Nas últimas décadas, muitas cidades no mundo vêm sofrendo com processos de urbanização acelerada, crescimento que pode ser observado tanto no âmbito populacional quanto territorial. Atualmente, de acordo com a Organização das Nações Unidas — ONU (1), aproximadamente 55,3% da população mundial já vive em áreas urbanas, com o cenário brasileiro indicando 85,6%. Tal processo, entretanto, muitas vezes não vem acompanhado por um planejamento urbano adequado, podendo ocasionar em cidades com altos índices de desigualdade social.
Neste sentido, é possível perceber o crescimento de um fenômeno conhecido como Ilha de Calor Urbana — ICU, que ocorre principalmente em grandes cidades quando as temperaturas nos centros urbanos são maiores que em áreas circundantes menos urbanizadas.
Os processos de urbanização produzem sérias mudanças na natureza da superfície terrestre e nas propriedades atmosféricas de uma região, principalmente através dos densos materiais de construções urbanos que armazenam mais o calor e impermeabilizam a superfície e da geometria urbana em forma de blocos (prédios) que aprisionam a radiação (2). A ICU se forma quando se troca a vegetação natural por materiais não reflexivos e impermeáveis, diminuindo consequentemente a evapotranspiração (3). Essa substituição diminui o albedo da superfície, também chamado de coeficiente de reflexão, pois quanto menor o albedo mais energia do sol é absorvida, ou seja, o asfalto e o concreto (superfícies escuras) vão absorver mais o calor que superfícies naturais.
Nos últimos anos, a partir dos avanços das geotecnologias, tornou-se possível calcular a temperatura da superfície terrestre — TST através de imagens de satélite por meio da captação por parte dos sensores da energia refletida e emitida pelos corpos e superfícies. Muitos autores, então, através de um Sistema de Informação Geográfico — SIG propuseram metodologias para estimar a TST através da energia do corpo, como Magda Adelaide Lombardo (4), Edílson de Souza Bias, Gustavo Macedo de Mello Baptista e Magda Adelaide Lombardo (5) e André Coelho e Wesley de Souza Correa (6).
É importante ressaltar ainda, a diferença entre a TST e a temperatura do ar, pois enquanto a primeira é entendida como um parâmetro físico, estando relacionado com o fluxo de calor e o balanço de radiação dos corpos, a segunda depende muito de fatores externos, como os ventos, a incidência de radiação e outros (7).
Com isso, o objetivo principal do presente estudo é analisar a ilha de calor urbana no município de Niterói através de imagens do satélite Landsat, sendo possível através do mesmo, estimar a TST. Os quadriênios: 1984–1987, 1999–2002 e 2016–2019 foram analisados, sendo realizada ainda uma análise das características urbanas nas regiões que apresentaram as maiores TST.
Caracterização da área de estudo
O município de Niterói, que possui cerca de 487 mil habitantes de acordo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE, vem sendo impactada pelo crescimento urbano nas últimas décadas (8). Durante o último século, o município passou por importantes obras e reformas urbanas, como a construção da Ponte Rio-Niterói em 1974, ligando o município de Niterói à capital Rio de Janeiro. Entretanto, tal crescimento não veio acompanhado de um planejamento urbano e parâmetros de verticalização adequados, tornando-se uma ocupação desordenada em grande parte.
Para fins de comparação, com base nos dados do Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro — Ceperj (9), a população de Niterói era superior a 180 mil habitantes em 1950, passando para cerca de 323 mil pessoas em 1970, e sendo estimado 515 mil habitantes em 2020.
A imagem a seguir representa a área de estudo e seu entorno, sendo possível identificar com clareza as manchas urbanas através da imagem do Landsat 8, com órbita 217, ponto 076 e na escala 1:80.000.
Niterói possui um clima tropical com duas estações bem definidas: um verão quente e chuvoso e um inverno seco e com menores temperaturas, com o mês de janeiro sendo o mais chuvoso (média de 147 mm) e agosto o mês mais seco (41 mm) (10), o que é comprovado também pela classificação climática de Köppen-Geiger, que caracteriza o clima niteroiense como Aw (clima tropical de savana), composta justamente por uma estação seca (inverno) e uma chuvosa (verão).
O município de Niterói passou ao longo das últimas décadas por uma série de reformas urbanas que impactaram sua dinâmica, com o século 19 marcado por transformações tanto políticas quanto econômico-administrativas, através de investimentos na infraestrutura, implementação de bondes de tração, estradas de ferro e abastecimento de água (11). No começo do século 20, após Niterói voltar a ser capital do estado, novas reformas foram implementadas, com importantes vias da cidade passando por processos de pavimentação, como a alameda São Boaventura e a abertura da avenida Ernani do Amaral Peixoto. Em meados do século 20, a abertura da avenida do Contorno foi mais uma importante transformação, sendo responsável por ligar áreas portuárias de Niterói ao município de São Gonçalo, melhorando as condições de tráfego entre os dois municípios (12).
Por fim, como já mencionado, destaca-se a construção da Ponte Rio-Niterói em 1974, ligando Niterói ao Rio de Janeiro e posteriormente a implementação da Lei Complementar n. 20 de 1974, que retirou de Niterói a condição de capital do estado ao fundir os estados da Guanabara e do Rio de Janeiro.
Referencial teórico
Para compreender melhor como se forma uma ICU, é necessário entender como as camadas atmosféricas urbanas se estruturam pelas cidades. Timothy Oke, Gerald Mills, Andreas Christen e James A. Voogt (13) propuseram uma divisão que começa com a camada limite do dossel urbano, que é produzida por processos de microescala em que o calor que é refletido pelos edifícios é aprisionado devido à altura dos prédios, indo, portanto, do nível do solo até a altura dos prédios. Acima dela encontra-se a subcamada de rugosidade, camada em que o fluxo atmosférico permanece sendo influenciado por elementos de rugosidades individuais, localizando-se entre o solo até duas a cinco vezes a altura dos edifícios. Já subcamada Inercial é uma região em que a variação dos fluxos turbulentos com a altura é considerada baixa, enquanto por fim, a camada mista é entendida como uma área de intensa variação dos fluxos de acordo com a altura (14).
Francisco Mendonça e Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro (15) demonstrou que o ambiente altamente urbanizado possui a capacidade de alterar o balanço energético da atmosfera, alterando a temperatura, o fluxo de ventos e a precipitação. A ilha de calor, portanto, é definida como o excesso de temperatura nas áreas urbanas quando comparadas em áreas menos urbanas ou rurais, sendo um fenômeno que ocorre em diversas cidades do mundo. A intensidade da ilha de calor (diferença de temperatura entre essas duas áreas) costuma ser maior à noite (logo após o pôr do sol), pois as superfícies urbanas após o anoitecer permanecem liberando calor e resfriando mais lentamente (16).
Entre as principais causas para ocorrência da ICU, destacam-se: a ausência de vegetação, a baixa reflectância dos materiais urbanos, a utilização de superfícies impermeáveis e as geometrias urbanas que aprisionam o calor. Tais fatores possuem diversos impactos sobre o balanço de energia, como a redução da evaporação, o aumento do armazenamento de calor, aumento do calor antropogênico e o aumento do saldo de radiação (17).
Kaveh Deilami, Md. Kamruzzaman e Yan Liu (18) fizeram uma extensa revisão de 75 artigos sobre o tema, e obtiveram como resultado que a causa mais comum para a ocorrência da ICU foi a cobertura vegetal (44%), seguido pela estação (33%), áreas construídas (28%), relação dia/noite (25%) e densidade populacional (14%).
Outro fator que é importante ser mencionado é em relação ao desconforto térmico causado pela exposição excessiva de calor, sendo tal risco maior em idosos e populações mais vulneráveis economicamente, devido à falta de recursos tanto físicos quanto econômicos para lidar com o calor extremo. Vale lembrar das mais de 20 mil mortes ocasionadas por ondas de calor na Europa em 2003 (19). Alterações nos padrões de precipitação, aumento da poluição do ar e inundações também são efeitos da ICU que alteram a qualidade de vida da população (20). Hashem Akbari, Melvin Pomerantz e Haider Taha (21) destacaram que a cada aumento de 1ºC na temperatura do ar, a demanda por eletricidade aumente de 2 até 4%.
Com os avanços do sensoriamento remoto, tornou-se possível identificar e analisar a ICU através de imagens de satélite. P. K. Rao (22) foi um dos pioneiros ao identificar áreas urbanas através da faixa do infravermelho termal. No contexto brasileiro, destaca-se o estudo de Magda Adelaide Lombardo (23), que mapeou o fenômeno no município de São Paulo. De maneira geral, a estimativa da TST através das bandas termais das imagens de satélites é considerada hoje a melhor alternativa para a realização de uma avaliação espacial das temperaturas em grandes áreas (24).
Decheng Zhou et al. (25) analisaram 778 publicações sobre o tema, obtendo como resultado que mais da metade dos estudos foram utilizando imagens da série Landsat. Os autores ainda destacaram que, mais da metade dessas publicações se concentram no continente Asiático, observando-se um crescimento no número de estudos a partir de 2005.
De maneira geral, a obtenção da TST através de imagens termais vem se consolidando como uma ótima metodologia para identificar, mapear e analisar o comportamento desse fenômeno nas diferentes cidades, com muitos estudos sendo realizados (26), (27) e (28).
Material e métodos
Os Materiais utilizados foram as imagens dos satélites Landsat 5 para o quadriênio 1984 — 1987, Landsat 7 para 1999 — 2002 e Landsat 8 para 2016 — 2019, com todas as imagens disponíveis no site do Serviço Geológico dos Estados Unidos — USGS. De modo a realizar uma melhor compreensão da influência da ação antrópica sobre o meio urbano, foi elabora ainda Mapas de Uso e Ocupação do Solo, gerados a partir dos dados do Mapbiomas Brasil e as seguintes variáveis do Censo Demográfico de 2010 do IBGE: 1. moradores em domicílios permanentes e população residente em domicílios particulares permanentes; 2. domicílios particulares — existe arborização e; 3. renda por setor censitário. Todas as variáveis foram baixadas no formato .csv, enquanto as imagens de satélite são baixadas no formato TIFF, bem como os dados do Mapbiomas Brasil.
Foram escolhidas imagens de uma mesma época do ano (inverno) devido a uma maior favorabilidade para a identificação do fenômeno por ser a estação seca e com menores índices pluviométricos. Foram escolhidas cinco imagens com ausência de nuvem para o período de 1984 até 1987, oito imagens para o quadriênio 1999 — 2002 e por fim, oito imagens para o período de 2016 até 2019. A estimativa da TST foi feita para cada uma das imagens e no final foi usada a ferramenta Cell Statistics do aplicativo QGIS para realizar a média de cada período e gerar apenas um arquivo para cada quadriênio. A tabela abaixo indica as datas escolhidas para cada imagem e seus respectivos períodos.
Após a escolha das imagens, foi realizado primeiro um recorte da imagem do infravermelho termal para a área de estudo e reprojetando para o Sistema Sirgas 2000 Fuso UTM 23S. A segunda etapa consistiu em fazer a conversão dos níveis de cinza da imagem para radiância espectral e por fim, as imagens foram convertidas para temperatura da superfície terrestre em Kelvin que posteriormente foi convertida para Celsius.
O cálculo da radiância espectral foi baseado no proposto por Gyanesh Chander, Brian L. Markham e Denis Helder (29) para o Landsat 5 e 7 e USGS (30) para o Landsat 8. Enquanto o cálculo da TST foi realizado a partir da radiância espectral da banda termal e de constantes de calibrações obtidas nos metadados das imagens, seguindo o proposto por Magda Adelaide Lombardo e Hugo Rogério Barros (31), adaptando a variável emissividade proposto por Nichol de 0.92 para superfícies urbanas (32). As fórmulas citadas podem ser observadas a seguir:
Cálculo da radiância espectral para o Landsat 5 e 7
Lλ=(LMAXλ-LMINλ/Qcalmax-Qcalmin).(Qcalmax-Qcalmin)+LMINλ (1)
Em que:
Cálculo da radiância espectral para o Landsat 8
Lλ= ML.Qcal+AL (2)
Em que:
Já a TST foi obtida através da seguinte equação:
(3)
Em que:
O mapeamento do uso e ocupação do solo foi usado para o auxílio na identificação das áreas com maior presença de superfícies que armazenam mais o calor em detrimento da cobertura vegetal, sendo feito um comparativo da evolução da classe de Infraestrutura Urbana nos anos de 1985, 2002 e 2019. Após o download das imagens de Uso e ocupação do solo, que vieram no formato matricial (tiff), o arquivo foi convertido para o formato vetorial(shapefile), para que fosse possível trabalhar com o cálculo de áreas com maior facilidade.
Por fim, foram analisadas algumas variáveis presentes no Censo Demográfico do IBGE, que foram posteriormente representadas através de mapas, indicando o número de domicílios, a presença de arborização e renda por setor censitário. A partir da primeira variável, que nos informa a quantidade de moradores por setor censitário, foi possível calcular a densidade demográfica por hectare, de modo a entender quais são as regiões do município com maior concentração populacional, que juntamente com a variável de arborização, foram utilizadas de modo a elaborar um melhor entendimento das características urbanas de cada região. Já a variável renda contribuiu para uma análise da distribuição do fenômeno, que apesar de ter o potencial de se distribuir e atingir todos de maneira homogênea, os efeitos são sentidos de maneiras diferentes.
Resultados e discussões
Após o processo de escolha e tratamento das imagens, deu-se início o cálculo das TST para cada quadriênio. De maneira geral, as regiões Norte e Centro se destacaram como as maiores concentrações de TST, resultado que pode ser entendido devido ao fato de ser uma área de intensa movimentação por ser zona de acesso à Ponte Rio-Niterói e para o município de São Gonçalo, além de se destacar como uma área com alta concentração de edificações e pouca vegetação.
A Região Oceânica apresentou desde o primeiro quadriênio um crescimento considerável, sendo uma região que passou por um processo de urbanização de alta intensidade nas últimas décadas. Já outras regiões como Pendotiba e Praias da Baía também apresentaram um aumento na concentração deste fenômeno, principalmente no último quadriênio.
Através do mapa apresentado acima, é possível inferir que no período 1984–1987 as maiores temperaturas coincidiram com as manchas urbanas, se concentrado principalmente nas Regiões Norte (Fonseca e Barreto), Praias da Baía (Centro, Santa Rosa e São Francisco) e Região Oceânica (Itaipu e Piratininga), com temperaturas de superfície variando entre 26º C até 30º C.
Já para o quadriênio 1999–2002, as TST aumentaram principalmente na Região Norte (se espalhando entre os demais bairros) e na Região Oceânica (região que obteve o maior aumento populacional no período). Já região de Pendotiba se destacou no período sendo observado um crescimento de aproximadamente 3ºC em relação ao período anterior.
Por fim, no quadriênio 2016–2019 as temperaturas de superfície foram ainda maiores, apresentando tons de vermelho ainda mais escuros e se espalhando ao longo do município, além de ser possível observar uma maior distribuição principalmente na Região Oceânica, que anteriormente apresentava TST na faixa de 28ºC até 32ºC e de maneira fragmentada e no último período obteve temperaturas na faixa de 32,1ºC até 34ºC e de maneira mais homogênea.
Foram observadas ainda, regiões com pontos isolados (não densamente povoados) com valores superiores a 34ºC, áreas essas que ao analisar a imagem de satélite, foram identificadas como áreas de morro com pouca ou nenhuma vegetação, que por suas características absorvem o calor, gerando altos valores no mapa.
Visando uma análise mais detalhada acerca da distribuição das temperaturas obtidas, foi gerado uma tabela que demonstras os valores máximos, mínimos e a média dos pixels das imagens que foram geradas para cada período, bem como a intensidade de ICU, ficando nítido o crescimento das quatro variáveis. A unidades dos valores apresentados na tabela são os valores dos pixels das imagens, que é o indicativo da TST em graus Celsius.
De maneira geral, é possível observar um aumento na intensidade da ilha de calor urbana em Niterói com a passagem das décadas analisadas, sendo comprovada tanto pela tabela quanto pelos mapas apresentados.
Para a realização de uma análise focada na urbanização ocorrida no município e suas consequentes alterações ao longo dos períodos analisados, foi gerado mapas de uso e cobertura da terra, calculando as áreas de cada classe com foco principal nas que representam a mancha urbana.
Como resultado dos mapas gerados a partir do Mapbiomas, observou-se um aumento considerável nas áreas ocupadas pela classe “infraestrutura urbana”, que no primeiro ano em análise ocupava cerca de 52 km², enquanto no período seguinte passou para aproximadamente 67 km² e por fim, em 2019 ocupou 70km². Já outras classes como “agricultura” e “pastagem” apresentaram uma diminuição em suas áreas, enquanto classes como “floresta” e “rios, lagos e oceanos” obtiveram uma suave diminuição em sua ocupação, que pode ser entendida como consequência do aumento das áreas de infraestrutura urbana.
Alguns estudos já demonstraram a diminuição da área do Sistema Lagunar Itaipu-Piratininga ao longo do final do último século, tendo perdido 18% da área de seu espelho d'água, com a Lagoa de Itaipu tendo reduzido sua área de 1,33 km para 1,08 km entre 1976 e 2011 enquanto a Lagoa de Piratininga reduziu de 3,78 km para 3,15 km no mesmo período (33), (34), (35) e (36). Tais estudos mostraram ainda que essa diminuição possui relação com seu assoreamento causado pela urbanização de seu entorno, além da abertura do Canal do Camboatá (1946) e a fixação do canal de Itaipu (1978) que foram responsáveis por diminuírem ainda mais os níveis de água das lagoas.
O mapa de uso e cobertura da terra para o ano de 1985 apresenta também um detalhe selecionado para confirmação e validação das classes. Nele, foi usado uma imagem do satélite Landsat 5 com composição RGB 543, que nos permite distinguir com facilidade as feições urbanas de corpos hídricos e vegetações.
Já nos mapas que representam os anos de 2002 e 2019 foram observadas algumas inconsistências nas classes do Mapbiomas, sendo observado áreas classificadas como infraestrutura urbana que ao analisar as imagens de satélites é possível afirmar que são morros vegetados. Essas diferenças, também observadas por Camila Balzani Marques et al. (37), são entendidas ao observar que o Mapbiomas considera apenas informações espectrais para definir as classes.
É nítido o crescimento da mancha urbana desde a década de 1980 até os dias atuais, podendo ser comprovado tanto pelos mapas de TST, pelos mapas de uso e cobertura da terra e pelos dados de amostras populacionais, sendo a Região Oceânica a que mais apresentou mudanças nesse sentido. Esse crescimento populacional não veio acompanhado de melhorias nas infraestruturas, tendo a cidade possuindo as mesmas avenidas de décadas atrás, um sistema público de transporte que não é capaz de alimentar na totalidade sua população e sua localização específica, separada por mar e morros surgindo como um empecilho.
A fim de melhor compreender as características urbanas nas regiões que apresentaram as maiores temperaturas, foram gerados, a partir de dados do IBGE, mapas de densidade populacional, lotes com arborização e renda por setor censitário.
Através do mapa de densidade populacional por hectare, fica nítido a concentração populacional nas regiões das Praias da Baía e Norte (principalmente nos bairros de Icaraí, Santa Rosa, Centro e Fonseca), que se caracterizam por possuírem habitações verticais. O bairro de Icaraí, por exemplo, obteve valores em um intervalo de 250 e 1.200 habitantes por hectare em seus setores censitários. Já a Região Oceânica, local com grande extensão territorial e composta majoritariamente por casas, apresentou menores valores. O sistema de Referência utilizado nos três mapas a seguir foram o Sirgas 2000 UTM, Fuso 23k.
Já o mapa com o número de domicílios por setor censitário — existe arborização representa a quantidade de domicílio que, em suas calçadas, face confrontante ou em seu canteiro central exista arborização. Foi possível identificar que as regiões Praias da Baía e Oceânica se destacaram como as localidades com a maior concentração de arborização.
De maneira geral, para uma região apresentar uma ICU intensa, ela deve se caracterizar por uma grande densidade populacional e pouca arborização. A região em Niterói que cumpre todos os requisitos é a Região Norte, principalmente os bairros do Fonseca e Barreto, que foram locais que de fato apresentaram altas TST. A região Praias da Baía também se destacou como uma área com altas temperaturas, mas que acaba sendo em alguns pontos amenizada pela presença de vias arborizadas.
Para fins de comparação, foi realizado ainda uma análise entre os resultados obtidos pelos sensores dos satélites e a temperatura do ar marcada na Estação do Instituto Nacional de Meteorologia — Inmet em Niterói, localizada no bairro do Barreto. A comparação foi feita com uma das imagens usadas no quadriênio 2016–2019, que foi a imagem datada de 16 de junho de 2019.
Os resultados são apresentados na tabela abaixo, que demonstram algumas variáveis presentes na Estação que foram analisadas juntamente com a estimativa da TST, sendo selecionado o valor do pixel da imagem no local em que a estação do Inmet se localiza. Como o satélite possui o horário da passagem às 9h51min, a comparação foi feita com a temperatura marcada na estação às 10h e com a média do dia.
Qihao Weng (38) demonstrou que a TST normalmente apresenta valores maiores que a temperatura média do ar, enquanto S. J. Goetz, F. G. Hall, B. L. Markhan e R. Dubayah (39) observaram em um estudo utilizando o Landsat 5, que os valores calculados eram superestimados em um intervalo de 1ºC a 8ºC devido às características radiométricas dos sensores. É plausível afirmar, portanto, que os valores calculados no presente estudo se encontram dentro do intervalo que se é esperado ao comparar as duas variáveis.
Analisando de maneira separada a distribuição dos pixels nas três imagens finais, foram totalizados 148.655 pixels em cada uma. A tabela a seguir demonstra sua distribuição por intervalos de temperatura e o valor proporcional de cada época em relação ao número total de pixels por imagem, ficando nítido que a presença de pixels com valores superiores a 30ºC vai crescendo com o passar das décadas analisadas, sendo observado mais de 37 mil pixels superiores a 30ºC no quadriênio 2016–2019, ou seja, cerca de 25% dos pixels da imagem.
Por fim, a variável renda por setor censitário também foi estudada com o intuito de compreender sua distribuição e correlação com os resultados. Estudos já demonstraram que apesar da ICU se espacializar como um todo ao longo do território, seus efeitos serão sentidos de maneira diferente, principalmente de acordo com as condições socioeconômicas da população e suas vulnerabilidades (40). Foi elaborado então um Mapa de Renda média mensal por setor censitário e analisado de maneira conjunta com o Mapa de TST do período 2016–2019.
O arquivo foi obtido no portal do Sistema de Gestão da Geoinformação — Sigeo de Niterói, que através do Censo Demográfico do IBGE, elaborou para o município a camada de Setores Censitários, que posteriormente foi aberta no QGIS e selecionada a variável renda mensal por setor censitário através do método de Quebras Naturais.
É possível observar que as maiores concentrações de renda se encontram nos bairros de Icaraí, Santa Rosa e Região Oceânica (principalmente Camboinhas, Itacoatiara, Itaipu e Piratininga). Em contrapartida, a região Norte (Barreto, Caramujo, Engenhoca, Fonseca) e Pendotiba (Ititioca, Largo da Batalha, Maceió e Cantagalo) apresentaram setores com renda mensal menores e maiores TST, como pode ser visto no mapa secundário.
Os bairros de Icaraí, Santa Rosa e a Região Oceânica apesar de apresentarem altas TST se destacaram como as regiões com a maior renda mensal, porém a realidade socioeconômica local permite que os moradores em sua maioria tenham uma habitação mais planejada, com maior arborização, uso de ar-condicionado e ventiladores, de modo que os efeitos da ICU sejam minimizados e o desconforto térmico seja menor.
Considerações finais
Os resultados do presente trabalho indicam que a ICU é um fenômeno que vem crescendo no município de Niterói ao longo dos anos como consequência dos intensos processos de urbanização que muitas cidades enfrentam. Os efeitos antrópicos no uso e ocupação do solo, aliado com a ausência de vegetação em alguns locais e alta concentração populacional foram fatores que potencializaram a ocorrência deste fenômeno. A Região Oceânica, embora tenha apresentado um crescimento nas TST, por ser uma área arborizada e com crescimento mais horizontal obteve um crescimento em escala menor que em áreas mais centrais.
A pesquisa partiu da hipótese que devido ao crescimento populacional observado no município de Niterói ao longo das últimas décadas e dos intensos processos de urbanização ocorridos, a ICU iria aumentar de intensidade, fato que foi comprovado através dos mapas de TST com o auxílio dos mapas de uso e ocupação do solo e dos índices do IBGE. A metodologia adotada se mostrou adequada para que os resultados fossem obtidos.
Visando novos estudos sobre o tema, aconselha-se que a metodologia seja aplicada a outros municípios, bem como o uso de outras séries de satélite. Os resultados indicam que o estudo possui um grande potencial de contribuição para a sociedade tanto acadêmica quanto a população e o poder público, podendo ser aplicado como um instrumento de política pública para o desenvolvimento de estratégias de mitigações nas regiões que apresentaram as maiores temperaturas.
notas
1
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. World Urbanization Prospects: The 2018 Revision. ONU, Nova York, 2019 <https://bit.ly/2zBCOkF>.
2
OKE, Timothy Richard. Boundary Layer Climates. 2ª edição. Londres, Routledge, 1998.
3
TAHA, Haider. Urban climates and heat islands: albedo, evapotranspiration, and anthropogenic heat. Energy and buildings, 1997, p. 99–103.
4
LOMBARDO, Magda Adelaide. Ilha de calor nas metrópoles: o exemplo de São Paulo. São Paulo, Hucitec, 1985.
5
BIAS, Edílson De Souza; BAPTISTA, Gustavo Macedo de Mello; LOMBARDO, Magda Adelaide. Análise do fenômeno de ilhas de calor urbanas, por meio da combinação de dados Landsat e Ikonos. Anais do 11º Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, Belo Horizonte/Brasília, Inpe, 2003, p. 1741–1748 <https://bit.ly/3OGsAVg>.
6
COELHO, André. CORREA, Wesley de Souza. Temperatura de superfície celsius do Sensor Tirs/Landsat-8: metodologia e aplicações. Revista Geografia Acadêmica, v. 7, n. 1, ano 12, 2013, p 31–45.
7
ARANTES, Arielle Elias; SOUSA, Silvio Braz de; SOARES, Geymme Shyrley Cardozo; FERREIRA, Laerte Guimarães. Análise da temperatura da superfície terrestre e índice de vegetação Savi para o município de Goiânia, 2009. Anais do 16º Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, n. 16, Foz do Iguaçu, Inpe, 2013, p. 834–841 <https://bit.ly/3ifm4IB>.
8
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro, IBGE, 2012.
9
FUNDAÇÃO CENTRO ESTADUAL DE ESTATÍSTICAS, PESQUISAS E FORMAÇÃO DE SERVIDORES DO RIO DE JANEIRO. População Residente total -série histórica. Estado do Rio de Janeiro e seus municípios — 1940 a 2010. Rio de Janeiro, Ceperj, 2019.
10
Clima Niterói. Climate Data <https://bit.ly/3VpIchU>.
11
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Niterói: história e fotos. Rio de Janeiro, IBGE, s/d <https://bit.ly/3V0Xji1>.
12
Niterói. Prefeitura de Niterói, Niterói, 2021 <https://bit.ly/3OGC2Yv>.
13
OKE, Timothy; MILLS, Gerald; CHRISTEN, Andreas; VOOGT, James A. Urban Climates. Cambridge, University Printing House, 2017.
14
WANG, Linlin; LI, Dan; GAO, Zhiqiu; SUN, Ting; GUO, Xiaofeng; BOU-ZEID, Elie. Erratum to: turbulent transport of momentum and scalars above an urban canopy. Boundary-Layer Meteorology, v. 150, n. 3, jan. 2014, p. 513-514.
15
MENDONÇA, Francisco; MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro. Clima urbano. 2ª edição. São Paulo, Contexto, 2011.
16
VOOGT, James; OKE, Timothy Richard. Thermal remote sensing of urban climates. Remote Sensing Of Environment, v. 86, n. 3, [s.l.], ago. 2003, p. 370–384.
17
GARTLAND, Lisa. Ilhas de calor: como mitigar zonas de calor em áreas urbanas. São Paulo, Oficina de Textos, 2008.
18
DEILAMI, Kaveh; kamruzzaman Md; LIU, Yan. Urban heat island effect: a systematic review of spatiotemporal factors, data, methods and mitigation measures. International Journal of Applied Earth Observation and Geoinformation, v. 67, 2018, p. 30–42.
19
The heatwave of 2003. Met Office <https://bit.ly/3i8tu0l>.
20
HEAVISIDE, Clare; MACINTYRE, Helen; VARDOULAKIS, Sotiris. The Urban Heat Island: Implications for Health in a Changing Environment. Current Environmental Health Reports, set. 2017.
21
AKBARI, Hashem; POMERANTZ, Melvin; TAHA, Haider. Cool surfaces and shades trees to reduce energy use and improve air quality in urban areas. Solar energy, 2001, p. 295–310.
22
RAO, P. K. Remote sensing of urban "heat islands" from an environmental satellite. Bulletin of the American Meteorological Society, v. 53, Boston, 1972, p. 647–648.
23
LOMBARDO, Magda Adelaide. Op. cit.
24
BARROS, Hugo Rogério; LOMBARDO, Magda Adelaide. A ilha de calor urbana e o uso e cobertura do solo no município de São Paulo SP. Geousp Espaço e Tempo, v. 20, 2016, p. 163 <https://bit.ly/3V6BsWD>.
25
ZHOU, Decheng et al., Satellite Remote Sensing of Surface Urban Heat Islands: Progress, Challenges, and perspectives. International Journal of Remote Sensing, 2019 <https://bit.ly/3AKZfDd>.
26
LIU, Lin; ZHANG, Yuanzhi. Urban Heat Island Analysis Using the Landsat TM Data and ASTER Data: a case study in Hong Kong. Remote Sensing, v. 3, n. 7, [s. l], jul. 2011, p. 1535–1552.
27
LUCENA, Andrews José et al. A evolução da ilha de calor na região metropolitana do Rio de Janeiro. Revista Geonorte, v. 2, n. 5, [s. l], jan. 2012, p. 8–21 <https://bit.ly/3OE5JJR>.
28
WENG, Qihao. A remote sensing? GIS evaluation of urban expansion and its impact on surface temperature in the Zhujiang Delta, China. International Journal of Remote Sensing, v. 22, n. 10, [s. l], jan. 2001, p. 1999–2014.
29
CHANDER, Gyanesh; MARKHAM, Brian L.; HELDER, Denis L. Summary of current radiometric calibration coefficients for Landsat MSS, TM, ETM+, and EO-1 ALI sensors. Remote Sensing of Environment, n. 113, 2009, p. 893–903.
30
USGS. Using the USGS Landsat Level-1 Data Product <https://on.doi.gov/3VvD8Zc>.
31
BARROS, Hugo Rogério; LOMBARDO, Magda Adelaide. Op. cit., p. 167.
32
NICHOL, Janet. A GIS-Based Approach to Microclimate Monitoring in Singapore’s High-Rise Housing Estates. Photogrammetric Engineering & Remote Sensing, v. 60, n. 10, 1994, p. 1225–1232.
33
WASSERMAN, Julio Cesar et al. The impact of acanal lock upon the water balance and the trophic state of Piratininga lagoon, state of Rio de Janeiro, Brazil. Environmental Geochemistry of Coastal Lagoon Systems, n. 6, 1999, p. 169–177.
34
RODRIGUES, Rodrigo de Carvalho. Caracterização da cobertura vegetal e do uso do solo da Bacia Hidrográfica do Sistema Lagunar Piratininga — Itaipu Niterói — RJ. Monografia de conclusão de curso. Niterói, Especialização em Geotecnologias Aplicadas à Análise Ambiental de Bacias Hidrográficas da Universidade Federal Fluminense, 2004.
35
FONTENELLE, Thiago; CORRÊA, Wanderson. Impactos da urbanização no espelho d’água dos sistemas lagunares de Itaipu e de Piratininga, Niterói (RJ), entre 1976 e 2011. Boletim de Geografia, v. 32, n. 2, dez. 2014, p. 150–157.
36
HIDROSCIENCE CONSULTORIA E RESTAURAÇÃO AMBIENTAL EIRELI (org.). A evolução histórica dos usos do sistema lagunar e seu entorno. Porto Alegre, Prefeitura de Porto Alegre, 2018. <https://bit.ly/3ifu3FN>.
37
MARQUES, Camila Balzani; ARRUDA, Vera Laísa da Silva; ALENCAR, Ane Auxiliadora; SILVA, Isabel de Castro; PIONTEKOWSKI, Valderli Jorge; SHIMBO, Julia Zanin. Análise de correspondência entre mapas de vegetação florestal do bioma Cerrado. Anais do Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, n. 19, Santos, 2017, p. 5265–5272 <https://bit.ly/3XzlF3V>.
38
WENG, Qihao. Op. cit. p. 2012.
39
GOETZ, S.J.; HALL, F.G.; MARKHAN, B.L.; DUBAYAH, R.O. Inter-comparison of retrieved surface temperature from multiresolution sensors at the Fife site. Technical Papers of ASPRS/ACSM 1993, Louisiana, 1993, p. 108–117.
40
TEOBALDO NETO, Aristóteles; AMORIM, Margarete. Ilha de calor urbana e desconforto térmico: uma análise episódica em Cuiabá/MT. Os desafios da Geografia Física na Fronteira do Conhecimento, p. 1492-1506, 2017.
sobre os autores
Felix Carriello é doutor em Geografia (Posgeo UFF, 2012) e mestre em Sensoriamento Remoto (Inpe, 2004). É professor associado do Departamento de Análise Geoambiental e do Programa de Pós-graduação de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, onde desenvolve estudos sobre planejamento e meio ambiente utilizando geotecnologias.
Pedro Heizer é graduado em Ciência Ambiental (UFF, 2022) com experiência na área de ciências ambientais, com foco em geoprocessamento.