Inteligentes, digitais, inovadoras, criativas, ecológicas, verdes, sustentáveis. Os adjetivos são diversos e a cada época, ou ciclo, alguns são evidenciados em relação aos demais, de acordo com a retórica escolhida ou conforme a tendência de mercado. A cidade, substantivo, torna-se um adereço e seu significado original, que compartilha o mesmo radical de cidadania, é fragilizado. Nesse universo de adjetivações e qualificações, os meios se transformam em fins. Não apenas os adjetivos se tornam protagonistas, mas são também carregados de anglicismos, que revelam suas origens mercadológicas no processo colonizador da globalização: smart, green, innovative… Afinal, ser smart, nessa lógica, não é apenas ser dotado de uma suposta inteligência, mas significa estar associado à conectividade dos smartphones e de todos os sistemas de consumo, exclusão e controle que os acompanham; sistemas que produzem o que Milton Santos definiu como “deficientes cívicos”, no processo perverso da globalização.
As reflexões apresentadas por Milton Santos sobre as cidades e a sociedade, nos livros O espaço do cidadão (1) e Por uma outra globalização (2), revelam a lucidez, a capacidade de antevisão e a contemporaneidade do pensamento do geógrafo brasileiro.
A primeira edição do livro O espaço do cidadão foi publicada em 1987, no contexto da redemocratização e da Constituinte. O texto é apresentado como um conjunto de tópicos, ao mesmo tempo independentes e articulados, de leitura acessível ao grande público e ao mesmo tempo precisos na fundamentação e na construção do argumento. Questões como cidadania, consumo, o impacto do modelo econômico nas cidades e a ausência de um modelo cívico, direito à moradia, pactos territoriais e a relação entre o lugar e o valor do indivíduo, são abordadas de maneira crítica e também propositiva. As principais deficiências apontadas por Santos, relacionadas à falência dos modelos urbanos e econômicos, continuam ainda vigentes, assim como pertinentes e necessários os caminhos apontados.
Por uma outra globalização, cuja primeira edição foi publicada em 2000, foi uma das últimas obras de Santos. Mais do que uma interpretação da época, trata-se de uma reflexão que antevê as crises do processo de globalização nas décadas seguintes e que continuam atuais nos dias de hoje. Santos aborda o tema em três perspectivas: no primeiro momento, alerta sobre a falácia e as promessas do modelo; na segunda parte, apresenta reflexões sobre a natureza destrutiva e excludente do sistema; na terceira, que dá título ao livro, o geógrafo ensaia um relativo otimismo, ao apontar as possibilidades de um futuro mais justo, desde que associado a transformações éticas da sociedade.
Este ensaio utiliza como ponto de partida e estruturação as três abordagens analíticas propostas por Milton Santos sobre o fenômeno da globalização, neste caso adaptadas à reflexão crítica sobre o conceito de “smart cities”: 1. a fábula; 2. a perversidade; 3. as possibilidades.
Em cada tópico são também revisitadas algumas reflexões e contraposições apresentadas por Santos no livro O espaço do cidadão, em especial os conflitos entre cidadania e consumo; modelo cívico e modelo econômico; solidariedade e individualismo, entre outros.
Neste exercício de releitura, o pensamento de Santos é também confrontado com reflexões e proposições de pesquisadores e críticos que no contexto atual debatem as cidades e sua relação com a política, a tecnologia e a cidadania (ou sua ausência).
A fábula
A retórica das “smart cities” segue a narrativa das fábulas de mundos idealizados, porém oculta a construção de uma lógica excludente. São apresentadas como lugares em que as redes e os serviços estão conectados a sistemas de informação, tornando-se mais eficientes, para o benefício dos habitantes e dos negócios. De acordo com a Comissão Europeia:
“Trata-se de redes de transporte urbano mais inteligentes, melhoria dos sistemas de fornecimento de água e de descarte de resíduos; modos mais eficientes de iluminação e aquecimento dos edifícios. [...] também significa uma gestão mais interativa e responsiva, espaços públicos mais seguros” (3).
Os principais porta-vozes da “smart city” são as multinacionais vinculadas à tecnologia da informação e da comunicação, detentoras das ferramentas e dos sistemas de “inteligência”, portanto principais beneficiárias.
A Thales Group, empresa francesa que comercializa sistemas de informação e serviços para as indústrias aeroespacial, de defesa e de segurança e que faturou cerca de 16 bilhões de Euros em 2021, define a “smart city” como
“Uma rede, composta predominantemente por tecnologia da informação e comunicação — TIC, que tem como objetivo promover práticas de desenvolvimento sustentável que permitam enfrentar os desafios da urbanização crescente. [...] não são apenas um conceito ou um sonho sobre o futuro. [...] As gestões municipais estão investindo em tecnologias sem-fio para conectar e melhorar a infraestrutura, a eficência, a conveniência e a qualidade de vida dos moradores e visitantes” (4).
A Vinci Energy, também sediada na França e com faturamento em torno de 15 bilhões de Euros em 2021, especializada em soluções tecnológicas de energia, transporte, infraestrutura de comunicação e tecnologia da informação, define:
“A necessidade de construir uma cidade adaptada às necessidades do presente e que ao mesmo tempo preserve os recursos para o futuro é o fundamento da ‘smart city’. Seus objetivos podem ser resumidos em três pontos: melhorar o conforto dos habitantes; oferecer um transporte mais eficiente e respeito ao meio ambiente” (5).
A International Business Machines — IBM, uma das maiores empresas globais no ramo da tecnologia, criada nos Estados Unidos em 1911, com faturamento anual em torno de 80 bilhões de dólares, defende:
“A partir da coleta e da análise de dados de sensores, iluminação e medidores, efetuada a partir de aparelhos conectados à internet (IoT — Internet of Things), os gestores poderão tomar decisões que melhoram a infraestrutura, os serviços e os equipamentos. [...] O potencial das ‘smart cities’ é ilimitado. Apesar do alto custo de implantação inicial, proporcionam benefícios aos residentes, como a redução das despesas, a saúde e a qualidade de vida” (6).
A Cisco Systems, também sediada nos Estados unidos e criada em 1984, teve faturamento em torno de 50 bilhões em 2021. É uma das líderes do mercado em tecnologia da informação e segurança digital. De acordo com a empresa, as smart cities
“Utilizam a tecnologia digital para conectar, proteger e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Sensores, câmeras, mídias sociais e outros sistemas conectados à internet — IoT atuam como sistemas neurais, oferecendo informações aos gestores e cidadãos, a fim de orientar suas tomadas de decisão” (7).
Não são identificados nos discursos dessas corporações multinacionais os contrapontos às inúmeras vantagens da disseminação da tecnologia e dos sistemas de informação nos espaços urbanos. Efeitos colaterais como a dependência tecnológica, os monopólios dos fabricantes e gestores de sistemas, a obsolescência programada, o controle, a invasão de privacidade e a canalização de recursos para áreas não prioritárias em contextos de precariedade, não são citados. Conceitos como cidadania, comunidade, inclusão social, redução de desigualdades, diversidade cultural, estão ausentes nesses discursos, que se concentram nas ideias de eficiência e segurança, em especial na perspectiva da gestão e dos negócios. A narrativa proposta pelas empresas não revela que apenas uma pequena parcela da população seria beneficiária desses sistemas enquanto grande parte estaria excluída ou sob controle.
A retórica das “smart cities”, disseminada pelo lobby das empresas de tecnologia da informação e comunicação, e o seu acolhimento pelos gestores das mais diversas esferas governamentais, já tinham sido antecipados e teorizados por Milton Santos:
“As firmas hegemônicas, os bancos, tomam o lugar das instituições governamentais [...]. Mediante essa invasão descabida a vida social é ilegalmente regulada em função de interesses privatistas” (8).
Em suas reflexões sobre o “mundo de fabulações e do discurso único” da globalização, Santos destaca:
“Seus fundamentos são a informação e o seu império, que encontram alicerce na produção de imagens e do imaginário, e se põem ao serviço do império do dinheiro, fundado este na economização e na monetarização da vida social e da vida pessoal” (9).
Os discursos corporativos têm em comum a ideia de que as cidades compartilham as mesmas necessidades e prioridades, como se todas estivessem situadas no mesmo nível de desenvolvimento técnico e tecnológico. Trata-se de uma retórica de homogeneização, sobre a qual já alertava Milton Santos:
“Um mercado avassalador dito global é apresentado como capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são aprofundadas. [...] Enquanto isso, o culto ao consumo é estimulado” (10).
Nessa fabulação sobre cidades supostamente inteligentes, conectadas, seguras e sustentáveis, é importante lançar um olhar sobre alguns projetos de urbanização que se apresentam como “smart cities”.
Projetos como Palava, na Índia; Songdo, na Coreia do Sul ou Masdar City, nos Emirados Árabes unidos, são apresentados como referências em “smart cities”, mas sequer são cidades; trata-se de bolhas ou enclaves, em geral voltados aos negócios, onde habita apenas uma pequena parcela da população. As classes de menor poder aquisitivo não têm espaço nesses “condomínios inteligentes”. Os mais pobres participam desses projetos como infraestrutura invisível e necessária no limite da conveniência: constroem e fazem a máquina funcionar, mas não têm o direito de habitar ou de usufruir dos bens comuns, que em geral são privados. Por se tratar de modelos de urbanização baseados na lógica do consumo e da segregação social, acentuam a exclusão e desrespeitam os direitos humanos (11).
Cingapura, apresentada no Smart City Index 2021 como a mais inteligente no contexto global (12) é também um enclave, repleto de contradições. O que o relatório do Institute for Management Development não revela é que as qualidades da cidade-estado, que é na verdade um centro financeiro da economia global, estão restritas a uma minoria. Uma parcela relevante dos trabalhadores, que fazem a cidade funcionar, e que são invisibilizados pela segregação socioespacial, vivem sob a ameaça de governos que desrespeitam os direitos humanos, em condições precárias, em subúrbios situados a cerca de duas horas de distância do núcleo “smart” da cidade (13).
Sobre as classificações e rankings, a pesquisadora Teresa Cristina Mendes, do Observatório das Metrópoles, destaca que refletem a “lógica neoliberal, em que a ideia de concorrência se espraia das organizações privadas para as entidades públicas, com a tentativa de transformação da cidade [...] em locus de competição/maior eficiência” (14).
Em relação a esse contexto corporativo e de negócios em que as cidades, ou partes delas, têm se tornado, Milton Santos já destacava, em O espaço do cidadão:
“Em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário” (15).
A perversidade
Após apresentar as contradições da “fábula”, Milton Santos discorre sobre a “fábrica de perversidades”. Propõe-se aqui a sua correlação com o conceito de “smart city”, interpretada como a expressão física e espacial contemporânea do fenômeno político e econômico da globalização. Conforme Santos:
“A perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa de humanidade tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas” (16).
A retórica da “smart city” está fundamentada na ideia de disseminação da tecnologia, do controle da informação e da competição, como ingredientes essenciais de uma suposta inteligência urbana, econômica e mercadológica global. A esse respeito, Santos já alertava que “a competitividade é uma espécie de guerra em que tudo vale e, desse modo, sua prática provoca um afrouxamento dos valores morais e um convite ao exercício da violência” (17). Sobre a tecnologia, Santos critica:
“Como frequentemente, a ciência passa a produzir aquilo que interessa ao mercado, e não à humanidade em geral, o progresso técnico e científico não é sempre um progresso moral” (18).
Mais adiante, no mesmo texto, Milton Santos resume a questão, como se antevisse o que aconteceria algumas décadas depois, com o advento das “smart cities” e a competição global:
“Com a interdependência globalizada dos lugares e a planetarização dos sistemas técnicos dominantes, estes parecem se impor como invasores, servindo como parâmetro na avaliação da eficácia de outros lugares e outros sistemas técnicos” (19).
Nessa mesma perspectiva, Teresa Mendes propõe algumas reflexões:
“Cidades são organismos vivos (não-estáticos) e, portanto, quando gerenciadas por sistemas tecnológicos, estes devem ter flexibilidade suficiente para contemplar, não só mudanças de rumo ditadas pelas necessidades dos habitantes, como desafios impostos por novos problemas urbanos. Seriam os atuais sistemas capazes desta flexibilidade? Mais ainda, seriam estes sistemas inclusivos ou direcionados para uma pequena parcela da população, capaz de ter acesso a estes recursos?” (20).
No contexto internacional, em contraponto aos esforços publicitários que buscam promover o conceito, é possível identificar vozes críticas, que alertam para os riscos e desvios por trás dos panfletos promocionais.
No livro Against the smart city (21), o escritor e urbanista estadunidense Adam Greenfield apresenta uma série de argumentos que apontam para a necessidade de se construir uma visão crítica sobre o tema, em especial no caso dos “enclaves” e “pseudo cidades”, como Palava, Songdo e Masdar. Alguns pontos apresentados pelo autor, sobre esses projetos: 1. são em geral construídos ou idealizados em espaços genéricos (expansões ou enclaves isolados, sem relações com preexistências urbanas ou naturais); 2. são baseados em uma lógica de objetividade dissociada da realidade (a subjetividade e a diversidade cultural não fazem parte do vocabulário); 3. são construídas sobre a ideia de propriedade e de consumo, e não de compartilhamento; 4. são elaborados sob uma perspectiva do controle da gestão e não da participação cidadã; 5. os sistemas e os seus instrumentos estão diretamente associados a contextos de controle e de autoritarismo; 6. têm pouca ou nenhuma relação com a complexidade natural das cidades; 7. em geral replicam os modelos de setorização, exclusão e ênfase no transporte motorizado individual dos modelos que já se mostraram inapropriados na primeira metade do século 20. Em outro texto, Greenfield alerta:
“Os habitantes de uma ‘smart city’ são meros consumidores passivos de serviços municipais. [...] Qualquer tentativa de praticar a democracia e de se apropriar dos espaços públicos de maneira não prevista nos projetos, pode ser interpretada como um desvio ou interrupção da ordem natural dos fluxos dos sistemas. Trata-se, afinal, de uma concepção reducionista da ideia de vida cívica, com pouco a oferecer àqueles que defendem a ideia de cidadania” (22).
Josep Maria Montaner e Zaida Muxí, no livro Política e arquitetura, também apresentam reflexões sobre o tema:
“A lógica da implantação da ‘smart city’ baseia-se dissimuladamente na ênfase no controle e na segurança como os dois elementos prioritários do urbano. [...] E isso implica o crescimento do individualismo, a competitividade e a homogeneização” (23).
Montaner e Muxí também questionam a aplicação de grandes volumes de investimentos em dispositivos tecnológicos e sistemas de informação em contextos de fortes desigualdades sociais, em especial quando se trata de realidades em que parcela relevante da população não tem acesso a água encanada, esgoto, moradia e transporte.
Há mais de trinta anos, Milton Santos, em O espaço do cidadão, já alertava sobre a ênfase no consumo e no individualismo e no mundo corporativo e sobre a fragilização da civilidade e da coletividade:
“O chamado ao consumo busca retardar a tomada de consciência mergulhando o consumidor numa atmosfera irreal, onde o futuro aparece como miragem” (24).
“Onde o indivíduo é também cidadão, pode desafiar os mandamentos do mercado, tornando-se um consumidor imperfeito, porque insubmisso a certas regras impostas de fora dele mesmo. Onde não há o cidadão, há o consumidor mais-que-perfeito. É o nosso caso” (25).
A crítica de Santos sobre a base ideológica e intelectual corporativa e que se confirma nas décadas seguintes, até os dias atuais, na retórica das “smart cities” (e demais adjetivações criadas pelo mercado), é a fragilização da consciência sobre a cidadania e o agravamento das desigualdades e do subdesenvolvimento econômico e social, em especial nas cidades situadas à margem do sistema global hegemônico.
A questão abordada por Greenfield, sobre a passividade, também já era objeto de reflexão por Milton Santos, em Por uma outra globalização:
“Hoje, sob influência do dinheiro global, o conteúdo do território escapa a toda regulação interna, objeto que ele é de uma permanente instabilidade, da qual os diversos agentes apenas constituem testemunhas passivas” (26).
Afinal, as “smart cities” estão diretamente associadas à ideia de transferência da gestão e do controle, que passa dos cidadãos às corporações. Essa é a lógica das parcerias público-privadas, que têm se apropriado de parcelas cada vez mais relevantes dos recursos públicos das cidades, sob o pretexto da gestão eficaz, da economicidade e da segurança. Nessa perspectiva, a cidade, enquanto espaço democrático, que deveria ser inclusiva e aberta à expressão criativa e à diversidade social e cultural, deixa de existir. O espaço público passa a ser mero elemento residual, como transição inóspita e abandonada, entre as bolhas condominiais (de negócios, de habitação, de lazer, de consumo…) nas mais diversas escalas.
Nessa lógica de privatizações de espaços e serviços e de fragilização dos entes públicos, Milton Santos relembra, em Por uma outra globalização, que o Estado não se torna menor, ele apenas “se omite quanto ao interesse das populações e se torna mais forte, mais ágil, mais presente, ao serviço da economia dominante” (27). Esse fato ficou ainda mais evidente no contexto da crise de 2009, vinculada ao estouro das bolhas imobiliárias. Naquela ocasião, enquanto milhares de pessoas eram despejadas de suas casas, as instituições financeiras eram resgatadas e protegidas pelo Estado (28).
Outro fenômeno, que está associado às ferramentas tecnológicas e aos sistemas globais de informação, é o da economia do mundo digital e seu impacto nos espaços urbanos, como Airbnb (29) e Uber (30). Erroneamente apresentadas como plataformas colaborativas, tais corporações multinacionais ocultam dinâmicas perversas de gentrificação, desrespeito às leis, corrupção, fragilização dos sistemas públicos de transporte e precarização do trabalho, ao mesmo tempo em que exploram os recursos públicos disponibilizados pela cidade, sem a devida contrapartida.
Em 2014 a Comissão Europeia publicou o texto do arquiteto holandês Rem Koolhaas, intitulado “Minhas ideias sobre a smart city”, em que são apresentadas críticas ao conceito e suas formas de implantação. Koolhaas condena o discurso que apresenta as “smart cities” como a salvação do planeta e acrescenta:
“A motivação comercial corrompe a própria entidade que ela deveria servir [...]. Somos alimentados com ícones bonitinhos de vida urbana e dispositivos inofensivos, unidos por agradáveis diagramas nos quais cidadãos e negócios são cercados por cada vez mais círculos de serviços que criam bolhas de controle” (31).
Koolhaas ainda destaca que os gestores municipais costumam se encantar com a retórica das cidades inteligentes e os dividendos resultantes e alerta: “cidades inteligentes e política divergiram e cresceram em mundos separados. É absolutamente crítico que as duas possam convergir novamente” (32).
A urgência da necessidade de ativação da política, enquanto espaço democrático de discussão coletiva, já era destacada por Santos em O espaço do cidadão, como um dos caminhos essenciais para a construção de um espaço mais inclusivo, quando destacou a necessidade de “um modelo cívico que oriente a ação política e alicerce a solidariedade social e ao qual o modelo econômico e todos os demais modelos sejam subordinados” (33).
Possibilidades
Em Por uma outra globalização, após apresentar as controvérsias da “fábula” e as dinâmicas da “perversidade”, Santos conduz o leitor para uma perspectiva de possibilidades, no capítulo que dá título ao livro. A condição para esse outro futuro possível estaria, segundo o autor, na participação efetiva da coletividade e no fortalecimento dos instrumentos democráticos:
“Quando aceitamos pensar a técnica em conjunto com a política e admitimos atribuir-lhe outro uso, ficamos convencidos de que é possível acreditar em uma outra globalização e em um outro mundo” (34).
No contexto das cidades contemporâneas, essa reflexão proposta por Milton Santos nos leva a outra: seria possível uma outra urbanização? As respostas, segundo o geógrafo, residem nas próprias cidades, definidas como “espaços de revelação”, que têm um papel fundamental na construção da consciência coletiva (35). Nessa perspectiva, o território, que no contexto da perversidade é marcado pela exclusão, teria a possibilidade, enquanto palco de atuação coletiva e solidária (em oposição ao individual e solitário) para se transformar em instrumento de um “projeto social igualitário” (36). Afinal, conforme destaca Milton Santos: “o território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence” (37). O que qualifica o território urbano das cidades como palco dessa transformação seria a combinação entre densidade, diversidade e coletividade:
“Quanto mais diferentes são os que convivem num espaço limitado, mais ideias do mundo aí estarão para ser levantadas, cotejadas e, desse modo, tanto mais rico será o debate silencioso ou ruidoso que entre as pessoas se estabelece. Nesse sentido, pode-se dizer que a cidade é um lugar privilegiado para essa revelação” (38).
“Gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura territorializada, um discurso territorializado, uma política territorializada. Essa cultura da vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da escassez e a experiência da convivência e da solidariedade” (39).
Essa perspectiva mais otimista, de um possível equilíbrio entre o desenvolvimento tecnológico e o fortalecimento da cidadania e da democracia, apresentada por Milton Santos há mais de vinte anos (que para os mais céticos seria classificada como utópica), é compartilhada por alguns pensadores contemporâneos. Montaner e Muxí ponderam que o uso da tecnologia na escala municipal “pode promover a transparência, a comunicação e as possibilidades de participação dos cidadãos por meio de plataformas digitais” (40).
Mas apesar de concordarem que os instrumentos da tecnologia da informação e da comunicação podem potencializar a cultura da sustentabilidade, a economia energética ou a eficiência do transporte público, destacam que “o modelo em que os sistemas têm sido implantados nas cidades é elitista, segregador” (41). Segundo Montaner e Muxí, a conectividade no campo digital tem, contraditoriamente, se refletido no isolamento e na exclusão no mundo físico, em especial da esfera pública:
“A tecnologia segue se impondo com critérios instrumentais acima dos critérios humanos, sociais, culturais e criativos. [...] O futuro das ‘smart cities’ parece ser o de uma multidão de pessoas conectadas virtualmente, com todo tipo de instrumentos e dispositivos eletrônicos, mas, ao mesmo tempo, totalmente isolados em uma realidade física de gente conectada, mas que não interage com o que está ao lado ou com quem cruza” (42).
Para outros pesquisadores, a dependência do desenvolvimento tecnológico é nociva e as possibilidades de transformação residem na volta às raízes. Amy Flemming (43) destaca alguns caminhos possíveis, como alternativas opostas à ênfase tecnológica. A autora relembra que os equipamentos e os produtos tecnológicos envelhecem e lança a questão: “quando se trata de cidades dependentes de tecnologias em que o fornecimento e a manutenção são monopolizados por poucas e grandes corporações globais, o que acontece quando as ferramentas se tornam obsoletas, ou quando os sistemas e sensores pararem de funcionar?”. Flemming cita Shoshanna Saxe, professora da Universidade de Toronto, ao argumentar que para muitos dos desafios contemporâneos não são necessárias novas tecnologias ou novas ideias: “é preciso vontade, perspectiva e coragem para utilizar o que há de melhor nas velhas ideias”. É o caso dos saberes ancestrais e das culturas tradicionais, que apresentam lições sobre como viver coletivamente, de maneira sustentável e, de fato, inteligente.
O desenvolvimento da técnica é uma característica da humanidade. O grande desafio é sua aplicação a partir de uma perspectiva ética, de valores humanistas, como a inclusão social e o respeito à diversidade. A técnica pode construir ou destruir; incluir ou segregar. As ferramentas e os sistemas, vistos isoladamente, são apenas instrumentos. A inteligência ou a estupidez das cidades depende do uso que a sociedade faz desse repertório de tecnologias e de seus efeitos sobre o território.
A resposta estaria, portanto, na essência da cidade enquanto substância, essência, substantivo: o espaço da coletividade e da cidadania. Não é possível qualificar o que não tem substância; nem adjetivar o que não é substantivo. Afinal, conforme relembram Montaner e Muxí, “a cidade é constituída de uma complexidade que não é codificável com um único adjetivo” (44).
Entre os caminhos possíveis, vale voltar ao que é substância e lembrar que urbanização e urbanidade compartilham a mesma essência, o mesmo radical, de maneira que o “conjunto de técnicas e de obras que permitem dotar uma cidade ou área de cidade de condições de infraestrutura, planejamento, organização” está fundado nas mesmas raízes da palavra que evoca as “boas maneiras e o respeito entre os cidadãos; a afabilidade, a civilidade e a cortesia”.
Nesse jogo de substantivos, adjetivações, seus significados e essências, vale aqui relembrar a proposição de Milton Santos, de que é necessário “passar de uma situação crítica a uma visão crítica” (45), isto é, substituir a condição de dificuldade e perigo por uma perspectiva de análise e ponderação, que conduz a mudanças. É o caso dos coletivos de ativismo urbano, mobilização comunitária, movimentos de luta pela moradia e pelo direito à mobilidade, cicloativismo e urbanismo tático. Tais iniciativas se utilizam cada vez mais das redes sociais, da tecnologia da informação e dos sistemas de comunicação, mas a inteligência está, essencialmente, nas pessoas.
Enfim, conforme propõe Milton Santos:
“Diante do que é o mundo atual, como disponibilidade e como possibilidade, acreditamos que as condições materiais já estão dadas para que se imponha a desejada grande mutação, mas seu destino vai depender de como disponibilidades e possibilidades serão aproveitadas pela política. Na sua forma material, unicamente corpórea, as técnicas talvez sejam irreversíveis, porque aderem ao território e ao cotidiano. De um ponto de vista existencial, elas podem obter um outro uso e uma outra significação. A globalização atual não é irreversível [...].
A mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição da construção de um mundo mais humano. Basta que se completem as duas grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana” (46).
notas
1
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 5ª edição. São Paulo, Studio Nobel, 2000.
2
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. 9ª edição. Rio de Janeiro, Record, 2022.
3
Comissão Europeia. Smart cities <https://bit.ly/2xkKgkZ>.
4
Thales Group. Secure, sustainable smart cities and the IoT
5
Vinci Energy. Living in a smart city — what does it mean? <https://bit.ly/3TU4Y01>.
6
MERRY, Hannah. IBM Business Operations Blog. Population increase and the smart city. Maio, 2017 <https://ibm.co/3TQmTVF>.
7
CISCO. 2022. What is a Smart City? <https://bit.ly/3gfkkie>.
8
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão (op. cit.), p. 22.
9
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização (op. cit.), p. 18.
10
Idem, ibidem, p. 19.
11
BATTY, David. Conditions for Abu Dhabi's migrant workers 'shame the west'. The Guardian, 22 dez. 2013 <https://bit.ly/3AsNWiU>.
12
IMD — Institute for Management Development. Smart City Index 2021 <https://bit.ly/3EJUlsv>.
13
NAIR, Marc. Unaffordable cities: Singapore workers tread water on millionaires' island. The Guardian. Fevereiro, 2014 <https://bit.ly/3Au4QgZ>.
14
MENDES, Teresa Cristina. Smart Cities: solução para as cidades ou aprofundamento das desigualdades sociais? Observatório das Metrópoles, Rio de Janeiro, 2020 <https://bit.ly/3GsX2zX>.
15
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão (op. cit.), p. 13.
16
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização (op. cit.), p. 20.
17
Idem, ibidem, p. 57.
18
Idem, ibidem, p. 65.
19
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização (op. cit.), p. 124.
20
MENDES, Teresa Cristina. Op. cit., p. 2.
21
GREENFIELD, Adam. Against the smart city, Do projects, 2013.
22
GREENFIELD, Adam. The smartest cities rely on citizen cunning and unglamorous technology. The Guardian. 22/12/2014. s.p. <https://bit.ly/3UMTCfG>.
23
MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Política e arquitetura: por um urbanismo do comum e ecofeminista. São Paulo, Olhares, 2021, p. 126.
24
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão (op. cit.), p. 39.
25
Idem, ibidem, p. 40
26
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização (op. cit.), p. 101.
27
Idem, ibidem, p. 66
28
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares. Boitempo, São Paulo, 2019.
29
HINSLIFF, Gaby. Airbnb and the so-called sharing economy is hollowing out our cities. The Guardian. 31/08/2018 <https://bit.ly/2oq9kjx>.
30
DAVIES, Harry et al. Uber broke laws, duped police and secretly lobbied governments, leak reveals. The Guardian. 11/07/2022 <https://bit.ly/3XiUWbN>.
31
KOOLHAAS, Rem. My thoughts on the smart city. Comissão Europeia. 2014.s.p. <https://bit.ly/3OkNLvN>.
32
Idem, ibidem.
33
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão (op. cit.), p. 100.
34
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização (op. cit.), p. 101.
35
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão (op. cit.), p. 63.
36
37
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização (op. cit.), p. 96.
38
Idem, ibidem, p. 131.
39
Idem, ibidem, p. 144.
40
MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Op. cit., p. 124.
41
Idem, ibidem, p. 130.
42
Idem, ibidem, p. 131.
43
FLEMMING, Amy. The case for ... making low-tech 'dumb' cities instead of 'smart' ones. The Guardian. 15/01/2020 <https://bit.ly/3TPpDT1>.
44
MONTANER, Josep Maria e MUXÍ, Zaida. Op. Cit.p.123.
45
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão (op. cit.), p. 116.
46
Idem, ibidem, p. 174.
sobre o autor
Fabiano Sobreira é arquiteto e urbanista (UFPE, 1996), doutor em Desenvolvimento Urbano (UFPE/University College London, 2002) e pós-doutor (École d’architecture/Université de Montréal, 2009). Arquiteto da Câmara dos Deputados, professor do Centro Universitário de Brasília e pesquisador associado do Leap/Université de Montréal. Integrante do coletivo GSR Arquitetos e editor do portal e revista Concursos de Projeto.