A motivação deste trabalho contempla a investigação do emprego de processos discursivos na materialização do espaço construído. Desse modo, tomamos como referência empírica de estudo o projeto de requalificação urbana da zona portuária de Belém, denominado Projeto Belém Porto Futuro. Aqui entendemos o termo requalificação como uma prática de planejamento ou de proteção urbanística de equipamentos e de infraestrutura, expostos à degradação e à obsolescência funcionais. Refere-se a operações dirigidas a espaços não residenciais, as quais apostam em fomentar, nesses espaços, novas atividades, mais adaptadas aos contextos urbanos contemporâneos. Dirige-se mais aos espaços públicos, ou, nas operações urbanas de larga escala, à reconversão funcional de um dado espaço (1).
Lançado em abril de 2016, o projeto foi idealizado pelo então Ministro da Integração Nacional Helder Barbalho, do Movimento Democrático Brasileiro — MDB, e apresentava como proposta a transformação da área não operacional do porto de Belém (incluindo galpões de armazenamento e áreas retroportuárias) em polo de desenvolvimento, por meio da recuperação da infraestrutura, oferta de serviços e geração de emprego e de renda, contando com investimentos públicos e privados (2). A proposta sustentava, ainda, a intenção de promover a integração do porto com a cidade, usando, como referências, outras iniciativas de requalificação de mesma natureza, como o Porto Maravilha e Puerto Madero.
Essa proposta segue um modelo importado em seus dispositivos de planejamento urbano e desenho arquitetônico, cujas significações são carregadas de discursos que advém de uma agenda urbana comandada por sujeitos e estruturas nem sempre explícitos. Deste modo, prosseguiremos realizando primeiramente uma análise histórica, buscando as condições de produção dos discursos que significaram este espaço. Em seguida, explicaremos brevemente o método de investigação utilizado neste artigo, ou seja, a análise do discurso. Finalmente, analisaremos criticamente as estratégicas discursivas engendradas pelos sujeitos que legitimaram a implantação deste equipamento no tecido urbano da cidade de Belém.
Informações preliminares: analise do contexto histórico-morfológico
A área em que se situa a proposta está no entorno do centro histórico de Belém, no bairro do Reduto. De acordo com Marcia Nunes (3), ao final do século 19, esta era uma área de intensa atividade comercial, com pequenos cais, trapiches, rampas e docas que permitiam as trocas comerciais de produtos oriundos da floresta, como algodão e madeira. A exemplo de outras transformações urbanísticas datadas dessa época, a construção de um moderno sistema portuário, às margens da Baía do Guajará, deu-se na administração do intendente Antônio Lemos (1897–1912) e se deveu à crescente exportação de borracha no início do século 20. Desse modo, ocorre a demolição dos pequenos trapiches e das docas existentes. A modernização do sistema portuário, além de ter motivações econômicas, simbolizava o advento de uma nova maneira de representar o espaço urbano da cidade, que se baseava na clara distinção entre o passado e o futuro.
No século 20, o Reduto se constituiu como um bairro fabril periférico e manteve essa característica até a década de 1960. Atualmente, permanecem no bairro grandes áreas pouco adensadas, devido à constância de galpões industriais e de terrenos não edificados, que serviam de auxílio às atividades fabris, contribuindo para o esvaziamento populacional da região. Conta, também, com relevante patrimônio histórico, como os quinze galpões de ferro do porto, construídos no começo do século 20 e tombados pela Secretaria de Cultura do Estado do Pará.
A análise do discurso enquanto ferramenta metodológica
Análise do discurso é o nome dado a uma variedade de múltiplos enfoques no estudo de relações de efeitos de sentido entre interlocutores na linguagem, desenvolvida a partir de diferentes tradições teóricas e tratamentos em diversas disciplinas, sendo que estas perspectivas partilham da rejeição da noção de que a linguagem é simplesmente um meio neutro de refletir ou descrever o mundo.
Neste artigo, trabalharemos teórica e metodologicamente com as noções e procedimentos da análise do discurso em sua vertente francesa materialista, que assim se configura por romper com a noção de língua enquanto sistema ou estrutura. Nos remete à importância dos elementos externos à língua, como por exemplo o contexto sócio-histórico e a sociedade de classes. Portanto, toma como objetos de estudo a produção de efeitos de sentido realizada por sujeitos sociais e suas ideologias, que usam a materialidade da linguagem e que estão inseridos na História (4).
A análise do discurso não se formata como uma metodologia pronta; ela se encontra em um domínio complexo, baseando-se em um vai e vem entre descrição e interpretação, que se estabelece entre a produção linguística e a materialidade histórica, procurando as aproximações e as dispersões de sentidos em textos — orais, escritos, imagéticos etc. —, que não são neutros, uma vez que são regados pelas ideologias que interpelam os diferentes sujeitos. Como o discurso não é um objeto que nos é dado de antemão, este necessita de um trabalho de busca por parte do analista. Essa busca começa pela constituição do corpus da pesquisa.
Seguindo Eni Orlandi (5), a primeira etapa para se constituir o corpus da pesquisa envolve a escolha dos textos a analisar, que devem responder às questões iniciais da pesquisa: as motivações de implementação do projeto, suas principais referências em termos materiais e simbólicos, sua finalidade enquanto equipamento urbano, os possíveis impactos nas realidades socioeconômica e urbana da cidade de Belém etc.
Os textos escolhidos, provenientes tanto de fontes primárias quanto de fontes secundárias, incluem as transcrições de entrevistas concedidas pelos agentes envolvidos no projeto; documentos iconográficos e publicitários; transcrição de vídeos e audiências públicas realizadas pelo Governo Federal; além de imagens 3D das maquetes eletrônicas do projeto urbano que é alvo de investigação. Após, se deve organizar e coletar os recortes discursivos, ou seja, fragmentos dos textos que correlacionam linguagem e sua condição de produção.
A partir desse momento, o analista deve descrever sua análise propriamente dita, iniciando com as perguntas de interesse e retornando ao corpus, em busca das marcas discursivas presentes na materialidade linguística, que remetem às condições de produção de sentidos nos discursos, mostrando a que estratégia discursiva as falas se filiam, citando as marcas que o levaram às paráfrases de recortes, retiradas do corpus (6). Nesse ir e vir entre descrição e interpretação do nosso material sob análise, contamos com a ajuda de diversos autores que contextualizam a temática da requalificação urbana na atualidade. No próximo tópico vamos adentrar nesses fatores de forma prática.
Analisando o corpus discurso referente ao projeto Belém Porto Futuro
Em 18 de abril de 2016, o Ministério da Integração divulgaria um vídeo publicitário em seu site. Partes significativas do vídeo estão transcritas no recorte discursivo um:
“1. No ano em que a cidade completa quatrocentos anos, a Secretaria de Portos da Presidência da República está devolvendo à população de Belém aquilo que ela mais precisa: espaço. Para crescer, para gerar empregos e incentivar o comércio, empresas e a cultura. É o projeto Belém Porto Futuro de revitalização da região portuária. No futuro de Belém vai ter espaço para que o histórico e o moderno convivam em perfeita harmonia. Para que a cultura e a diversão se encontrem para um happy hour. [...] Com o projeto Belém Porto Futuro a cidade que temos hoje vai ser cada vez mais a cidade que todos queremos, e não existe lugar melhor para começar do que a região do porto. O rio que viu a cidade nascer e crescer vai ver Belém renascer. [...] O projeto Porto Futuro vai ter consultas públicas para que você, a comunidade da região e empresários, empreendedores e investidores tenham a sua opinião e sugiram que tipo de empreendimento deve estar presente no projeto, por que ser cada vez mais democrático também está no futuro de Belém. E ser econômico também. Quando o projeto sair do papel, a maior parte dos investimentos terá sido privado, exatamente como em Barcelona, no Rio e em Boston, cidades que já tem projetos similares” (7).
Importante notar que, já em seu vídeo de apresentação, o projeto demonstra ter sido concebido muito bem conectado com a ideologia e com o modus operandi dos projetos de requalificação que estão dentro do conceito de planejamento estratégico de cidades (8), que se sustentam na articulação de três analogias constitutivas identificadas por Carlos Vainer (9): a cidade como mercadoria, empresa e pátria. Neste primeiro vídeo, o discurso apresentado parece projetar Belém como: a. mercadoria de luxo, ao promover obras nas quais os potenciais compradores são os visitantes e os usuários solváveis; b. uma cidade que tenta se inserir em um método de empresariamento da gestão urbana, cuja subordinação dos fins à lógica do mercado tem na parceria público-privada seu instrumento mais eficaz; c. uma cidade em crise, que deve renascer a partir do consenso de que este projeto transformará Belém na cidade que todos os habitantes almejam.
Há a tentativa de superação da dicotomia passado/futuro, pois se busca a assimilação da área (que se encontra no entorno do centro histórico de Belém, contendo inúmeros imóveis tombados e em processo de degradação) por um projeto que aspira à modernidade, ou seja, um projeto que inserirá equipamentos contemporâneos em uma área histórica. O discurso tenciona, assim, evocar sentidos de conciliação entre os diferentes, não de ruptura.
Na oração “o rio que viu a cidade nascer e crescer vai ver Belém renascer”, retoma-se o discurso do declínio urbano, ao mesmo tempo que o vincula à importância das subjetividades relativas ao fluvial quando se trata de justificar e legitimar qualquer intervenção na orla da cidade. Também é realizada uma conexão entre as noções de projeto ambientalmente responsável e democraticamente concebido pela necessidade de se ouvirem as opiniões de empresários e de investidores. A sustentação econômica e a exequibilidade do projeto dependem, portanto, da indispensabilidade de investimentos da iniciativa privada e, para comprovar isso, utiliza-se, mais uma vez, da estratégia de aproximação benéfica de sentidos, provendo exemplos de cidades internacionalmente reconhecidas por passaram por grandes intervenções de requalificação em suas zonas portuárias.
Prosseguindo em nosso percurso cronológico, a primeira reunião participativa ocorreu no dia 18 de maio de 2016. Essa reunião tinha como intenções apresentar as fases do estudo e coletar opiniões de limitados segmentos da sociedade sobre a proposta. Os responsáveis pela apresentação e condução do debate foram dois arquitetos. Estavam presentes representantes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan, da Secretaria de Portos, do Sindicato dos Arrumadores do Porto, além de arquitetos e representantes do Governo do Estado.
Em sua exposição (recortes discursivos dois e três), foram destacadas algumas cidades-exemplos, no que diz respeito à requalificação de áreas portuárias, além de uma significação para o termo requalificar.
“2. Puerto Madero era um porto subutilizado, que foi desativado... a requalificação urbana onde o patrimônio foi revitalizado, valorizado/modernizado; teve a valorização do espaço que Buenos Aires necessitava. Já o Porto Maravilha é um novo espaço cultural e turístico...houve requalificação do espaço, para que a população tenha acesso à água do rio ou mar. E Lisboa teve a criação de marcos de arquitetos reconhecidos mundialmente, a ponto de marcar aquele espaço, dar uma identidade àquele espaço [...]. Mudança no perfil da região com a criação de mercado de trabalho e receita pro estado com a valorização imobiliária” (10).
“3. Requalificar significa dar uma qualidade para aquele espaço, atrair novos investidores, e também a permanência dessa população. Dar à população qualidade de vida graças à requalificação sem retirá-la de lá” (11).
“4. Nada disso seria possível sem uma parceria com o privado. Apenas com a mão do governo a dificuldade é muito grande. No nosso projeto é importante que o empresário se veja habilitado a investir” (12).
Nestes recortes, fica explícita a preocupação com a valorização da área. Para além da modernização do espaço e da criação de marcos arquitetônicos (enunciados comuns aos discursos de requalificação urbana), utilizando-se da exemplificação de projetos de requalificação urbanas em outros países, há a necessidade de valorização imobiliária como pressuposto da parceria com a iniciativa privada, tida como essencial para o prosseguimento do projeto.
No dia 11 de janeiro de 2017, foi apresentado, pelo ministro Helder Barbalho a empresários, representantes do poder público e à sociedade civil, um vídeo, mostrando a maquete eletrônica do projeto conceitual, no qual se vislumbram as transformações que atingirão as áreas de intervenção. No projeto foram pensados, para as quadras retroportuárias, a criação de um parque urbano, com espaço infantil, academia ao ar livre, espaço para animais de estimação e praça de alimentação; para as áreas de galpões (correspondente à segunda etapa do projeto, ainda não executada), foi proposta a implementação de equipamentos, como mercado municipal, Museu de Arte Moderna, Museu do Círio e escritórios; e duas quadras se transformaram em um imenso estacionamento, com cerca de 470 vagas.
Nesse momento foram tecidas algumas falas elogiosas à sua iniciativa como idealizador do projeto, as quais destacamos nos recortes discursivos a seguir:
“5. É um presente para Belém. Nesses quatrocentos anos Belém carece de espaços mundiais para que as famílias possam habitar e possam, não só a fomentar o turismo, mas acima de tudo gerar emprego e renda pra população. Agradeço a luta do ministro Helder para realizar este projeto” (13).
“6. Este projeto valorizará o empreendedorismo e o comércio, o ministro Helder está vocacionado a trazer Belém de volta à evolução que a dinâmica do mundo hoje em dia impõe. Este projeto é um marco na história da cidade” (14).
Nesses recortes, são ressaltadas as características mundiais do projeto. Os traços da arquitetura e do paisagismo contemporâneos, de caráter modernizante, têm, com certeza, influência no discurso desses sujeitos, visto que tais traços corroboram o alinhamento — pelo menos no âmbito estético — do projeto com as referências de nível internacional, com a utilização de estratégias de desenho e com o uso de materiais em voga na atualidade, como a combinação de diferentes cores e texturas de materiais (concreto, madeira, grama, entre outros), além de fontes, de espelhos d’agua, de decks etc.
Até a designação dos espaços e dos equipamentos tem a intenção de conferir ao projeto um quê de sofisticação, com a utilização da língua inglesa que, no discurso, tende a potencializar a vocação internacional do projeto (“espaço lounge, espaço pet, playground”), e que, no Brasil, associa-se à maneira pela qual são nomeados espaços de convivência e de lazer em condomínios fechados, o que demonstra que a classe média é o público-alvo para consumir esse espaço.
Nesse ponto, é importante salientar que grandes projetos de parques urbanos cumprem o papel de emblemas de poder. São vitrines e signos ostentatórios, comumente conectados a discursos de poderes políticos e econômicos. Apresentam legitimidade através do consenso de que parques (representados, frequentemente, pelos espaços verdes, signos ligados à natureza) contribuem para a melhoria da qualidade de vida urbana e conferem charme e estética ao ambiente das cidades. No entanto, podem ser projetados com a finalidade de capitalização, através do aumento dos preços dos imóveis nas áreas vizinhas, atuando como elemento determinante, a favor da especulação imobiliária (15).
Não podemos desprezar a produção de sentidos que emana das imagens do projeto. Um discurso pode ser veiculado através de diferentes mídias e os códigos visuais são, atualmente (mais do que os linguísticos), uma das fontes mais frequentes e poderosas de discursos. As maquetes eletrônicas em 3D e as imagens renderizadas são suportes materiais frequentemente utilizados na correlação entre discurso publicitário e arquitetura.
Assim, as imagens apresentadas formam uma rede associativa, que utiliza elementos verbais e não verbais: contêm dimensões oníricas e lúdicas, representações de um cotidiano idealizado, higienizado e estetizado de cidade, simbolizando um estilo de vida sem a presença das disparidades, tão comuns à cidade de Belém, reforçando uma rede de sentidos positivos associada ao projeto em questão. Frise-se, contudo, que estas imagens poderiam ser de qualquer parque no mundo, pois não há elementos que as conectem à cidade.
Por meio da publicidade, determinado produto ganha uma marca, uma embalagem conceitual, cujo fim último seria a venda, através da capacidade de se distinguir (dos demais produtos), ao mesmo tempo em que se relaciona com outros produtos e sujeitos. Assim, “a publicidade nada teria a ver, portanto, com funcionalidade e, sim, com a aparência da realidade, como expressão da imagem” (16). A ideologia do discurso publicitário, quando empregado nesse tipo de intervenção, visa promover a venda do espaço, ao produzir, através de uma representação visual abrangente, superficial e desenraizada, um simulacro de cotidiano.
Entre os argumentos que mais chamam a atenção nas estratégias discursivas que embasam o projeto, estão as constantes referências aos chamados cases de sucesso na área de intervenções urbanas que, pelo menos, no discurso, seriam de natureza semelhante à que está sendo concebida para a área portuária de Belém. Mesmo levando em consideração a escala reduzida, a tímida proposta apresentada guarda pouquíssimas relações com os extensos e abrangentes projetos executados em Barcelona e no Rio de Janeiro, tanto em termos de desenho urbano quanto em termos de criação de equipamentos, muito menos quando se considera a análise econômica de sustentação financeira, já que não há uma proposta de parceria público-privada para financiá-lo.
Em dezembro de 2017, Barbalho assinou o contrato para a primeira etapa de execução do projeto, composto pelo parque urbano Parque Futuro. Os recursos destinados ao projeto foram repassados ao Ministério da Integração Nacional, responsável por executar a maior parte da obra. Em fevereiro do ano seguinte, o projeto básico e o executivo da primeira etapa do Projeto Belém Porto Futuro foram apresentados pelo consórcio vencedor da licitação RDC, contando com gastos superiores a 31,5 milhões de reais. No dia 14 de março de 2018, foi assinada a ordem de serviço que autorizou o início das obras da primeira etapa do projeto.
Cabe ressaltar que o projeto não enfrenta questões básicas, tais como aproveitamento do solo e altura máxima do gabarito na área (hoje, limitado a apenas sete metros), e a completa desarticulação dos agentes envolvidos, tanto no âmbito do poder público quanto no âmbito de procurar a adesão da iniciativa privada ao projeto.
Pode-se pensar que isso, talvez, tenha sido proposital. A produção do fato político, desde a gênese do projeto, sempre se sobrepôs à perspectiva de produção de um projeto de intervenção urbana de qualidade, mais condizente com a realidade local. O projeto e o planejamento urbanos têm sido usados como instrumentos de divulgação e de promoção pessoais e político-eleitoreiros, de forma acentuada no Brasil nas últimas décadas. Trata-se, sobretudo, de uma vontade política, que se manifesta por meio da intenção de deixar traços para o futuro, de se fazer representar através do tempo (17). O processo que se vislumbra em Belém, lamentavelmente, não foge a essa máxima.
Nesse ponto não podemos nos ausentar de escrever algumas linhas sobre o discurso político, pois, no nosso entender, esse gênero específico atua de forma preponderante a partir de seu principal sujeito enunciador na legitimação do Projeto Belém Porto Futuro perante a sociedade.
Devemos ter sempre em mente que a política é um campo no qual existem relações reais — mas, também, simbólicas — de forças assimétricas para a conquista e para a gestão de um poder, que só pode ser exercido quando se baseia em uma legitimidade, adquirida e atribuída a um ator político, que também deve ter credibilidade e persuadir o maior número de indivíduos que compartilham de certos valores, a fim de chegar a um consenso (18). Ademais, devemos considerar, na análise, que o ato de comunicação é definido como um ato de troca sempre interacional: o significado do discurso político não depende, apenas, da intenção do sujeito enunciador, mas do encontro entre essa intenção e a intenção do sujeito interlocutor.
Justamente por essa atividade comunicacional por meio da linguagem, o discurso político pode ser denominado discurso da retórica ou da influência, determinado a construir imagens e efeitos, ao invés de ideias: “o discurso político mostra mais sua encenação do que a compreensão de seu propósito” (19).
Por conseguinte, alguns atributos e qualidades de Helder Barbalho são fundamentais para considerá-lo uma notória referência de ator político na cidade de Belém, atribuindo-lhe legitimidade e confiabilidade. Entre estas características, podemos citar: sua filiação social, principalmente, sua família, cujos membros (de várias gerações antecedentes) gozaram de altos cargos na administração e no poder públicos, legando-lhe a incumbência de prosseguir com o trabalho de seus antepassados; o saber-fazer, que significa não só ter estudado em instituições de prestígio, mas também ter ocupado cargos de responsabilidade e ter-se destacado por sua tecnicidade e por sua competência.
Com efeito, a competência e a experiência permitem que “la soberanía se ejerza mediante la razón y demuestra que esta se encuentra en condiciones de llevar a cabo su proyecto de gestión del bien común” (20).
Dessa maneira, a soberania exercida por Helder Barbalho, enquanto ministro da Integração Nacional, em 2017 (cargo de enorme responsabilidade no âmbito do poder federal), e toda a experiência prévia de cargos eletivos (vereador, prefeito, deputado) lhe outorgou as condições necessárias para levar a cabo um projeto específico de bem comum, qual seja, um parque público na cidade de Belém. Sobre o Parque Futuro, observemos o recorte discursivo a seguir, a transcrição de entrevista cedida pelo referido político, logo após a apresentação do projeto, em janeiro de 2017:
“7. Dar uma nova cara para nossa cidade Belém no exato momento que se iniciar uma obra dessa magnitude o povo vai reconhecer que nós estamos hoje atrás de fazer o melhor pelo Estado, o melhor para Belém, sem independentemente de estar no poder ou não, quem está administrando a Prefeitura de Belém, quem está administrando o Governo do Estado do Pará. Precisa disso, de pessoas empenhadas em fazer com que o nosso estado seja visto lá fora no Brasil ou lá fora com coisas boas. [...] Essa obra não tem um padrinho, essa obra tem que ser de toda a sociedade. [...] Isso representa com que a nossa cidade possa ter um equipamento que fará com que o protagonismo de metrópole da Amazônia possa ser assegurado. Isso impulsionará atividades de comercio e principalmente de turismo que hoje estamos a perder, seja pra Manaus, seja pra Santarém” (21).
Primeiramente, podemos afirmar que o discurso político está comprometido com a criação de um atuante coletivo, e não individual, e isso fica evidente na tentativa de Helder em estabelecer este projeto como um bem comum à cidade de Belém e à sociedade paraense como um todo, elevando-o a um patamar de superioridade a qualquer rivalidade ou disputa partidária, principalmente na oração: “essa obra não tem um padrinho, essa obra tem que ser de toda a sociedade”. Dessa maneira, o então ministro também coloca a si mesmo em posições de relevância e de capacidade de engendrar transformações positivas na imagem do estado, em âmbitos nacional e internacional.
Desse modo, podemos fazer uma concatenação de elementos interdiscursivos que nos ajudam na análise. Emerge o discurso das cidades competitivas, em que o image-making e o marketing urbano têm papéis fundamentais na atração de investimentos e de turistas, utilizando, para isso, um projeto de requalificação urbana e apelando ao emocional da população e ao sentimento de orgulho cívico de cidade frente às concorrentes: “isso representa com que a nossa cidade possa ter um equipamento que fará com que o protagonismo de metrópole da Amazônia possa ser assegurado”. Ao mesmo tempo, o sujeito constrói, em seu discurso, imagens e efeitos de valor generalista — “dar uma nova cara para nossa cidade Belém”—, com o intuito de impactar (e, assim, persuadir) o interlocutor.
De fato, o projeto repercutiu na mídia local, sobretudo nas eleições de 2018, ano de início da obra. Na contenda disputada por Helder Barbalho pela segunda vez, foi notório o uso do Projeto Belém Porto Futuro como repertório discursivo na campanha eleitoral do candidato ao governo do estado. A conquista dos recursos necessários à obra simboliza o poder de influência e credibilidade do então ministro na esfera federal, enquanto a sua execução demonstra que Barbalho sabe fazer, que tem a capacidade de trabalho e a eficiência necessárias para levar ideias à prática.
As redes sociais, principais veículos de acompanhamento da execução do projeto, desempenharam função de propaganda eleitoral para o candidato. As propagandas apresentaram em seus enunciados os efeitos de sentido de credibilidade e de legitimidade (o saber-fazer e o poder-fazer) comprovados, faltando, apenas, a necessária conquista, oriunda do resultado das urnas, para assumir a função pública pleiteada. Por fim, a eleição foi vencida por Helder em segundo turno.
Apenas no dia 13 de agosto de 2020, mais de dois anos após o começo das obras, o parque foi inaugurado. Para a ocasião, foram convidados, além de Helder Barbalho e de autoridades locais, o presidente da República Jair Bolsonaro e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.
Para além da comoção causada pela presença de Bolsonaro no evento, com uma multidão se reunindo em plena pandemia de coronavírus, também chamou a atenção o verdadeiro embate entre forças políticas antagônicas na ocasião, com cada uma disputando a paternidade da obra (ver recorte discursivo n. 8). De um lado, estavam aquelas que agradeciam a Helder pela iniciativa, de outro, estavam os seguidores de Bolsonaro, os quais congratulavam o presidente pelo projeto. Na opinião do autor, a politização do projeto, antes explícita, atingiu seu ápice.
“8. Hoje é um dia de festa. Hoje Belém ganha um novo cartão postal, um novo ambiente para o encontro das pessoas, para que as famílias possam aqui se reunir, para que Belém possa desfrutar de sua beleza e, acima de tudo, um novo parque urbanístico para o embelezamento da nossa capital [...]. Mas é fato e importante, mesmo que isso possa incomodar alguns, que a memória seja absolutamente lembrada sempre, presidente. Queria agradecer ao ministro Rogerio Marinho a sua deferência, porque quando o filho é bonito, tem muito pai que deseja cria-lo e registra-lo, quando o filho não presta o deixa à margem, e esta obra aqui — e hoje é um momento de gratidão, de muitas pessoas que colaboraram para que esse momento pudesse acontecer [...]. Isto aqui, presidente, era uma área abandonada, onde ficavam entulhos, sendo ponto para “drogadícios”, sendo ponto lamentavelmente de delitos num local absolutamente extraordinário da capital [...]. Belém ganha este espaço, mas Belém tem um outro projeto, que é fazer com que estes armazéns que hoje não são mais utilizados para atividade portuária, que nós possamos aqui abrir uma orla pra capital, pra ser um local de desenvolvimento do turismo, de desenvolvimento do lazer, pra geração de emprego, para geração de renda, pro crescimento urbano” (22).
Interessante notar como a noção de embelezamento continua presente nos discursos sobre as intervenções urbanas. A rede de significantes, relacionada a parque urbano, é direcionada à estetização da cidade ao invés de relacioná-lo aos sentidos de sustentabilidade, de meio ambiente, de contato com a natureza, de qualidade de vida.
Nesse trecho, também é perceptível um relativo abandono do sentido de bem comum e da criação coletiva relativa ao projeto. O tom conciliatório e superior às rivalidades políticas é deixado de lado frente à presença do presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores no evento. Nesse momento, Barbalho é taxativo quanto à precedência do projeto: foi ele o principal agente, responsável pela sua implementação, a ponto de, metaforicamente, compará-lo a um filho. O governador convoca seus interlocutores a rememorar e a ter consciência desse fato, de forma a minimizar qualquer louvor que pudesse ser facultado ao rival.
Conclusão
Finalizamos afirmando que, a partir do emprego do método da análise do discurso, constatamos em nossos corpus que o discurso político foi utilizado como estratégia de legitimação do projeto Belém Porto Futuro, a partir da atuação de seu principal sujeito enunciador, o então ministro, e hoje governador do estado, Helder Barbalho. Alguns atributos e qualidades de Barbalho foram fundamentais para considerá-lo uma notória referência de ator político na cidade de Belém, atribuindo-lhe uma legitimidade: sua filiação de ordem social e o saber-fazer.
Se reitera sua posição enquanto liderança política capaz de alçar Belém a um patamar de mundialização referente à dinâmica engendrada pelo capital hoje, que se manifesta, também, na exigência de projetos requalificação urbana, em especial de áreas degradadas. No caso em tela tratou-se, sobretudo, de uma vontade política que se manifesta através da intenção de deixar traços para o futuro e de se fazer representar através do tempo por meio de obras emblemáticas na orla de Belém, de forma a angariar prestígio e legado para as eleições de 2018, na qual o postulante saiu vitorioso.
Fazem-se igualmente presentes: 1. discursos que colocam parques urbanos enquanto emblemas de poder comumente conectados a discursos de poderes políticos e econômicos; 2. discurso da modernização do espaço e criação de marcos arquitetônicos, que corroboram o alinhamento do projeto com as referências apresentadas a nível internacional e que tem como objetivo alçar a cidade a um nível de competitividade na atração de turistas e investimentos privados; 3. o uso do discurso publicitário, que visa promover a venda do espaço através de uma representação visual superficial e desenraizada, um simulacro de cotidiano.
Atualmente, o projeto passou do Governo Federal para a tutela do Governo do Estado do Pará, que planeja sua segunda etapa de implantação.
notas
1
PEIXOTO, Paulo. Requalificação urbana. In FORTUNA, Carlos; LEITE, Rogério Proença (org.). Plural de cidade: novos léxicos urbanos. Coimbra, Almedina, 2009, p. 41–52.
2
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Belém Porto Futuro: projeto de revitalização. Secretaria Nacional de Portos, Brasília, 2016 <https://bit.ly/3GJoNVa>.
3
NUNES, Marcia. Rumo ao boulevard da República: entre a cidade imperial e a metrópole republicana. Tese de doutorado. Belém, PPHIST UFPA, 2017.
4
ORLANDI, Eni. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. 3ª edição. Campinas, Pontes, 2017.
5
ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7ª edição. Campinas, Pontes, 2007.
6
SOUZA, Sergio. F. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. Manaus, Census, 2014.
7
Belém Porto Futuro. YouTube, San Bruno, 9 mai. 2017 <https://bit.ly/3U66UD0>.
8
BORJA, Jordi. As cidades e o planejamento estratégico: uma reflexão europeia e latino-americana. In FISHER, Tânia (org.). Gestão contemporânea: cidades estratégicas e organizações locais. Rio de Janeiro, FGV, 1997, p. 79–99.
9
VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico Urbano. In ARANTES, Otilia; VAINER, Carlos; MARICATO, Erminia (org.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000.
10
Depoimento do arquiteto da Geo Logica Consultoria Ambiental a Adailson Soares Dantas, 18 mai. 2016. Grifo do autor.
11
Idem, ibidem. Grifo do autor.
12
Depoimento do arquiteto do escritório Giovanini Lettieri Arquitetura a Adailson Soares Dantas, 18 mai. 2016. Grifo do autor.
13
Depoimento do presidente da Associação Comercial do Pará a Adailson Soares Dantas, 11 jan. 2017. Grifo do autor.
14
Depoimento do deputado estadual a Adailson Soares Dantas, 11 jan. 2017. Grifo do autor.
15
SERPA, Ângelo. O espaço público na cidade contemporânea. São Paulo, Contexto, 2007.
16
ALVES, Maria Cristina Dias. Construções retóricas do discurso publicitário de condomínios residenciais. Dissertação de Mestrado. São Paulo, ESPM, 2009, p. 45.
17
SERPA, Ângelo. Op. cit.
18
CHARAUDEAU, Patrick. La argumentación persuasiva: el ejemplo del discurso politico. In SHIRO, Martha; BENTIVOGLIO, Paola; ERLICH, Frances D. (org.). Haciendo discurso: homenaje a Adriana Bolívar. Caracas, Facultad de Humanidades y Educación, 2009, p. 277-295.
19
CHARAUDEAU, Patrick. Para qué sirve analizar el discurso político? DeSignis, Paris, n. 2, 2002, p. 109-124.
20
Idem, ibidem.
21
BARBALHO, Helder. Entrevista a Mauro Bonna no Programa Argumento. Belém, TV RBA, 16 jan. 2017. Grifo do autor.
22
Depoimento de Helder Barbalho a Adailson Soares Dantas em ocasião de inauguração do Parque Futuro, ago. 2020. Grifo do autor.
sobre o autor
Adailson Soares Dantas é arquiteto e urbanista pela FAU UFPA e mestre em Planejamento do Desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA.