Introdução
Tendo como diretriz principal o desenvolvimento de um equipamento de referência para a área cultural do Rio Grande do Norte, assim como a criação de um espaço que permitirá a representação de toda e qualquer forma de arte, nos sentimos na obrigação de buscar conceitualmente um elemento sólido, resultado da história do lugar, de suas sobreposições temporais, vontades coletivas e convivências diárias. A partir do entendimento físico do espaço existente, aliado ao conhecimento histórico de implantação do bairro e da absorção do espírito do lugar, buscamos mecanismos para propor um projeto conseqüente, resultante destas leituras e que reflete, através de sua conformação física e desejos culturais.
O entendimento urbano
O Bairro Lagoa Nova surgiu em 1960, e é resultado de uma malha urbana do tipo quadricular, subdividida em grandes quadras e com implantações feitas em centro de lote. É interessante notar a resposta natural dos moradores da área ao implantarem suas residências neste sistema de urbanização peculiarmente modernista: lotes foram desmembrados formando outros lotes longos de testada estreita e quintal; caminhos entre as quadras foram abertos, gerando novas conexões.
Entendemos essa curiosa resposta ao que foi imposto pelo modelo de urbanização, de grande valor para darmos continuidade a nossas reflexões. Podemos perceber que este fato extrapola os limites de uma resposta puramente física dada pelo povo, configurando-se também como uma resposta cultural à arbitrariedade moderna. Decidimos então tomar partido deste resultado morfológico tornando-o nosso referencial gráfico, uma vez que o consideramos um autêntico resultado das plurais vontades populares. Uma grande xilogravura popular, construída dia após dia.
Na nossa proposta, o povo potiguar é considerado o artista que modela a cidade e se manifesta em cada muro de pedra, parede caiada, árvore plantada, casa construída. Sem gente não há veracidade no espaço, movimento ou troca. O povo no espaço público é artista e espectador, mistura fantasia com realidade. Propomos então, uma arquitetura que gere continuidade aos espaços públicos, o principal elemento de nosso discurso.
O desejo
Imbuídos por este espírito, pegamos carona nas palavras do autor Raciane Santos, que valoriza, através de seus desejos, a autenticidade popular:
“Queremos a palavra viva espalhada pelo novo espaço, o cheiro de gente!”
Queremos fazer de nosso objeto arquitetônico parceiro do imaginário popular, e para isso, nosso palco não poderia ser outro se não o espaço público, materializado na forma de uma praça que une e evidencia através de seus vazios, quatro grandes edifícios que servem como panos de fundo aos anseios populares. São objetos que absorvem os vestígios do povo em forma de arte, funcionam como catalisadores físicos que respondem externamente valores do dia a dia grifados em suas paredes.
Queremos que este espaço se misture com a cidade, e ao mesmo tempo, que a cidade impregne esse espaço. Ele poderá ser encarado como continuidade das ruas e praças, onde é revelada a cultura peculiar do lugar, os eventos populares, as manifestações do folclore, as danças típicas, o artesanato livre. Que não se feche, ou se torne espaço fixo e imutável. Pelo contrário! Deve ser construído como uma xilogravura, buscando falar através de seus contrastes. Deve ser marca do seu tempo para contar e recontar histórias, na medida que se faz descobrir a cada dia.
Além disso, o espaço deverá servir de suporte para uma estratégia rumo à construção da cidadania, uma vez que poderá possibilitar a potencialização de encontros, de trocas de informações, experiências e convívio social. É a partir do reconhecimento e criação de um “lugar” pelo próprio povo, através da geração de uma referência local produtora de significados simbólicos é que são gerados palcos e platéias, a arte da vida, da língua, da cultura. É no encontro que se conta história, se forma gente, que se revela a genuína cultura do lugar.
Implantação
O terreno disponível para a implantação do que chamamos de Centro de Atividades Culturais Nordestinas, está situado no bairro de Lagoa Nova e é circunscrito por três vias, a Av. Prudente de Moraes, Av. Miguel de Castro e Av. Romualdo Galvão. Sua configuração geográfica faz da extrema esquerda do terreno, na esquina entre as Av. Prudente de Moraes e Av. Miguel de Castro, seu ponto de cota mais elevada, que cria uma diferença de nível de 5m al longo da Av. Prudente de Moraes e de 6m ao longo da Av. Miguel de Castro.
É destas condições topográficas que o projeto tira partido, se desenvolvendo, basicamente, a partir de dois níveis fundamentais: um nível natural do terreno que cria uma praça inferior onde se tem acessos diversos a atividades do conteúdo programático, e um superior que é gerado por uma grande praça elevada, que se propõe a ser uma extensão dos espaços públicos da cidade, como ruas e praças.
Além deste contexto que relaciona o terreno com sua situação topográfica, foi necessário relacionar nossa proposta de implantação com a quadra existente e sua vizinhança.
O entorno imediato ao terreno é composto por uma série de residências, e já é notória sua transformação morfológica, representada impiedosamente pela especulação imobiliária. Desta maneira, a região em um contexto geral volumétrico, pode ser descrita como um grande plano horizontal formado por edificações de até três pavimentos, com destaque para novas construções multifamiliares extremamente verticais.
Se concluirmos que, o que dá valor as atuais implantações, (resultantes da vontade popular em resposta a arbitrariedade dos planejadores da década de 60), são os espaços criados por seus lotes e volumetria, tínhamos que fazer de nossa proposta uma releitura gráfica e volumétrica destes valores. Assim, destacamos cheios e vazios ao longo da quadra, recuos e afastamentos, texturas e cores, criando um espaço dinâmico na sua diversidade, conectado por espaços públicos, gerando seu reconhecimento como unidade funcional.
Desta forma procuramos tornar o edifício menos compacto e gigantesco, apesar de sua necessidade programática e funcional. Mantivemos alturas pertinentes as suas necessidades funcionais, sem gerar um grande impacto ao pedestre, usando artifícios como, por exemplo, a praça suspensa, de maneira a aproximar a escala do edifício à escala humana. A volumetria reflete também a diversidade de funções dos espaços internos, evitando externamente empenas e repetições. O transeunte pode ter, assim, várias perspectivas diferentes e variadas de dentro do complexo.
As quatro salas de espetáculos foram dispostas de forma linear, gerando clara organização espacial e funcionalidade na interligação dos espaços.
A praça como conexão entre os conteúdos programáticos
Conforme mencionado anteriormente, fizemos da praça suspensa o nosso principal elemento do complexo cultural formado pelos equipamentos teatrais. Ela cria dinamismo uma vez que trata-se do ponto onde se concentram as atividades, ao mesmo tempo em que é partir deste mesmo ponto que as atividades são dissipadas. É nela que as pessoas se encontram, esperam espetáculos, criam arte, dançam, comercializam, vêem e se fazem ver. Faz com que o espaço urbano torne-se o autêntico espaço cênico.
A Praça Foyer (nível +101m)
Na nossa proposta o acesso público se dá em dois níveis: o nível +101m (a Praça-foyer) e o nível +109m (a Praça Suspensa), que são conectados através de rampas, escadas e elevadores. O piso da Praça suspensa (+109m), ao mesmo tempo é a extensão do livre foyer do nível +101m e a sua cobertura. Várias aberturas possibilitam a percepção da volumetria dos teatros, alem de funcionarem como clarabóias, prismas de iluminação e ventilação dos ambientes e sendo utilizados como suporte aos teatros e palcos temporários.
Os quatro teatros e o edifício que contém as atividades complementares se comunicam e se interligam no nível +101m, tornando este espaço agregador de múltiplas funções como galeria de arte, restaurante, biblioteca, lojas, lanchonetes e amplos espaços livres que dão suporte e se somam a estes. O acesso ao nível da Praça-Foyer pode ser feito pelas três avenidas que contornam o terreno proposto para a implantação do complexo.
Os acessos das áreas de serviço, docas, estacionamentos de ônibus e caminhões se dão neste nível, diretamente interligados com os espaços de apoio do teatro como oficina, depósito e serviços, estes, por sua vez, dispostos ao redor da caixa cênica otimizando as circulações e facilitando os fluxos.
A partir desta praça se tem acesso por uma série de escadas fixas, rolantes e elevadores ao estacionamento localizado no subsolo.
A Praça Suspensa (nível +109m)
O nível +109m se caracteriza por ser a grande área pública do complexo. Os edifícios do complexo cultural cercam este nível e se abrem para a cidade. Nela se mostra o edifício que contém as atividades de escola de dança e formação de atores. Na circulação do edifício são dispostos painéis verticais que funcionam como brises soleil voltados para o norte. Estes painéis funcionam também como pano de fundo ou cenário para atividades culturais que venham a ser desenvolvidas na praça; uma grande película que realiza uma conexão visual direta com a área pública.
Neste nível as coberturas de acesso ao teatro principal e o café fazem a interligação entre as volumetrias do complexo, “fechando” o promenade popular com espaços de exposição, feiras, eventos do dia a dia da cidade.
Como representação da cultura nordestina pensamos em utilizar a representação da arte popular, através da reprodução das xilografias dos cordéis de artistas de Natal, em painéis espalhados pelo foyer do teatro e em painéis externos nas paredes cegas de algumas edificações e também um grande painel de madeira montado com as fôrmas das xilografias.
O múltiplo uso dos teatros
As salas de espetáculos foram pensadas para abrigar todas as formas de manifestação artística, desde dança, cinema, música, a orquestras e óperas. Além disso, elas são passíveis de transformação no seu interior e podem ser reversíveis quando abertas para o exterior.
A disposição linear das salas de espetáculos permite a conexão entre elas através de coxias e outros ambientes de apoio, possibilitando que as facilidades, cenários e equipamentos atendam a todas as caixas cênicas, uma vez que todos os palcos estão no mesmo nível. Esta conexão estimula também a criação de diversas configurações teatrais como espaço experimental através da ocorrência de cenas simultâneas.
As salas 1 e 2, que comportam 2251 e 604 expectadores respectivamente, possuem uma conformação mais clássica e estática, onde a relação palco-platéia se dá na forma de teatro italiano. Na sala 1, a distribuição dos espectadores em platéia, camarotes e dois balcões menores se justifica pela curva de visibilidade e de difusão sonora para todos os espectadores. Estas possuem, ao longo da boca de cena, fosso para orquestra que, através de plataformas pantográficas pode ser nivelado com o palco transformando-se em proscênio. Possuem também elevador de palco. Nas duas salas podem ser desmontados os primeiros módulos da arquibancada, que são utilizados também para expandir o proscênio.
As salas 3 e 4 são completamente transformáveis possibilitando a conformação em teatro italiano, arena, elizabetano, passarela, e espaços para disposição de mesas, como café concerto, além de permitir outras diversas formações experimentais. As duas salas também podem ser agrupadas, e podem ter sua capacidade aumentada de acordo com o uso. Todas as cadeiras destes teatros são removíveis e empilháveis.
Palco e platéia podem misturar-se não só no interior dos teatros, mas extrapolam também as fronteiras físicas do espaço cênico e ocupa a praça. Desta maneira, praça torna-se palco e platéia gerando uma mistura nas conexões entre as áreas públicas e semi-públicas visando a participação e mobilidade total dos espaços na formação espacial do complexo.
Cada Teatro pode ser utilizado separadamente. Concentramos a área de compra de bilhetes voltada para a avenida principal, porém, cada teatro possui área para bilheteria e controle dos mesmos, visando possível utilização independente.
Toda a área de serviços e suporte às atividades cênicas, assim como dependências destinadas a artistas fazem a conexão de todos os teatros, podendo servir a todos em conjunto ou a cada um separadamente.
Materiais, instalações e estrutura
O sistema estrutural do complexo é praticamente de concreto armado, com utilização de algumas estruturas metálicas em certos pontos. A sua modulação parte da conformação e estrutura dos teatros, já que estes necessitam de grandes vãos livres. A partir desta definição, parte o resto da modulação atendendo aos espaços e possibilitando a utilização do subsolo como estacionamento.
A integração dos teatros em uma única edificação e a utilização de um grande pavimento de subsolo permitem a fácil integração das instalações. Os grandes chillers localizados no subsolo abastecem através de shafts as salas dos fan-coils distribuídas pelas edificações. Os dutos necessários nos teatros ficam embutidos em paredes duplas e em lajes duplas no teto.
Em todas as salas de espetáculo são utilizadas placas e revestimentos para que a volumetria da sala seja sempre irregular, possibilitando a melhor distribuição do som.
As volumetrias quebradas, os cheios e vazios, lajes e brises promovem o sombreamento e uma melhor ventilação dos espaços.
ficha técnica
Escritório
Oficina de Arquitetos
Autores
Ana Paula Polizzo, Gustavo Martins e Marco Milazzo
Estagiários
Lívia Heinerich Wulhynek, Gustavo Rosadas, Isis Bezerra de Carvalho e Carol Albuquerque Braga