meses, mas acabou permanecendo e sendo restaurada nos anos 2000. Os fragmentos decorativos que estavam em ótimo estado de conservação foram retirados e estão expostos no Museo Nazionale Etrusco di Villa Giulia, em Roma. Foi projetado um embasamento em madeira para apoio da estrutura de aproximadamente 1.500 quilogramas (7).

Os elementos essenciais inseridos favorecem a leitura e não interferem no contexto paisagístico. As patologias superficiais das estruturas antigas, que ficam expostas ao aberto, contribuem à sua apreensão no ambiente natural. Além disso, percebe-se uma maior tendência à comunicação do achado do que sua proteção, o que coincide com a visão do arquiteto sobre a melhor premissa para a conservação dos nossos restos antigos, que é a restituição de significado.

O projeto que faz alusão à antiga configuração formal do templo só foi possível a partir das informações reveladas na pesquisa arqueológica. Este exemplo denota a interação positiva entre arqueologia e arquitetura, bem como o mérito do estabelecimento de laços com o contexto paisagístico local.

O santuário da antiga cidade estrusca de Veio situava-se num platô natural entre o planalto do núcleo urbano (no alto) e um fosso (abaixo) sendo atravessado por uma das duas vias principais que cortava a cidade, no caso, a via de saída do portão oeste das muralhas que ia em direção à foz do rio Tibre. O local que dista pouco mais de 20 quilômetros ao norte do centro de Roma é caracterizado hoje pela presença de densa vegetação e pequenos cursos d’água, numa implantação que lhe confere uma atmosfera única.

Esta qualidade ambiental irreproduzível e singular que concorre na apresentação das áreas arqueológicas só pode ser percebida em cada local através da relação entre aspectos totais, seja de incompletude, desgaste, odores, imponência, dentre outros. São aspectos que fazem parte da caracterização do espírito e da essência do lugar, para usarmos o conceito trabalhado por Christian Norberg-Schulz (8), derivado do conceito romano de “genius loci”. Perceber a conexão das estruturas arqueológicas com o ambiente é fundamental para se discutir o equilíbrio entre conservar e revelar ou intervir e não intervir.

Os desafios da conservação de áreas arqueológicas no contexto urbano

Evidentemente em um ambiente urbano, a dinâmica complexa, os contrastes e o tumulto da cidade criam certo distanciamento na contemplação das estruturas arqueológicas ao aberto, a menos que estas estejam localizadas numa área menos adensada urbanamente ou mais extensa, como no caso da Plaza de las Tres Culturas, na Cidade do México. Por outro lado, estes locais são uma oportunidade única de aproximação da população com os restos antigos, através de projetos urbanos que produzam espaços públicos de qualidade.

Um dos exemplos incomparáveis deste tipo de apresentação ao aberto, talvez a nível mundial, seja a área arqueológica central de Roma, em particular, a Via dei Fori Imperiali que desde a década de 1870 tem sua sistematização discutida (9). A via construída pelo ditador facista Benito Mussolini entre as décadas de 1920 e 1930 com a demolição de estruturas medievais e renascentistas tornou possível a visão dos antigos fóruns imperiais romanos.

Recentemente, um concurso de ideias promovido pela Accademia Adrianea di Architettura e Archeologia, no âmbito do Piranesi Prix de Rome (2016), voltou a abordar a relação entre arquitetura e arqueologia na área situada entre a Piazza Venezia e o Coliseu. Segundo o Diretor da Accademia e curador do prêmio, “as feridas deixadas pelas escavações demonstram a natureza problemática de uma visão da cidade dominada até hoje apenas pela arqueologia científica em detrimento à qualidade geral do espaço público” (10).

O primeiro prêmio foi atribuído a um conjunto de três projetos que propunham de modo geral a construção de um espaço urbano contemporâneo equipado com nova infraestrutura museal, turística e de serviços (11).

Escavação em torno do Templo Mayor na Cidade do México
Foto Rodrigo Baeta, 2009

Vista de parte das ruínas e fragmentos na área do Forum Romano
Foto Tatiana de Carvalho Costa, 2020

São inúmeras as escavações mantidas ao aberto em meio às cidades e, de fato, nada mais desolador do que esses buracos urbanos de onde se assiste atrás de guarda-corpos a um passado estático e abandonado. No Brasil, algumas descobertas arqueológicas foram expostas com o intuito de revelar a presença material de determinados momentos históricos, mas se resumem a fossos em torno de restos materiais insignificantes. É o caso por exemplo dos vestígios atribuídos a uma muralha possivelmente construída no período de ocupação holandesa no Bairro do Recife, em Recife PE ou de restos dos antigos edifícios da Igreja da Sé e do Colégio dos Jesuítas (de construção iniciada no século 16), em Salvador BA.

A Igreja da Sé e o Colégio dos Jesuítas haviam sido demolidos em 1933 com o objetivo de permitir a passagem de bondes na região central de Salvador BA. Curiosamente, em 1940 se proibiu o trânsito destes veículos no local e o espaço passou a funcionar como ponto de ônibus (1960) e posteriormente como um estacionamento (1980). Em 1998, por ocasião da proximidade das comemorações dos 450 anos de fundação de Salvador e quinhentos anos do Brasil, foi contratado um projeto de reformulação da praça, para torná-la num novo atrativo urbano e resgatar sua memória histórica. Entretanto, as intervenções anteriores e algumas obras de concessionárias de água, energia e telefonia haviam alterado profundamente o contexto arqueológico (12).

O resultado do projeto de requalificação da praça no tocante à apresentação da preexistência arqueológica foi, portanto, lamentável. Mesmo com um esforço comunicativo para a transmissão do significado histórico — que incluiu a colocação de pequenos painéis explicativos em pontos específicos e a marcação da planta da igreja no piso da praça — não se conseguiu construir um discurso coeso sobre as estruturas arqueológicas, simplesmente porque elas quase inexistem.

Praça da Sé em Salvador
Foto Tatiana de Carvalho Costa, 2021

Este exemplo revela a importância da avaliação do potencial comunicativo de algumas estruturas arqueológicas, bem como a necessidade de uma ponderação de juízo que se deve fazer sobre o reenterro. Ilustra também como os espaços nas cidades estão sujeitos à perda de qualidade urbana em função de decisões equivocadas a respeito de um passado que pode ser contado independentemente da exposição de sua materialidade.

Em contrapartida, quando esta materialidade é capaz de transmitir uma mensagem consistente, sua integração com a cidade contemporânea pode se dar através de um desenho urbano que amplie essa capacidade e promova a continuidade entre o antigo e o novo. Desta forma, a preexistência arqueológica é excluída da intocabilidade e colocada numa perspectiva de uso social e cultural. Esta apropriação da arqueologia no presente amplia o significado puramente histórico dos vestígios.

Reflexões finais

A introdução de novos elementos arquitetônicos na preexistência arqueológica com o objetivo de promover a sua proteção e apresentação pode resultar no ofuscamento daquilo que se pretende revelar. O risco de comprometer a leitura “daquilo que resta” com uma presença perturbadora dos novos elementos é latente, destruindo muitas vezes a capacidade de comunicação contida nos testemunhos do passado.

Um dos problemas metodológicos identificados é a ausência de interação profissional nas duas etapas do processo: a primeira, da pesquisa arqueológica que é coordenada por um arqueólogo; e a segunda, da elaboração do projeto que é conduzida pelo arquiteto. Obviamente na primeira etapa não há definições claras do que pode ser trazido à tona, entretanto, o objeto de estudo foi previamente delimitado pela perspectiva do arqueólogo, ou seja, a extensão da área, o nível de profundidade das escavações, a retirada de camadas de material, dentre outras decisões. Como consequência, a perspectiva estética inerente ao trabalho do arquiteto é subjugada durante o processo de descoberta dos vestígios e somente no momento da comunicação dos achados ao amplo público é que este profissional passa a integrar a equipe como um elo entre o antigo e o novo. O resultado são intervenções que se sobrepõem aos bens que se pretendia preservar e que não acrescentam significados aos mesmos ou ao contexto.

Além disso, a contribuição da arquitetura através de projetos que resguardem os vestígios de agentes patológicos e que permitam sua leitura pelo amplo público deve ser baseada em dois aspectos: a existência de uma interpretação e um discurso coesos acerca dos vestígios e o potencial comunicativo da própria materialidade investigada. Há casos em que a equipe de arqueologia alcança um entendimento dos fragmentos descobertos — muitas vezes através de artefatos a eles associados —, mas as estruturas em si não são capazes de comunicar seu significado, mesmo com o acréscimo de novos elementos arquitetônicos. Nesses casos, o arquiteto como ordenador do espaço pode e deve se colocar a favor do reenterro.

Além de avaliar a capacidade comunicativa (em termos documentais e históricos) da materialidade arqueológica, ambos profissionais (arquiteto e arqueólogo) precisam avaliar em conjunto o papel social do vestígio no presente. Esta perspectiva de apropriação da preexistência coloca o novo projeto como um ato de interpretação atual e moderno, mas sem perder de vista seu compromisso ético na transmissão material e simbólica das estruturas sobreviventes, que são o ponto de partida e a motivação da intervenção.

Os aspectos formais dos projetos de proteção e apresentação de áreas arqueológicas podem obedecer a princípios já consolidados no campo da conservação e do restauro como a distinguibilidade, a reversibilidade, dentre outros. Especificamente no que tange à forma da nova arquitetura, desde que haja indícios suficientes inferidos pela pesquisa arqueológica, a sugestão de antigos volumes pode ser uma ferramenta eficiente na comunicação da arquitetura fragmentada. Assim como a criação de espaços adequados para a fruição.

Portanto, não há como discutir princípios para os projetos arquitetônicos em áreas arqueológicas sem ampliar a percepção dos vestígios edilícios para além do seu valor como fonte documental, como é comum no campo da arqueologia. A consideração estética faz parte do processo de comunicação do valor histórico, o qual deve ser entendido em um sentido mais amplo, incluindo a excepcionalidade, a raridade, as relações com o contexto, dentre outros (13).

notas

1
RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos. A sua essência e a sua origem. São Paulo, Perspectiva, 2014, p. 55.

2
RICCI, Andreina. Attorno ala nuda pietra: Archeologia e città tra identità e progetto. Roma, Donzelli Editore, 2006, p. 61.

3
SEGARRA LAGUNES, Maria Margarita. Architettura per l’archeologia. In SEGARRA LAGUNES, Maria Margarita (org.). Architettura e archeologia. Rassegna di Architettura e Urbanistica, ano 52, n. 151, Università di Roma Sapienza, 2017, p. 8.

4
ALAGNA, Alessandra. Franco Minissi. Restauro e musealizzazione dei siti archeologici in Sicilia. Tesi di Dottorato in Conservazione dei Beni Architettonici. Napoli, Università degli Studi di Napoli, 2008, p. 7.

5
BRENDLE, Betânia. Cesare Brandi e Franco Minissi: a expressão moderna do restauro arquitetônico e arqueológico na Sicília. Anais do 4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação, Belo Horizonte, 2015.

6
RIZZI, Gionata. Considerations on archaeological shelters: a practitioner’s viewpoint. In ASLAN, Zaki; COURT, Sarah; TEUTONICO, Jeanne Marie; THOMPSON, Jane. Protective Shelters for Archaeological Sites: Proceedings of a Symposium Herculaneum. Roma, The British School at Rome, 2018, p. 52–56.

7
CESCHI, Franco. Musealizzazione di aree archeologiche: il Tempio di Veio e la Crypta Balbi. In PORRETA, Paola (org.). Arch. IT. Arch. Dialoghi di Archeolgia e Architettura. Seminari 2005/2006. Roma, Edizioni Quasar, 2009, p. 95–96.

8
NORBERG-SCHULZ, Christian. O fenômeno do lugar. In NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura. Antologia Teórica 1965–1995. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 444–461.

9
RICCI, Andreina. Op. cit., p. 15.

10
CALIARI, Pier Federico. Il Piranesi Prix de Rome e la Call per Via Dei Fori Imperiali: Approcci Metodologici a Confronto in una Nuova Consultazione Pubblica. AR Architetti Roma, n. 116, 2016, p. 117.

11
As equipes dos três projetos vencedores eram compostas por: David Chipperfield com Alexander Schwarz; Riccardo Petrachi com a Universidade de Roma Tre e coordenação de Luigi Franciosini; Franco Purini da Universidade La Sapienza com Tommaso Valle.

12
COSTA, Carlos Alberto Santos. A Sé primacial do Brasil: uma perspectiva histórica — arqueológica. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 1, Campinas, 2011 <https://bit.ly/3idqlMH>.

13
MANACORDA, Daniele. Il sito archeologico: fra ricerca e valorizzazione. Roma, Carocci Editore, 2007.

sobre a autora

Tatiana de Carvalho Costa é arquiteta e urbanista e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, onde se tornou especialista em Conservação e Restauração de Monumentos e Conjuntos Históricos em 2002. É mestre em Arqueologia pela Universidade Federal de Sergipe (2013) e é autora de artigos acadêmicos que versam sobre a interface entre arqueologia, arquitetura e restauro.

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