Para entender os grids na arquitetura, é necessário primeiro entendê-los sob viés da arte e do pensamento. O ser humano, e sobretudo o artista, sempre teve a tendência de querer controlar o que vê e percebe. Exemplo máximo é o renascimento, no qual, com os avanços no estudo de perspectiva e geometria, o uso das redes, malhas, ou grids, se tornou essencial para representar o espaço dentro dos quatro cantos da tela, retendo-o em seus limites. Por outro lado, o uso dessa ferramenta passou por transformações com o passar do tempo. É verdade que ao longo da história, este foi um elemento estruturante da arte e do espaço cujo potencial passou despercebido para a maioria. Para um olhar inexperiente ou desatento, por exemplo, a beleza de uma pintura dos mestres renascentistas mascara o uso das técnicas geometrizantes do grid. Ao passear hoje pelos becos de ruínas romanas — ou, que não seja por uma questão de temporalidade, pelos becos adjacentes aos boulevards da Paris do século 19 — um transeunte à deriva não percebe a malha racional que percorre e compõe, desatento à escala da relação corpo-cidade, que viria a ser estudada amplamente no século 20. O grid, apesar de presente, nunca tomava uma posição focal na produção artística e arquitetônica. Contudo, é justamente neste século em que a noção da malha, como elemento muito além de estruturante, é aprofundada. Ele deixa de ser apenas uma base controlada para expressar outras ideias, tornando-se cada vez mais explícita, e além, celebrada. Nem mesmo os desatentos são mais capazes de desaperceber esse elemento.
Na sua análise da história da arte do século 20, Rosalind Krauss, em “Grids” (1), percebe que a malha não é somente uma fonte espacial, senão uma estrutura visual que rejeita uma narrativa sequencial. Ela se torna, portanto, uma importante questão reflexiva tanto como símbolo quanto como mito, sobretudo em um momento de expansão do modernismo. Como sequencializar o surgimento de tantas inovações, do carro ao telefone à expansão interminável da indústria? Decerto, tentar fazê-lo em um mundo global, e em crescente interconectividade, seria sinônimo de reprimi-lo — conclusão a qual muitos estruturalistas chegaram. Portanto, o grid passa a ser (re)pensado, agora com uma função conceitual mais forte do que antes fora. Ele torna-se sinônimo, nas artes, da própria época. Krauss aponta a metáfora da janela que precedeu a malha pura na arte moderna: Odilon Redon, Le Jour, ou Mallarmé, Les Fenêtres, são exemplos do fascínio pela regularidade desse elemento, mas principalmente do seu valor simbólico. O vidro exibe o que é visto, o fluxo do tempo e da vida, enquanto a esquadria o regulariza, o torna legível e contido para o observador. Ainda que seja uma marcação objetiva do espaço e uma forma de contenção, a janela, que não deixa de ser um grid, é também uma estrutura que representa todo o sentimento que marcaria o início do século 20. A esquadria traduz metaforicamente o anseio de controle e pertencimento a um tempo cada vez mais acelerado que se vê passar fora da comodidade e da segurança do lar. Sobretudo, o grid confere a capacidade de controle mínimo a um artista que se encontra angustiado, que tenta se mover na mesma frequência que o mundo ao seu redor. Invés de perder-se no todo, pode-se entendê-lo pela composição de suas partes menores.
Assim, agora que as malhas se tornam uma representação visual da modernidade, levantam-se também diversas questões. Não se trata mais somente de um artifício técnico para perspectivas, mas sim de um conceito que guia diversos movimentos modernistas e que, sobretudo, gera inúmeras dualidades. Primeiramente, como já apontado, urge reforçar a conclusão de Krauss: essa mudança de percepção faz com que o grid passe a ser ambiguamente uma demarcação espacial (geometrizante, achatante) e uma demarcação temporal (modernizante). Além disso, é necessário lembrar que, no início do século 20, ideias sobre essa dualidade espaço-tempo, como a teoria da relatividade, reverberaram profundamente no mundo das artes, e as crescentes dúvidas acerca do divino criaram um vácuo que se expandia na sociedade.
Enquanto esse vácuo se ampliava, a crença que foi sendo formada entre artistas na infalibilidade da malha e da sua conexão com o sentimento ambíguo do espaço-tempo gera diretamente outra dualidade: trata-se agora de um elemento puramente secular que é elevado ao status de deidade. Na ampla obra de Mondrian, por exemplo, fica evidente o sentimento quase sagrado que a geometria da rede dispõe ao autor, mesmo que distante da ideia tradicional de sagrado que permeara a cultura europeia pelos últimos dois mil anos na cultura judaico-cristã. E é evidente que, no renascimento, havia uma crença na função geométrica da malha. Por outro lado, tratava-se puramente de um instrumento matemático, técnico, ao qual se confere confiança assim como nós confiamos na capacidade de um avião de alçar voo. Não há, como no De Stijl, a elevação da malha como filosofia, crença religiosa na geometria, representação temporal e, sobretudo, como linguagem inteligível, compreensível globalmente. Pela malha, secularidade e crença se tangenciam de forma radical no modernismo, mesmo que os dois pareçam se negar.
Nas vanguardas russas, é evidente que essas questões eram também exploradas. O suprematismo já busca expressar a linguagem e as possibilidades da estrutura da malha dentro e fora dos limites da tela. Com Rodchenko e Popova, como afirma Tupitsyn, “o grid se afastou do curso planejado pelos modernistas ocidentais, ou seja, de significar a autonomia da arte. Na verdade, ele ofereceu a fuga da produção bidimensional” (2). Logo no início da década de 1920, as construções espaciais e móbiles confirmariam essa vontade de fuga das telas, das linhas, dos pontos. E é importante aqui ressaltar o caráter não linear da temporalidade moderna à qual o grid se vinculou; essa organização cabe a nós, que o estudamos em retrospectiva. Os construtivistas russos, por exemplo, já se deparam com as possibilidades de questionar os limites da regularidade da malha tridimensional numa época em que, no Ocidente, os modernistas ainda tentavam os formular de modo concreto. Por outro lado, essa busca por um entendimento espacial do grid é também um ponto de convergência entre os vanguardistas russos e os arquitetos modernos ocidentais, o que nos é caro neste texto.
Além disso, os avanços russos parecem contribuir fortemente para a evolução do conceito de rede que tanto marca o século 20 no Ocidente também. O elemento óptico de estruturação espacial clássico migra cada vez mais para uma organização mental do artista e do observador. Tupitsyn relembra que, ao longo da expansão das ideias de rede, há um grande fluxo de novas mídias, como fotos, colagens e filmes, alternativas à pintura tradicional que seriam exploradas também, por exemplo, pela Bauhaus. É dessa escola que vem o artista Herbert Bayer, que chama o grid de “extensão visual” (cuja tradução também poderia ser “expansão”), uma ferramenta que aumenta a compreensão humana dentro desse crescente fluxo de pensamentos e expressões. O que fica claro, porém, é que os estudos do grid encontraram os limites da pintura, a finitude de suas telas bidimensionais.
Kazimir Malevich, em seus Architektons, talvez seja o exemplo de maior interesse aqui dessa passagem da malha para o mundo tridimensional na arte pela sua proximidade evidente à arquitetura. A obra do artista que se tornou símbolo do suprematismo consistia na adição de diversos blocos retangulares articulados em torno de um central, normalmente maior. A malha, como aponta Tupitsyn, conquista na Rússia uma voz completamente singular, diferente da sua função inerentemente organizacional a qual se prendia no Ocidente. Não há na obra a relação forma-função que instiga os modernistas ocidentais. Por outro lado, há de se citar que a noção de eixo de desenvolvimento presente de forma latente na obra russa também seria essencial para arquitetos como Loos. Por isso, utiliza-se Malevich como um importante ponto de contato entre arte e arquitetura.
Em rápido retrospecto, entende-se agora o interesse de se fazer uma breve análise do uso de malhas na arte para, sobretudo, criar uma forte base para se entender o seu uso em arquitetura. Afinal, há um paralelo direto e evidente em seu entendimento nos dois campos com o passar de cada época. Da mesma forma que ela se utiliza no renascimento como elemento de estruturação da tela dos mestres pintores para expressões outras, Palladio a utiliza como elemento retificante de controle espacial em suas Villas. O sentido por trás das suas obras advém da simetria e da influência clássica, e não do uso da malha em si como instrumento. Essa tendência pode ser vista também em obras do planejamento urbano, onde o cânone retificante também perdurou ao longo dos séculos. A mesma retícula racional da Timgad romana pode ser vista, dadas as devidas proporções, nos planos de Michel Ecochard para o Marrocos, por exemplo. As malhas propostas pelo francês demonstram uma regularidade contrastante com a expressividade local, já que o intuito do autor era justamente controlá-lo, e não canalizá-lo ou propor um diálogo. Há certa impessoalidade na sua proposta, como se não levando em consideração por completo a expressão individual dos habitantes.
Por outro lado, apesar do que possa parecer por meio desse exemplo, a faceta racionalizante da malha em si, na arquitetura, não é denúncia direta da tradição clássica. Em Le Corbusier, já no século 20, sua utilização nos pilotis se tornaria sinônimo de uma racionalidade agora diretamente vinculada ao ideal modernizante. Ecochard utiliza a malha ainda como artifício de controle romano; Le Corbusier a utiliza como forma de expressão e de busca por um novo ideal de homem moderno, funcional. Assim como na arte, ao longo do século 20, essa malha é ressignificada, deixando de ser um instrumento e tornando-se símbolo do seu (espaço) tempo. Não obstante, outros grandes arquitetos a utilizam, como Mies, agora imerso no sentido poético de obras como o Pavilhão de Barcelona. Sobre esse caso, de forma similar ao fim do sequencialismo que Krauss aponta no uso do grid na arte, Guilherme Wisnik aponta que a obra é “um conjunto de volumes autônomos em um espaço amorfo, sem fim nem começo claros, que destrói a noção de uma narrativa espacial em sequência" (3).
Os avanços na arte e na arquitetura, quando se tange o grid, são altamente comparáveis. Portanto, se quisermos também fazer um paralelo mais correto entre desenhos urbanos clássicos e os que representam o pensamento do século 20, até mesmo pelo contexto do exemplo citado de Ecochard (a atuação francesa no norte africano durante o século 20), tem-se o exemplo da Quinta da Malagueira, pelo mestre Siza. Nesse caso, a individualidade do lar é tanto “imersa no” quanto “parte do” grid modernista. Como na arquitetura de Le Corbusier e de Mies, a malha deixa de ser mero instrumento e torna-se um agente significante.
É interessante trazer aqui a obra de Siza, uma vez que ela demonstra duas questões primordiais para a noção de grid em arquitetura moderna que a diferenciam da puramente clássica e da artística que é analisada inicialmente por Krauss. A habitabilidade — experiência corpográfica — e a funcionalidade tornam-se preocupações essenciais, e é por meio delas que a ideia de malha moderna será tanto desenvolvida quanto desconstruída com o passar do século 20. É importante citar, em outro paralelo arte-arquitetura, que apesar desses quesitos serem vitais para o conceito da malha arquitetônica neste momento, nada impede de que eles sejam trabalhados na arte também. Em seu texto, Rosalind Krauss traz outro grande exemplo dessa questão: a obra de Louise Nevelson. O seu trabalho aborda diversos pontos interessantes, sobretudo a habitabilidade e a irregularidade/organicidade em rede. Mesmo subvertendo alguns conceitos tradicionais da forma, elementos compositivos mostram a possibilidade expressiva dentro do grid, ou como Peter Eisenman descreveria, “entre” ele. Esses elementos por hora habitam ou compõem a estrutura, por hora são contidos por ela. Trata-se de pontos com significados sugeridos em si mesmos.
Assim como na Quinta de Siza, em Nevelson há personalidade conferida ativamente aos elementos compositivos da obra, aos lares, e não há a rigidez intransponível da rede como mero instrumento. Nesse caso, cada elemento é uno, mas parte do todo; bem como casas em um bairro ou pessoas em uma comunidade. A análise desses exemplos, portanto, aponta para nada menos do que a formulação de uma linguagem própria do grid no século 20. Trata-se dele por si mesmo e não somente como um elemento de organização espacial. Obviamente, no pragmatismo da arquitetura, há uma contribuição inerente dessa estrutura para o entendimento espacial, mas já não há mais a busca pelo controle de um terreno. Há, na verdade, uma busca pela construção de um território comum por meio do diálogo entre construído e desconstruído, como se vê na Quinta da Malagueira. E, convenhamos, poucos o fazem como Siza.
É claro que, ao mínimo por razões cronológicas, em Nevelson, já se notam questionamentos acerca até mesmo da malha vista em Siza. Trata-se já de um momento mais avançado do processo típico do século 20: levar um conceito ao extremo para depois negá-lo. Nesse caso, Nevelson já tende à negação. Afinal, o extremo da malha como estrutura rígida na arquitetura talvez já tivesse sido atingido, em 1966, com o Cemitério de San Cataldo, de Aldo Rossi. Ele é a exploração tridimensional direta do lado rígido e objetificante da rede, o próprio maquinário de guerra utilizado como narrativa arquitetônica para um local vinculado justamente à morte, e não só como artifício técnico como no pensamento clássico. É a potencialização do cânone ao extremo da forma. Na Itália, outras obras também, como a Casa del Fascio de Terragni, usam propositadamente a rigidez do grid e seu caráter de contenção como narrativa sociopolítica. Tupitsyn afirma, sobre o seu contexto, que “o casamento de formalismo e política tinha assombrado a história da arte russa desde a Revolução, quando artistas de vanguarda propuseram o uso de formas não objetivas para servir a causas políticas e disseminar mensagens políticas”. No cenário italiano, onde havia tão rica cultura artística (que, por sinal, era uma das bases do nacionalismo de Mussolini), era de se imaginar que arte e arquitetura tomariam também tal cunho politizado ao longo do conturbado século 20.
Desse estágio de extrema reticularização, evidentemente, o único caminho possível para a artista é o contrário, a dissolução. Daí, já não é avanço pensar em uma Timgad moderna, mas sim em termos de negação da rede estática. Urge lembrar que o movimento das artes é sempre pendular. Nas artes plásticas, em poucos anos a estrutura do De Stijl passou para as Constelações de Picasso até, em meados do século, atingir a arte abstrata de Pollock e, de certa forma, o fim do grid como organização visual primordial. Mesmo assim, é óbvia a ressalva a ser levantada que tal processo não foi linear, e não há de ser: ainda hoje há arte que utiliza, questiona ou critica a rede de forma ativa. E se na arte tal caminho pendular de dissolução não foi linear, na arquitetura muito menos deveria ser.
A desconstrução do grid na arquitetura, portanto, foi também um processo irregular. Enquanto o seu viés de busca por significado a partir da rigidez, das fases iniciais do modernismo e levado ao extremo em Rossi, foi logo questionado, ainda se mantém a discussão de quem foi responsável pela ruptura de facto no campo da arquitetura com a noção estruturante de grid. Tenho relutância em individualizar e linearizar tal fenômeno que independe de um criador e de um executor (muito menos de uma ordem cronológica direta), mas por motivos de ter um texto minimamente conciso, que as honras caiam sobre os ombros de Peter Eisenman. Não se pode, porém, deixar de citar outros avanços importantes que contribuíram para o caminho trilhado.
Pelas mesmas limitações bidimensionais que instigaram a representação vanguardista russa, é importante citar para início de questão Adolf Loos, que já foi mencionado em um paralelo com os Architektons. Pois ele possuía o mesmo descontentamento que muitos russos com a forma de representação tradicional de arte e arquitetura, baseada na malha cartesiana para propor projetos por desenhos bidimensionais. Aqui, a prancheta de projeto pode ser vista em um paralelo claro com as limitações expressivas da tela. “Eu não desenho planos, fachadas ou cortes”; se tornou famosa a citação de Loos, que passou a defender uma construção em volumes, o Raumplan. Nesse sentido, Loos pode ser considerado um ponto pivotante para o processo de questionamento volumétrico da malha que culminaria com Rossi, mas também para a sua resposta em Eisenman. O pensamento de Loos tende a uma racionalização espacial e à busca pelo funcionalismo modernista, que seria extremado na arquitetura italiana do Cemitério em Modena. Por outro lado, o desenvolvimento do Raumplan, bem como dos Architectkons, se dava a partir de um eixo de desenvolvimento, seja ele o bloco maior para Malevitch ou, como na Villa Müller, a escada para Loos.
É ao atacar esses eixos de desenvolvimento que Eisenman é capaz de dissolver os conceitos gerais do grid moderno. A relação entre os volumes da sua obra e a formulação conceitual do grid que eles compõem/ao qual eles são contidos passa a inviabilizar a habitabilidade e funcionalidade que eram marcas, por exemplo, da Quinta da Malagueira. Aqui, abandona-se o conceito de Krauss da malha como uma janela que “nos ajuda a ver, a focar”; trata-se o grid como organização mental para o autor, e não necessariamente para o observador, em uma tentativa sintática de conciliar linguagem e a forma arquitetônica. Esse anseio já se distancia do grid moderno e sua ideia globalizante vista também no contexto artístico por Tupitsyn. As suas perspectivas e desenhos técnicos mostram a forma complexa pela qual o autor pensa o espaço, sem uma obrigação inviolável com a funcionalidade idealizada no início do século. É por isso que se credita a Richard Pommer, em artigo de 1976 na Artforum, a afirmação de que a sua Casa VI não poderia ser entendida por completo “pelo olhar, por andar ao seu redor, ou até mesmo… por morar nela” (4). O grid aqui já possui um significado completamente avesso ao proposto por Le Corbusier, por exemplo, em que sua função deixa de ser um elemento moderno e globalizante para tornar-se uma questão sintática em si mesma, capaz de decompor noções prévias sobre o volume arquitetônico.
É importante citar também que, alguns anos antes da Casa VI, outra rede tornou-se um marco no campo da arquitetura. É a obra do educador e arquiteto John Hejduk, que projetou as suas Casas Diamante A, B e o Museu Diamante C. Nesta análise, o que deve ser levado em consideração é a dicotomia da aplicação do grid: ao mesmo tempo que aparenta ser um organizador espacial pela disposição de pilares, ele causa uma confusão compreensiva de início nos desenhos técnicos, como se não tivesse atingido o seu propósito inicial — suposição que não poderia se distanciar mais da verdade. O caso é que Hejduk leva às obras habitabilidade e subjetividade ímpares, como se as partes compositivas se movessem por entre a malha, por vezes a compondo livremente e por vezes sendo contidas por ela. De certa forma, é um questionamento espacial similar à dualidade apresentada por Krauss na obra de Nevelson. Trata-se de um rico exemplo em que, novamente, o grid transita para a função de organizador mental para o autor, e não uma malha rígida e intransponível fisicamente. Afinal, há diversos elementos compositivos que ocupam espaços não demarcados pela malha. Não há compromissos que não possam ser quebrados. O caminho trilhado por Hejduk eleva o conceito organizacional da malha na arquitetura a um nível que, mesmo compreensível, até mesmo a sua construção se torna extremamente difícil pela expressividade do projeto. O grid não é mais a busca pelo global, se não um meio de expressão individual comum entre os elementos compositivos. A justaposição de elementos e a exploração das dualidades da malha nessas obras propõem a busca pelo extremo subjetivo dessa estrutura em oposição ao extremo e funcionalista objetivo de Rossi.
Para estudar Hejduk e Eisenmann, convém, portanto, a análise mais recente de Nicole Sylvia como desenvolvimento ao entendimento de Krauss no início do século 20. Segundo a autora, o grid:
“Leva uma estranha vida dupla: invariavelmente abstrata e resolutamente real, tanto implacavelmente rígida quanto obstinadamente aberta, ambas profundamente associadas a ideologias particulares e estranhamente a-históricas, tanto um poderoso dispositivo de controle quanto uma infraestrutura libertadora para possibilidades. É rígido e inflexível, fixo e mesquinho; é um gerador de diversidade e vitalidade, uma plataforma para apoiar o florescimento de novas formas e novos modos de vida” (5).
Aplicando essa análise extremamente ambígua em Eisenman, é com obras como a Casa XI, ou o projeto da praça de Cannaregio, que se atinge essa ampliação do significado modernizante inicialmente proposto por Krauss e Tupitsyn. Nessa obra, a constante busca do autor por uma linguagem puramente arquitetônica gera um espaço intencionalmente disfuncional. Trata-se de uma poética cujo interesse vai além da habitabilidade e que permeia o objeto arquitetônico desconectado dos funcionalismos modernos. E se em Loos havia um eixo definido pelo qual a obra se estruturava, em Eisenman ele se auto estrutura e auto circunda, o que contribui para a criação dessa linguagem arquitetônica independente — mesmo que também contribua para a dificuldade de leitura e para a verdadeira inabitabilidade da casa, um dos pilares da rede como vista em Siza. Essa estrutura aqui é o instrumento pelo qual se confunde, pelo qual se subtrai a compreensão do observador, para que se leia algo inteiramente novo (uma arquitetura sintática, sem influência de outras línguas). Construir uma malha para expressar por ela mesma, sem artifícios ou segundas intenções outras a uma linguagem arquitetônica pura. A subjetividade vista alguns anos antes em Hejduk se extrema, tendo a tridimensionalidade do grid como agente principal. Em Cannaregio, os significados criados por trás da malha ao longo do século 20 são rompidos, e cria-se nessa própria atitude uma significação própria, uma sintática própria.
Desse modo, pode-se afirmar que Eisenman tende à dissolução do grid arquitetônico assim como Pollock e outros o fizeram na arte. Mesmo assim, é inegável que o grid se mantenha como um elemento visual reconhecível, ainda que agora despojado da obrigação de seguir muitos conceitos que foram atrelados a si no início do século 20 ou aos seus sentidos originais de estruturação clássica.
Por isso, chega a questão: se os extremos objetivo e subjetivo do grid parecem ter sido atingidos, por que continuar pensando esse elemento? Da mesma forma que a arte não morreu após Pollock e o ataque à malha racional, esse não é o caso aqui. Entender o grid e suas diversas interpretações permite trabalhar com ele para qualificar diversos projetos, até mesmo os contemporâneos. Sylvia aponta em seu estudo a análise de Rem Koolhaas sobre a malha de Manhattan em Delirious New York e o Monumento Contínuo do Superstudio como exemplos dessa continuidade de pensamento sobre a malha. No One North Masterplan, do escritório Zaha Hadid Architects, um olhar rápido pode parecer mostrar que o grid utilizado foi completamente subvertido, quando na realidade a forma se adapta à linguagem e do escritório e mantém o seu caráter organizacional e global como era visto no modernismo. Ainda que perfeitamente Hadid, por falta de outro adjetivo que explique melhor o conceito projetual, a rede é interpretada ainda como elemento inteligível, que garante a funcionalidade do projeto. Não há, por outro lado, obrigações com a rigidez subentendida da malha típica, somente utilizando o que se julgou útil dessa estrutura para a criação de sentidos no projeto.
Com a industrialização, a repetição da malha também se tornou ponto de interesse para outros arquitetos. João Filgueiras Lima, o eterno Lelé, mostrou com maestria o uso da repetição estrutural e o uso do módulo como forma de se criar um palco para a expressão humana. A aplicação da malha como instrumento de amplificar o potencial de um espaço com os mínimos meios, e não de controlá-lo e sobrepô-lo; o grupo repetido como impulsionante para a individualidade de quem ocupa o espaço. E hoje, com a ampliação do estudo de arquiteturas modulares, cada vez mais esse discurso se torna recorrente, carregado intrinsecamente dos conceitos da malha aqui estudados.
Outro exemplo interessante que mostra a constante evolução do grid na atualidade é a obra Pole Dance do escritório SO-IL. Nesse caso, uma rede é sustentada por uma organização de postes, formando assim um grid. Como esses postes não são rígidos, as questões da fluidez e da habitabilidade são propostas com maestria, uma vez que os pontos que compõem a malha não são estáticos. Em um só grid, há a possibilidade de infinitos outros de acordo com a mudança de posição dos seus pontos, que vão sendo construídos e desconstruídos com a ação das pessoas que observam e participam ativamente da obra. Trata-se de uma dança literal da estrutura. E mais interessante ainda, essa flexibilização passa diretamente pelo indivíduo, e a rede é agora interpretada definitivamente como uma forma de expressão e não como uma forma de estriar e restringir os espaços como fora feito por séculos.
Em suma, é fato que o grid se tornou um dos grandes símbolos da arquitetura do último século. Tanto na sua forma mais tradicional e racionalizante, mesmo que questionada, quanto nas suas aplicações mais orgânicas, a rede se manteve ao ponto que, de forma quase subentendida, está presente na maioria dos espaços construídos de hoje. Em muitas escolas, o sistema de pilar e viga e a criação de uma malha estrutural corbusiana regular são os primeiros passos tanto em arquitetura quanto em urbanismo, em linhas dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna — Ciams. Ao abrir o AutoCad, observe qual a estrutura que compõe o fundo — e mais, que o confere seu sentido a não ser um eterno vazio preto. Mesmo com as desconstruções, essa estrutura ainda possui diversas aplicações subentendidas. Urge compreendê-la por inteiro e, para tal, importa abordá-la não somente como ferramenta clássica ou como elemento atrelado do modernismo. Deve-se ter a leitura do grid como elemento composto por ampla bagagem histórico-expressiva e a partir da sua possibilidade de aplicação contemporânea, independentemente de quais interpretações e dualidades vão ser trabalhadas no projeto.
notas
1
KRAUSS, Rosalind. Grids. In October. Cambridge, MIT Press, 1976.
2
TUPITSYN, Margarita. The Grid as a Checkpoint of Modernity. Tate Papers, Londres, 2009.
3
WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro. São Paulo, Ubu, 2018, p. 25.
4
POMMER, Richard. The New Architectural Supremacists. Artforum, Nova York, out. 1976.
5
SYLVIA, Nicole. The Grid. The Site Magazine, Toronto, 2020.
sobre o autor
André Caetano é aluno bolsista da PUC Rio, primeiro lugar no vestibular de 2018 para o curso de Arquitetura e Urbanismo, e possui experiência nacional e internacional de escrita em arquitetura, com textos publicados nas revistas Rethinking the Future, Unpopular, Revista Prumo e no Portal Vitruvius.