Passados mais de dez anos da inauguração do Museu Guggenheim em Bilbao, na Espanha, os arquitetos parecem ainda não ter digerido a ousada proposta projetual do canadense Frank Owen Gehry. Para além do lugar-comum modernista forma-função, emergem discussões diferentes acerca do espaço expositivo. Dado que a crítica apresentada geralmente se comporta de forma retrógrada ao hierarquizar fatores em temas como "obra e museu" e "arte e arquitetura", este é um museu de fusão e integração, feito para suscitar novas relações entre o público, o museu e as obras.
O primeiro equívoco na análise da obra de Gehry se dá ao estabelecer-se uma distinção clara entre arte e museu. Ali, pretende-se justamente criar um jogo infinito de sobreposições e distorções. A construção interage, a partir de sua irregularidade, com a mostra e o espectador simultaneamente. Num momento de fusão das disciplinas, quando muito se fala em transdisciplinaridade e alguns teóricos trazem temas como Translinguagens, Trans-arquitetura e Transdesign, o Guggenheim é um museu que se confunde com a arte num processo de hibridização das linguagens. Não se trata de um lugar para exposições inertes, assépticas e laboratoriais. Diferente do museu-suporte (1), ele é capaz de acolher exposições e acariciá-las.
Esta abordagem é criticada pelos que encaram um museu como algo que deve tão-somente dar espaço para os objetos expostos – enquanto aquele passaria a ser suporte desconsiderável na apreciação das peças. Esquecem da inescapável presença física do espaço arquitetônico que, como toda arte viva, procura estar de acordo com seu tempo e as pertinências deste.
O erro da crítica tradicional está na adoção de pressupostos para a análise arquitetônica. Por este caminho, a visão da novidade que poderia haver torna-se limitada por cristalizações de gênero. Nenhuma construção precisa ser coerente com algum lugar-comum projetual se quiser alçar a esfera da arte, ou seja, se quiser ser manifestação sensível do Espírito (2).
Um exemplo é a obra de Richard Serra exposta no edifício tema deste texto. Num primeiro momento, uma única peça da composição – Serpente (3) – foi exibida em sala exclusiva. Mais tarde, convidaram-no para terminar o conjunto de peças que têm exposição permanente numa das grandes salas. São esculturas (se é que assim podemos chamá-las, visto que suas obras, quando enquadradas, estão mais para site specifics) que interagem com o museu até no seu processo de elaboração. Para viabilizar a construção em Bilbao, na década de 90, Gehry criou um escritório de cálculos estruturais que, a partir de um programa para projetos aeronáuticos, desenvolveu um software específico para arquitetura. Serra, por sua vez, teve suporte deste mesmo escritório de engenharia. Posteriormente, ela foi executada em aço numa fundição que mantém convênio com o artista para que suas peças possam ser produzidas.
O que fica claro disso tudo? O cálculo estrutural que viabiliza a sustentação do abrigo dá suporte à concepção da obra-intervenção ali inserida. A peça exposta no interior passa a jogar intensamente com a edificação. Assim, se o argumento de perda de qualidade nas mostras de peças mais antigas fizer muito volume em algum debate, pode-se dizer que o museu permite, às mais jovens e integradas aos seus conceitos, maior autonomia e riqueza para que situações sejam criadas tirando partido da arquitetura.
É provável que uma mostra renascentista receba menos atenção que o museu se o visitante for novo no recinto. Porém, qual o problema em preferir a experiência no tempo-espaço construído àquela de uma visualidade já incorporada ao cotidiano? A mente acomodada reluta quando o programa é subvertido em favor da experiência. E não há problema algum que a cada nova exposição novas questões surjam da relação travada, até porque cada conjunto exposto poderá sempre ser tratado como uma instalação que se relaciona com o prédio. A diferença se apresenta na explicitação do que na maioria dos outros casos está subentendido: a composição "obra-conjunto-espaço". Além disso, para aqueles que passeiam pela Europa, há inúmeros outros museus no formato estabelecido corroborando para que o Guggenheim Bilbao seja uma experiência diferenciada.
Um museu que surgiu atemorizando as possíveis mostras que estariam por vir apresenta a chance de o site specific acontecer enquanto jogo de linguagens que atravessam objetos e sentidos, confundindo principalmente arquitetura e escultura (4). Não é impraticável a arte usual neste museu. O que ocorre é a perda da linearidade expositiva.
notas
1
Ou museu-cabide.
2
Cf. HEGEL, George W. F. Fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro, Vozes, 2001.
3
http://www.spliteye.com/serra/
4
São usados aqui os termos arquitetura e escultura somente para enfatizar o sentido da frase, já que se formos levar à risca a percepção de que não há mais epistemologia, a explicação dos conceitos se torna deliciosamente vaga e tediosamente vazia.
Imagens
LOZANO, Enrique B. fotos pessoais de viagem. Bilbao, Espanha, 2005.
SERRA, Richard. Eight Torqued Ellipses (five singles and three doubles) and Snake. Disponível em <http://www.spliteye.com/serra/installation.htm>. Acesso em 04 de agosto de 2008.
sobre o autor
Carlos Henrique Bernardino de Carvalho, Arquiteto, Urbanista e Paisagista pela UNESP-Bauru (2004), com curso de extensão em Arquitetura da Cidade Contemporânea pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2006), participante da V BIA-SP na exposição de estudantes e VI BIA-SP na exposição geral de arquitetos, é arquiteto do escritório Bernardes+Jacobsen Arquitetura em SP.
Carlos Henrique Bernardino de Carvalho, São Paulo SP Brasil