Aprendemos com a etimologia que "arquitetura" designa as construções (tectonicos) que contém arché, ou seja, os vestígios da história e dos princípios que deram origem a uma comunidade. Analogamente, consideramos "arquitetônico" o olhar que, ao examinar os edifícios, captura não apenas materiais, técnicas, formas e dimensões físicas mas, sobretudo, as marcas do humano aí impressas e os modos pelos quais são colados no álbum do tempo o selo de nossos hábitos: mais do que prédios, ele vê "habitações".
Esse olhar, raro nos estudos de arquitetura, o leitor encontrará em Casa Paulista. Com rigor, Carlos Lemos pesquisa a morada "bandeirista", rural e urbana, do século XVI ao final do XIX. Tal objeto é analisado quanto à origem, evolução, uso, programa, função, forma, sistema construtivo e adequação ao ambiente, em texto claro e ricamente ilustrado. Partindo do pioneirismo das construções iniciais em que se miscigenavam a herança ibérica e a experiência arquitetônica indígena até chegar nos confortos e modernidades importadas pelo café e pelo ecletismo, o autor descreve a trajetória quase épica da casa do "mameluco paulista", obrigado "a varar sertões como se estivesse em casa" e a fundar nele sua habitação e seu país, o "país dos paulistas". Lemos evita ir além dessas fronteiras. Contudo, sendo essas fronteiras extremamente permeáveis, elas acolhem diversas tradições, nacionais e estrangeiras. Ao descrever essas tradições, ainda que sumariamente, o livro também nos introduz no quadro mais vasto da arquitetura brasileira. Mesmo porque a casa paulista serviu como raiz da arquitetura de diversas outras regiões.
O leitor terá a oportunidade de estudar detalhadamente quatro grandes matrizes tipológicas, a começar pelos primórdios, entre os séculos XVI e XVIII, onde se inicia a ocupação do território e se estrutura o protótipo da casa paulista. A seguir, aborda-se a época acuçareira, iniciada com o morgado de Mateus, em 1765, em que aquele protótipo "caipira" ou se desenvolve com relativa autonomia ou se combina com a tradição mineira, muito influente após a exaustão das catas auríferas. Em dois capítulos, um dedicado ao vale do Paraíba e outro à Bacia do Tietê, o autor estuda o início do período cafeeiro. Nesse período, meados do século XIX, o partido bandeirista pode ser percebido seja nas adaptações sofridas pela modesta casa do açúcar, seja suportando as novidades trazidas pelo ouro verde e que, de dentro para fora, alteram significativamente a residência tradicional, como ao conferir maior especificidade ao uso de cada espaço. De modo mais sucinto, segue-se o estudo da casa do litoral e a descrição da moradia "à francesa", própria do final do século XIX, à guisa de conclusão.
A taipa é o suporte dessa tradição e o verbo da cartilha construtiva mameluca. Lemos mostra como ela se flexiona entre os séculos XVI e XIX; articula-se com outras técnicas, como a estrutura autônoma de madeira; e rege as diversas frases com que se escreve a história dessa arquitetura, antes que o ecletismo a substituísse pelo tijolo. O historiador perscruta as frestas dessas paredes de taipa, sente a dureza do piso da terra batida em que ela se assenta, escuta o diálogo do barro com a madeira do telhado. Seu texto exala o calor dos fogões, compreende o segredo das alcovas e da intimidade familiar, estuda o ritmo das portas e janelas e as gradações entre o público e o privado. Acompanhando as descrições do espaço físico lemos os depoimentos de moradores, registros de objetos e explicações de seu uso, cartas, testamentos e diversos outros indícios da vida ali transcorrida. Partindo da arquitetura da taipa e da descrição dos seus ambientes, o autor encontra uma trama de ecos e vivências a repercutir nas moradias e demonstrar como a verdadeira habitação do homem não é o espaço físico mas o espaço do tempo: a história. É o próprio autor que, numa citação à p. 208, comprova o caráter arquitetônico de um olhar que inquere pela arché enquanto examina o tectonicos: "É através da descrição da sala de jantar – o maior e talvez o mais importante aposento da casa – que o leitor toma conhecimento não só da sua arquitetura mas do que ela continha de real e simbólico."
O rigor da pesquisa e a clareza com que as análises são apresentadas ao leitor não escondem a paixão envolvida na feitura da obra, fruto de anos de estudo desse arquiteto formado em 1950. Essa paixão se reflete de várias formas: no cuidado com a redação, diagramação, seleção e tratamento das ilustrações; nos depoimentos e contidos desabafos acerca das dificuldades e perspectivas do trabalho da preservação de nossa memória histórica e cultural; na tristeza com que se discorre sobre a foto de uma moradia já demolida. Entremeando o texto, o historiador não se furta a tecer considerações de ordem metodológica, como ao reportar sua discussão com Luis Saia a respeito da Casa do Padre Inácio. Nessas passagens, vemos seu apelo por uma atitude mais crítica no estudo da história e no exame do acervo de nossa arquitetura, de modo a ultrapassar a superficial descrição das obras e evitar conclusões fáceis. Com liberdade, o texto se permite a tais digressões em que aflora a paixão do autor e o sabor emerge ao lado do saber. É esse sapere que o espírito do leitor aprende a degustar.
Casa Paulista é uma lição de arquitetura. Isso não se deve apenas ao modo didático com que é descrita a trajetória da casa bandeirista. Indo além, o livro ensina a olhar a habitação e compreender o habitante, ensina como a cultura se faz arquitetura e o espaço se faz história, ensina como o passado faceia o presente e clama por reconhecimento. Daí, a sensação que nos habita quando viramos a última página: a alegria de termos lapidado a nossa tradição e nos refrescado nas águas da arquitetura brasileira. É importante este frescor, sobretudo num momento onde os modismos se sucedem e o espírito não encontra silêncio diante do novo e ruidoso ecletismo promovido pela mídia da arquitetura internacional. Nesse livro, Carlos Lemos nos devolve um chão que temos esquecido de pisar e uma parede mais apta a suportar os quadros da nossa história. A terra e a taipa com que foram feitos se tornaram mais sólidas depois de socadas pelo tempo e pelas vivências transcorridas. É essa identidade ética e compromisso histórico, a desafiar o esteticismo e fugacidade sem peso da arquitetura atual, que o leitor verá emergir como o verdadeiro sentido do abrigo bandeirista. Aprenda-se.[texto originalmente publicado no Jornal de Resenhas, Discurso Editorial / Usp / Unesp / Folha de São Paulo, 11 março de 2000, São Paulo SP, p 4. Reprodução proibida sem autorização do autor]
leia também
"Casas Vetustas", de Hugo Segawa, sobre o livro de Carlos Lemos
sobre o autor
Carlos Antônio Leite Brandão é arquiteto formado pela EA-UFMG (1981), onde atualmente é professor de história e teoria da arquitetura e diretor. Especialista em Cultura e Arte Barroca (UFOP, 1987), mestre em Filosofia (UFMG,1987) e doutor em Filosofia (UFMG, 1997). Autor de "A formação do homem moderno vista através da arquitetura" (Editora da UFMG, 1999) e "Quid tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti" (Editora da UFMG, 2000).