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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo apresenta a arquitetura do Hospital Saint Elizabeths, um dos maiores edifícios manicomiais norte-americanos a empregar o Plano Kirkbride, modelo difundido no século 19, este que ficou marcado como o século dos manicômios.

english
This article presents the architecture of Saint Elizabeths Hospital, one of the largest North American asylum buildings to employ the Kirkbride Plan, an model widespread in the 19th century, which was marked as the century of asylums.

español
Este artículo presenta la arquitectura del Hospital Saint Elizabeths, uno de los edificios de asilo más grandes de América del Norte que empleó el Plan Kirkbride, un modelo muy extendido en el siglo 19, que fue marcado como el siglo de los asilos.


how to quote

VIECELI, Ana Paula. O Plano Kirkbride e as instituições totais. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 270.05, Vitruvius, nov. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.270/8650>.

O século dos manicômios

A relação que as sociedades humanas tem com a loucura sempre foi uma relação com a diferença plena e, as diversas épocas históricas mostram como cada sociedade, conforme sua política, cultura, valores morais, necessidades e grandes medos, lidou com ela. Dentro de uma larga trajetória histórica, pode-se constatar que a loucura já tomou diversas formas na maneira como foi compreendida pela humanidade. No entanto, com a chegada da modernidade, a loucura se torna objeto exclusivo da psiquiatria, sob o estigma da doença mental. Assim também, a trajetória histórica dos lugares da loucura — entendidos como espaços construídos, dedicados ao louco, bem como espaços sociais nos quais eles se inscrevem — tem a modernidade como o grande advento onde as várias possibilidades espaciais e sociais para o modo de existência da loucura se restringem a um único e exclusivo lugar: o manicômio (1).

O lugar da loucura a partir da modernidade se inclui entre os diversos novos espaços sociais modernos — escola, fábrica, hospital, prisão —, pacificados e normatizados, onde o principal objetivo arquitetônico é, através da disposição espacial, domar os fluxos e garantir a completa subserviência e docilidade dos corpos através da completa vigilância e controle (2). Com o advento da modernidade o louco passa a trilhar seu destino de entrar para o imaginário social como sendo natural a este território. Desta forma, o processo de internação manicomial — que nasce contemporânea ao nascimento do próprio urbanismo — constituiu-se como um modelo oportuno de eliminar a loucura da paisagem das cidades, considerada heterogênea e nociva à ordem desejada.

Arquitetonicamente, as estruturas funcionais do manicômio buscam um resultado espacial que atinja uma eficiência pragmática asséptica, onde o controle e a vigilância são fatores fundamentais nas decisões projetuais. O próprio espaço foi proposto como uma terapêutica, na qual se esperava que o louco, considerado desprovido de razão e ordem mental, seria reestruturado e recomposto através da ordenação e da disciplina do espaço.

O nascimento da psiquiatria moderna, bem como do manicômio, tem uma figura chave: Phillipe Pinel, responsável pela libertação dos loucos das correntes do internamento do século 17 na França, momento ligeiramente anterior à modernidade, no qual o louco encontrava-se recluso indiscriminadamente em meio a toda sorte de excluídos sociais, sem qualquer cuidado ou tratamento. Pinel realizou um trabalho nos hospitais gerais La Salpêtriêre e Bicêtre, onde executou uma triagem para descobrir e separar o louco das outras categorias que ali se encontravam. Tirar as correntes dos alienados presos em celas significou abrir-lhes o domínio de uma liberdade e uma verificação num campo asilar puro, onde a objetividade médica, inexistente até então, poderia surgir. Para Pinel, o manicômio deveria funcionar como grande continuidade da moral social, onde imperariam os valores da família e do trabalho.

O tratamento moral, difundido por Pinel, obteve sucesso no século 19, quando foram implantados hospitais psiquiátricos em todo o mundo ocidental e, por isso, o século 19 ficou conhecido como o século dos manicômios.

Este artigo apresenta a arquitetura do Hospital Saint Elizabeths, um dos maiores edifícios manicomiais norte-americanos a empregar o Plano Kirkbride, modelo arquitetônico manicomial difundido na América do Norte no século 19. O objetivo desse artigo é estabelecer um paralelo entre a espacialidade do modelo Kirkbride e a teoria sociológica das instituições totais escrita pelo sociólogo Erving Goffman a partir de uma pesquisa no interior deste mesmo hospital, que resultou no livro Manicômios, prisões e conventos (3). Esta teoria, posteriormente, em meados do século 20, veio a converter-se em uma obra chave para as reformas psiquiátricas em todo o mundo. O artigo procede por estudo de caso com revisão documental e bibliográfica. À luz de autores como Michel Foucault (4), Josep Maria Montaner e Zaida Muxi (5), considera-se que todo poder se exerce arquitetonicamente e, assim, pretende-se demonstrar como a arquitetura manicomial se tornou um dos maiores exemplos da efetuação do poder através do espaço construído na modernidade.

Na América do Norte: o Plano Kirkbride

O século 19, nos Estados Unidos, também foi testemunha de mudanças consideráveis no tratamento de doentes mentais sob tutela do Estado e, consequentemente, de um crescimento significativo da construção de manicômios. Os novos métodos terapêuticos da Europa e o quadro político progressista da época fomentaram a criação de muitos manicômios públicos em todo o país, que vinham a substituir métodos mais rudimentares de lidar com os loucos, como os confinamentos em prisões ou asilos onde eram, muitas vezes, abusados e, suas necessidades especiais, raramente cumpridas.

Thomas Story Kirkbride (1809–1883) foi um médico defensor influente de um sistema de asilo com base nos princípios do tratamento moral e determinismo ambiental. Em seu tratado sobre projetos asilares (6), Kirkbride promoveu um conjunto de princípios detalhados que influenciaram a construção e operação de muitos asilos estadunidenses construídos durante esse período. Entendidos por Kirkbride como participantes ativos na terapia, a arquitetura do asilo e o seu entorno eram um componente central no conceito de tratamento da época, e o trabalho que ele desenvolveu deu origem ao que ficou conhecido como Plano Kirkbride.

Devido à grande demanda construtiva que a nova política asilar gerou no território dos Estado Unidos, o Plano Kirkbride foi difundido com sucesso, e serviu de base para a construção de edifícios com fins asilares, na intenção da aplicação do tratamento moral em todo o território estadunidense. O asilo foi concebido como um lugar destinado a curar transtornos mentais, melhorar a vida dos pacientes e, principalmente, a qualidade da sociedade em geral. O novo lugar do louco tinha a função de ser o estruturador de seus comportamentos, servia como reclusão do que se acreditava serem os focos da doença mental, além de concretizar-se como um instrumento ideal, onde se pudessem aplicar as terapias médicas europeias (7).

Kirkbride considerava que o espaço arquitetônico exercia um efeito curativo e, portanto, as habitações deveriam ser amplas, iluminadas, bem ventiladas e decoradas com bom gosto. A beleza, a ordem, o equilíbrio geométrico dos edifícios e o respeito para com os pacientes permitiriam que estes se recuperassem e pudessem voltar a integrar a sociedade.

Arquitetonicamente, Kirkbride concebeu um asilo como um conjunto onde se apresenta um bloco central administrativo ladeado por duas asas, que lembram a envergadura de um morcego, compostas por enfermarias diferenciadas. Este plano linear facilitou a segregação hierárquica dos internos de acordo com sexo e sintomas da doença. O ideal desse arranjo era tornar a experiência dos pacientes asilares mais confortável e produtiva, isolando-os de outros pacientes com doenças antagônicas à sua própria, e ainda permitir ar fresco, a luz natural e vista para os jardins do asilo, de todos os lados de cada ala.

Acreditava-se ser crucial colocar os pacientes em um ambiente natural, longe dos poluentes e da energia agitada dos centros urbanos. Ar fresco, luz natural abundante, área extensa, com parques e terras de cultivo, eram requisitos para a implantação dos edifício asilares.

Parques de paisagem natural reforçados por uma ordem racional arquitetônica serviriam tanto para estimular e acalmar a mente dos pacientes quanto para melhorar o aspecto geral do asilo. Havia a proposta de tornar o asilo autossuficiente, através do cultivo da terra, fornecendo alimentos prontamente disponíveis e outros produtos agrícolas a um custo mínimo para o Estado. Os pacientes seriam a mão de obra desse serviço, encorajados a ajudar e a trabalhar nas fazendas e manter os jardins, bem como participar em outras tarefas. Tal ocupação foi concebida como parte da terapêutica, no intuito de proporcionar uma sensação de propósito e responsabilidade que, acreditava-se, poderia ajudar a regular a mente e o corpo do doente mental. Os pacientes também participariam de recreações, jogos e entretenimentos que envolvessem suas mentes, tornassem a sua estadia mais agradável, e talvez ajudassem a promover e manter habilidades sociais (8).

O Hospital Saint Elizabeths

Um exemplar de manicômio cuja concepção é embasada no Plano Kirkbride e, além disso, foi um dos primeiros projetados e construídos em escala de grande porte, é o Hospital Nacional para Insanos, mais tarde chamado de Hospital Saint Elizabeths, em Washington DC. Sua construção foi inaugurada em 1855, embora o seu conjunto arquitetônico tenha sido concluído alguns anos mais tarde. Dorothea Dix, considerada líder de um movimento nacional para o tratamento ético e humanitário dos doentes mentais nos Estados Unidos, foi a responsável pela fundação deste asilo, bem como de tantos outros. O arquiteto, Thomas U. Walters — um dos responsáveis pela modernização da construção do Capitólio — utilizou o plano Kirkbride como base para o projeto do hospital psiquiátrico, embora o primeiro superintendente do hospital, doutor Charles Nichols, tenha projetado sua planta baixa e determinado outras características importantes.

O edifício, de modelo Kirkbride e de caráter fortificado neogótico, fica em uma colina com uma impressionante vista de Washington DC.

Mapas do Hospital Saint Elizabeths, Washington D.C.
Foto divulgação [The Library of Congress]

O projeto original do Hospital Nacional para Insanos consistia em um bloco administrativo central, que distribuía linearmente duas asas laterais escalonadas em um plano simétrico. O bloco central possui quatro andares, e uma torre de cinco, e suas asas anexadas decrescem em altura para edifícios de três e dois andares. Assim, o edifício era dividido basicamente em três partes: o bloco central, que abrigava as instalações administrativas e pacientes nas alas laterais; a asa oeste, que era ocupada pelas diferentes enfermarias para os pacientes do sexo masculino; e a asa leste para os pacientes do sexo feminino. Esse arranjo possibilitou a classificação e a separação dos pacientes por sexo, bem como pela gravidade da sua doença: os pacientes mais violentos ou agitados eram localizados em enfermarias mais seguras e mais distantes do bloco central. O Plano Kirkbride aplicado no Hospital Nacional para Insanos foi executado, porém, com algumas alterações, definindo um escalonamento mais acentuado das asas laterais, assim melhorando a circulação através da construção e proporcionando os maiores benefícios da luz natural e ventilação.

Hospital Nacional para Insanos, planta baixa tipo
Elaboração da autora a partir de The Library of Congress

Hospital Saint Elizabeths, cortes AA, BB e CC
Elaboração da autora a partir de The Library of Congress

O edifício central possui quatro andares e é composto por uma ala norte-sul central e duas alas em forma de “L” nas laterais leste e oeste. A parte sul da ala central compreende uma ampliação construída em 1874. O edifício central é quase simétrico sobre o eixo norte-sul, com algumas diferenças nas configurações de aposentos. A ala central do edifício é composta por um longo corredor atendendo a salas de ambos os lados. Seu acesso está localizado no extremo norte do corredor do primeiro andar, emoldurado por um par de contrafortes. Há um outro acesso para o exterior na fachada posterior. O corredor é truncado no terceiro e no quarto andar, acomodando o ginásio na metade sul da asa. O ginásio possui pé-direito duplo, abrangendo os terceiro e quarto andares. Em cada nível, os corredores centrais conectam-se às asas leste e oeste através de portais centrais de cada lado dos corredores. Cada andar das alas leste e oeste do Edifício Central é definido com um corredor que atende a salas de ambos os lados, uma sala de estar e escada no lado norte. Duas alcovas estão localizadas no centro dos lados norte e sul do corredor.

As asas leste e oeste são divididas em alas por andar e constituem-se basicamente de corredores que se comunicam com os quartos. Nas suas extremidades, a salas de banho, sanitários, serviços, salas técnicas, salas de enfermagem e sala de estar. Como em cada ala foram utilizados diferentes tipos de madeira nos pisos e em acabamentos diversos, cada ala recebeu o nome do vegetal que origina a madeira utilizada. A ala oeste inclui as enfermarias Nogueira no primeiro andar, Carvalho no segundo andar, Álamo no terceiro andar, e a enfermaria geral, no quarto andar. A ala leste tem a enfermaria Cerejeira no primeiro andar, Bordo no segundo andar, Cedro no terceiro andar e os quartos de pessoal no quarto andar.

Hospital Saint Elizabeths, fachada norte
Elaboração da autora a partir de The Library of Congress

Hospital Saint Elizabeths, ala Álamo, alcova norte, 1905
Foto divulgação [National Archives Catalog]

Hospital Saint Elizabeths, ala Nogueira, salão inferior, 1905
Foto divulgação [National Archives Catalog]

Hospital Saint Elizabeths, ala Ácer, salão principal, 1905
Foto divulgação [National Archives Catalog]

Hospital Saint Elizabeths, ala Cerejeira, corredor, 1905
Foto divulgação [National Archives Catalog]

A influência de Kirkbride garantiu a boa reputação do seu plano arquitetônico em grande parte da sua vida. Perto do final do século 19, no entanto, esse sistema perdeu importância, tornou-se obsoleto e foi abandonado. Na medida em que o tratamento moral não demonstrava eficiência, não reduzia a incidência da doença mental, apresentava superlotação e falta de apoio financeiro, as instituições de saúde mental buscaram outras formas de tratamento e outras fórmulas arquitetônicas para tal prática (9).

Em meados do século 20, os hospitais psiquiátricos públicos estadunidenses abrigavam a população mais pobre da sua sociedade e apresentavam superlotação constantes. Projetados inicialmente para seiscentas pessoas, tratavam mais de 3.600 pacientes (o Saint Elizabeths, por exemplo, chegou a ter uma população de 7 mil internos nos anos 1950) e, dessa maneira, estes hospitais voltaram a se assimilar a grandes prisões, como depósitos de loucos — exatamente o que Kirkbride queria evitar com seu plano arquitetônico. Em 1955, mais de meio milhão de americanos estavam confinados em hospitais psiquiátricos públicos, ao passo em que a psiquiatria norte americana começou a aplicar intervenções físicas violentas e invasivas como lobotomias, comas de insulina, tratamentos de eletrochoque e, eventualmente, produtos químicos comercializados como drogas psiquiátricas.

Hoje, nos Estados Unidos, o símbolo e a materialidade construtiva pertencente ao que ficou chamado como século dos manicômios deteriora. Muitos dos edifícios Kirkbride ainda existentes estão se deteriorando rapidamente devido à anos de negligência e abandono. Com o declínio do sistema asilar público — principalmente em função das novas formas de tratamento, o desenvolvimento dos direitos dos doentes, e clamor público sobre os escândalos de abuso e condições insalubres — estes edifícios notáveis caíram em desuso e sua materialidade entrou em decadência. Muitos foram demolidos, considerados caros demais para restauração ou ocupantes de terras valiosas para a especulação imobiliária. Muitos destes exemplares icônicos da arquitetura asilar ainda existem, mas, pelo seu estado atual de ruína, estão ameaçados de destruição. A condição de abandono intensifica ainda mais a sensação de assombro que paira em torno destes edifícios que trazem em si camadas e camadas temporais de sofrimento psíquico e abandono social.

O Hospital Saint Elizabeths, ícone da arquitetura manicomial, do tratamento moral difundido na América do Norte no século 19, foi adicionado ao Registro Nacional de Lugares Históricos em 26 de abril de 1979 e como Local Histórico Nacional em 14 de dezembro de 1990, e, embora se encontre atualmente desativado e em estado de abandono, há um esforço para que os seus vestígios, testemunhas da história da loucura, possam ser preservados.

Neste artigo, o Hospital Saint Elizabeths adquire maior importância entre os outros modelos kirkbrides do território dos Estados Unidos e Canadá, por ter sido, entre os anos de 1954 a 1957, peça fundamental de uma pesquisa, que acabaria por se tornar, anos mais tarde, obra chave para as reformas psiquiátricas em todo o mundo.

Erving Goffman: instituições totais, mortificação e estigma

O Hospital Saint Elizabeths foi peça fundamental de uma pesquisa que veio a resultar na obra Manicômios, Prisões e Conventos (10), do sociólogo Erving Goffman (1922–1982). O livro é o resultado de uma pesquisa de três anos (1954–1957) de estudos de comportamentos em enfermarias dos Institutos Nacionais do Centro Clínico de Saúde, dos quais, um ano foi dedicado a um trabalho de campo no Hospital Saint Elizabeths. O objetivo da pesquisa de Goffman foi conhecer e perceber o mundo subjetivo dos internados naquelas que o autor chamou de “instituições totais”. Para tanto foi necessário um olhar mais próximo que exigia de Goffman estar entre os internos, vivenciar e perceber a partir do lado de dentro dos muros, tornando-se parte da realidade vivida no interior do espaço da instituição. É a partir dessa vivência que ele extrai suas análises e os principais conceitos da sua influente obra.

Segundo Goffman, uma instituição total, embora possa ter fins como moradia e trabalho, atua nos indivíduos sob condições diferentes daquelas de moradia e trabalho que a sociedade incorpora, funcionando como um mundo à parte, contendo regras próprias e independentes do mundo além dos muros. Por mais que a vida se desenvolva em grupo, a convivência entre os indivíduos muito longe está de corresponder a uma família.

“A instituição total é um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal. [...] Em nossa sociedade, são estufas para mudar pessoas; cada um é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao ‘eu’” (11).

A chegada ao mundo da internação caracteriza-se inicialmente por um rompimento físico do indivíduo com família e sociedade. Este afastamento do ambiente civil impossibilita ao indivíduo o contato com uma série de experiências que confirmam a ele uma concepção de si próprio. As instituições totais padronizam um processo que o autor chama de “mortificação do sujeito”, a qual é responsável pela perda de identidade, da visão que o internado tem de si e das outras pessoas à sua volta. “A barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo externo assinala a primeira mutilação do ‘eu’” (12). As justificações para a mortificação do “eu”, são, segundo Goffman,

“Simples racionalizações, criadas por esforços para controlar a vida diária de grande número de pessoas em espaço restrito e com pouco gasto de recursos. Além disso, as mutilações do eu ocorrem [...] mesmo quando o internado está cooperando e a direção tem interesses ideais pelo seu bem-estar” (13).

Segundo Goffman, a vida do recém-internado tem uma rotina de humilhações frequentes. Para o autor, a dignidade se perde completamente quando o indivíduo se torna parte do fluxo do programa de atividades, às quais ele é obrigado a obedecer. Numa instituição total, os menores segmentos de atividades de uma pessoa estão sujeitos a regulamentos e julgamentos e a vida é constantemente penetrada e colocada à mercê de sansões. Este controle social torna impossível ao internado desenvolver qualquer autonomia, pois ele perde o poder de decisão pessoal e, logo, sua liberdade de ação.

As instituições totais exploram um sistema de privilégios em troca de obediência, que, segundo o autor, possibilitam a construção de um mundo em torno de atividades secundárias que nada têm a ver com qualquer tratamento. Para o não cumprimento desse sistema existem consequências que se estabelecem dentro de um outro sistema, o de castigos. Neste se enquadram aumento de pena, violência física, humilhação. Ambos os sistemas se ligam a um sistema de trabalho interno que serve simplesmente para a manutenção da instituição. Sistema este no qual a moeda é muitas vezes o próprio espaço. Castigo ou privilégios podem ser efetuados através de posicionamento e localização. Melhores lugares são destinados aos obedientes, enquanto que os piores lugares se destinam a quem não se adapta às regras. Portanto, na instituição total, o lugar adquire valor de moeda e se torna um elemento fundamental no jogo próprio do internamento.

Goffman aborda questões fundamentalmente espaciais em sua obra. Segundo ele, há, é claro, o espaço de vigilância — área destinada ao paciente onde este se encontra sujeito à autoridade e às restrições. O hospital psiquiátrico é entendido, a partir desses locais, como uma organização formal instrumental com limites físicos, barreiras, que são configurados principalmente pelas paredes, ou por organizações muradas para a completa submissão dos indivíduos nas atividades da organização. Toda organização inclui disciplina de atividades, de rotinas e de comportamentos.

Porém, segundo Goffman, existem também os espaços fora do alcance da vigilância, que se constituem de qualquer espaço localizado fora do campo de observação da equipe. Estes são os espaços não regularizados, meios temporários em que se evita a vigilância, espaços físicos limitados designados por “locais livres”. Goffman os apresenta como a face oculta das relações entre internos e dirigentes. A casa de guarda, a cantina e o refeitório são exemplos destes chamados “locais livres”, ambientes empregados para as atividades proibidas, preenchidos por um relaxamento, em uma conquista de tempo livre do controle rígido. É nesse espaço que surgem marcações territoriais ou territórios de grupos entre os próprios internos. Isso ocorre, segundo Goffman, quando um grupo de pacientes atribui a um local livre um direito de manter afastados dali todos os demais pacientes.

Há, também, em meio a todos esses territórios que se estabelecem dentro de uma instituição total, os territórios pessoais, que se estendem numa aproximação entre o lar e o refúgio. O quarto de dormir é o tipo básico de território pessoal. O cobertor é um espaço mínimo que se transforma em território pessoal. Um território pessoal pode ser criado dentro de um local livre ou de um território de grupo e pode funcionar também como esconderijo pessoal ou esconderijo de objetos.

Segundo Goffman, ao ser considerado louco, cada sujeito ingressa numa certa carreira singular: a carreira moral do doente mental. Para o autor carreira seria sinônimo de um posicionamento oficial, um estilo de vida que acarretaria em uma evolução (ou involução) de autoimagem e segurança do indivíduo. Goffman explica que a categoria de doente mental é um estigma, pois, a partir do momento em que se está classificado nela, todo o destino social se altera para sempre. O indivíduo que passa pelo processo de hospitalização é apanhado pela “pesada máquina de serviços de hospitais para doentes mentais” (14). Uma vez iniciado nesse caminho, o status uniforme de paciente mental assegura um destino comum a um conjunto de pessoas, que se tornam cada vez mais distantes e não pertencentes ao mundo exterior. Independentemente do diagnóstico do internado, o fato de estar preso a um manicômio é que o define como louco.

“A loucura ou o ‘comportamento doentio’ atribuído ao doente mental são, em grande parte, resultantes da distância social entre quem lhes atribuiu isso e a situação em que o paciente está colocado, e não são, fundamentalmente, um produto de doença mental” (15).

Goffman concluiu que a hospitalização psiquiátrica não se ajusta ao modelo de serviço médico, e que a figura do psiquiatra tem, no manicômio, um papel constantemente discutível pela abordagem menos científica do que baseado na moral e no comportamento.

“Em nossa sociedade, não há hospitais psiquiátricos só porque supervisores, psiquiatras e auxiliares desejam empregos; encontramos hospitais psiquiátricos, porque existe um mercado para eles. Se hoje em determinada região, fossem eliminados todos os hospitais psiquiátricos, amanhã os parentes, a polícia e os juízes pediriam a criação de outros hospitais; os verdadeiros clientes do hospital psiquiátrico exigiriam uma instituição para atender às suas necessidades. [...] Os doentes mentais podem ser esmagados pelo peso de um ideal de serviço que torna a vida mais fácil para todos nós” (16).

Considerações finais: manicômio, espelho da sociedade

Ao ser publicado, Manicômios, prisões e conventos torna-se parte de todo um arcabouço teórico que emerge a partir do período pós-guerra, e dá sustentação, em várias partes do mundo, a movimentos na direção de uma abertura no cenário estático e segregador da doença mental. Surgem então novas experiências socioterápicas, como a Comunidade Terapêutica inglesa, a Psicoterapia Institucional e a Psiquiatria de Setor francesas, a Psiquiatria Preventiva norte-americana, culminando com a experiência da antipsiquiatria italiana. Já, a partir dos anos 1970, no mundo todo, a psiquiatria não visa simplesmente à terapêutica e à prevenção das doenças mentais, mas constrói um novo objeto: a saúde mental.

De modo geral, nas novas experiências em saúde mental, passa-se a pensar a transformação do modelo manicomial de assistência — centrado no hospital psiquiátrico — em um modelo de atenção comunitário, praticado em liberdade, que relaciona o cuidado em saúde com todas os equipamentos e esferas que compõem a vida em comunidade.

Problematizando as formas de tratamento da loucura, esses movimentos vieram, também, problematizar o espaço no qual a loucura vinha sendo tratada. Com os movimentos antimanicomiais, em muitos países, estabeleceram-se reformas nas políticas públicas de saúde mental e, a partir disso, surgiram novas possibilidades para os lugares da loucura, sejam eles físicos e/ou existenciais.

Da mesma maneira que Goffman realizou um movimento na direção do interior da instituição total manicomial para realizar sua pesquisa, em sua conclusão, o autor leva para fora do manicômio um questionamento, que reflete como um espelho, direcionado à sociedade em que vivemos e da qual fazemos parte. Portanto, seguindo a trilha de Goffman, nos questionamos se manicomial seria a arquitetura — suas estruturas físicas, seus elementos construtivos, sua forma, seus modelos — ou manicomial seria uma sociedade que demanda espaço para o isolamento daqueles que considera indesejáveis?

Através da leitura de Foucault sobre o espaço (17), podemos concluir que ele é um elemento pertencente à sociedade e que um não existe sem o outro. Dessa maneira, nem a arquitetura pode ser encarada como um produto isolado nem relações sociais podem ser viabilizadas sem o espaço edificado. Existe, sim, uma reciprocidade nos papéis desempenhados por um e ou por outro, e não um direto determinismo. Para Foucault, o espaço não é um mero produto ou um cenário das práticas sociais, ele é, sim, parte integrante e fundamental dessas práticas. “Seria preciso fazer uma ‘história dos espaços’ — que seria ao mesmo tempo uma ‘história dos poderes’” (18).

Da mesma forma, Josep Maria Montaner e Zaida Muxí, no livro Arquitectura y política (19), questionam se as estruturas espaciais as quais já serviram socialmente como arquiteturas símbolos da exclusão, da repressão, arquiteturas de poderes fascistas etc., podem, abandonados seus usos originais, serem transformadas em algo novo, com novos usos e novos significados. Considerando a arquitetura como a expressão dos comportamentos de cada sociedade humana e como a portadora das pautas das autoridades para ordenar e proibir, Montaner e Muxí, na esteira do pensamento de Michel Foucault (20), trazem a ideia de que o grande papel histórico da arquitetura é servir como um instrumento de poder, seja para expressá-lo ou para exercê-lo.

“Para o correto exercício da arquitetura, esta consciência do poder do espaço como elemento de domínio e controle deve servir para repensar os significados e as relações que se propõem sem que se renuncie como técnicos a pensar espaços onde possam dar-se os conflitos e onde sejam possíveis outras relações” (21).

Como observou Goffman, uma das características das instituições totais é o seu caráter de fechamento ao mundo social, impondo barreiras, sociais, mas também físicas (muros altos, portas fechadas), que impedem a relação do interno com o mundo exterior. Arquitetonicamente, as estruturas funcionais manicomiais buscavam um resultado espacial que atinjisse uma eficiência pragmática asséptica, onde o controle e a vigilância, como vimos, foram fatores fundamentais nas decisões projetuais. O esquadrinhamento, seguindo critérios de divisão do espaço interno, como a separação por gênero, por níveis da doença e por classes sociais, era o grande responsável pelo controle e molde de um novo ser que dali deveria surgir. Portanto, o próprio espaço constituiria-se como a principal terapêutica, da qual se esperava uma reestruturação recomposição do sujeito louco — considerado desprovido de razão e ordem mental — através da ordenação e da disciplina do espaço. A cura se daria através da geometria do isolamento.

Como uma legítima instituição da sociedade disciplinar (22), o manicômio intervinha diretamente nas relações entre os indivíduos e o corpo social, exercendo sobre ambos uma disciplina capaz de moldar os pretendidos corpos dóceis. A psiquiatria, a partir do manicômio, justificou seu saber e instaurou um novo poder exercido sobre sujeitos considerados anormais por uma sociedade — moderna — que passa a perseguir um conceito de normalidade baseado no trabalho, na subserviência, na produtividade.

É certo afirmar que a forma arquitetônica transmite valores estéticos, mas com esses mesmos valores estéticos estão, inevitavelmente, consolidados valores éticos e políticos. A forma arquitetônica nunca é um objeto isolado e neutro. Ela remete a marcos culturais, compartilha critérios sociais, responde a visões de mundo, concepções de tempo e sujeito. Se “todo poder se exerce arquitetonicamente” (23), a arquitetura manicomial é um dos maiores exemplos da efetuação do poder psiquiátrico através do espaço construído, este que, antes de proporcionar saúde, constituía-se como um grande produtor de loucura.

notas

1
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo, Perspectiva, 2000; ROSEN, George. Madness in Society: Chapters in the Historical Sociology of Mental Illness. Phoenix edition. Chicago, University of Chicago Press, 1980.

2
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 39ª edição. Petrópolis, Vozes, 2011.

3
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Perspectiva, 2010.

4
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir (op. cit.).

5
MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Arquitectura y política. Ensayos para mundos alternativos. Barcelona, Gustavo Gili, 2012.

6
KIRKBRIDE, Thomas Story. On the construction, organization, and general arrangements of hospitals for the insane. Philadelphia, Lindsay & Blakiston, 1854 <https://bit.ly/3AFMYA4>.

7
YANNI, Carla. The Architecture of Madness: Insane Asylums in the United States. Minneapolis/ London, University of Minnesota Press, 2007.

8
Idem, ibidem.

9
Idem, ibidem.

10
GOFFMAN, Erving. Op. cit.

11
YANNI, Carla. Op. cit., p. 22.

12
Idem, ibidem, p. 24.

13
Idem, ibidem, p. 24.

14
Idem, ibidem, p. 112.

15
Idem, ibidem, p. 113.

16
Idem, ibidem, p. 311–312.

17
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 2011.

18
Idem, ibidem, p. 212.

19
MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Op. cit.

20
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder (op. cit.).

21
MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. Op. cit., p. 32. Tradução da autora.

22
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir (op. cit.).

23
Idem, ibidem, p. 32. Tradução da autora.

sobre a autora

Ana Paula Vieceli é arquiteta e urbanista graduada pela Unisinos (2010); mestre (2014) e doutora (2019) pelo Propar UFRGS. Autora da dissertação Lugares da loucura: arquitetura e cidade no encontro com a diferença, e da tese Arcanos urbanos: o jogo dos errantes.

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Realidade aumentada: benefícios e desafios na construção civil

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