No momento em que a vida nas cidades brasileiras torna-se a cada dia mais problemática, é oportuna a publicação pela Editora UFRJ de Formação de Cidades no Brasil Colonial, de Paulo F. Santos, que analisa as formas portuguesas originais das disfunções urbanas do Brasil contemporâneo.
O autor foi arquiteto, historiador e professor da Universidade do Brasil (atual UFRJ), onde criou a cadeira de “Arquitetura no Brasil”, iniciando a articulação do ensino à pesquisa e à preservação da arquitetura nacional na formação dos arquitetos no Brasil. Compondo uma obra numerosa na qual se destacam também A Arquitetura Religiosa em Ouro Preto e o clássico Quatro Séculos de Arquitetura, o livro em questão foi apresentado no V Colóquio Luso-Brasileiro, realizado em Coimbra em 1968, e publicado originalmente como separata dos Anais do encontro. Desenvolvido em um momento crucial do processo de transformação das cidades brasileiras, quando os grandes centros incharam e começaram a viver a agonia que se estende até hoje, esse estudo é a contribuição de um pesquisador universitário dedicado à arquitetura do passado e do presente para o debate sobre as origens e os destinos do urbanismo no país.
O livro divide-se em duas partes. Na primeira, as distinções históricas entre a cidade regular e a cidade informal são revistas e subsidiam a análise das diferenças entre as cidades de colonização hispânica e portuguesa de modo a determinar as peculiaridades e os valores das cidades no Brasil colonial. Na segunda parte, é proposta uma classificação dessas cidades de acordo com os imperativos que orientaram a sua formação: cidades de afirmação de posse e defesa da costa e cidades do litoral; de conquista do interior; de penetração rumo às fronteiras oeste e sul; do café; da borracha; da indústria; além de outros tipos. Entretanto, apenas a formação do primeiro tipo é analisada. Ao final, Paulo F. Santos dá indicações sobre os desdobramentos necessários para um estudo mais completo do tema, evidenciando a consciência dos limites de seu trabalho e a existência de uma historiografia em formação.
Sergio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil de 1936, aponta como, diferente da formalidade que orienta as cidades de colonização espanhola, a falta de rigor, de método e de ordem é o que caracteriza as cidades portuguesas na América, fratura que reverbera até hoje nos estudos sobre o urbanismo português. Essa oposição radical é o ponto de partida de Paulo F. Santos, que se vale de modo pouco ortodoxo de documentos (desde cartas régias e mapas até relatos de viajantes – Debret e Vauthier, entre outros), de análises do Brasil (de Varnhagen e Capistrano de Abreu a Josué de Castro e Câmara Cascudo, mas também Gustavo Barroso e Pedro Calmon), de textos de teoria da arquitetura (de Vitruvio a Palladio) e de análises contemporâneas das cidades (desde estrangeiros como Saarinen, Lewis Munford e Robert Smith a Silvio de Vasconcellos e João Boltshauser) para defender que a cidade informal possui não só ordem, método e rigor específicos, mas, sobretudo, valores singulares. Assim, procura contrapor as “Leyes de Índias”, que determinaram a construção das cidades espanholas na América, às “Ordenações do Reino”, que subsidiaram a construção das “cidades portuguesas do Brasil”, as quais, para o autor, são expressões “da suma de nossa cultura artística, aquilo de que mais nos orgulhamos de ter feito, o sulco maior deixado no tempo pela nossa sensibilidade e nosso espírito”.
Apesar do autor concentrar sua análise nas cidades pretéritas, ao defender o informalismo das cidades coloniais, não deixa de posicionar-se sobre os rumos contemporâneos do urbanismo. O estudo participa de uma crítica ao racionalismo da cidade modernista. Nesse sentido, apesar de não fazer críticas diretas a Brasília, o silêncio quase total dedicado à maior realização do modernismo no Brasil revela um certo juízo negativo. No entanto, o autor não escapa à visão funcionalista que anima boa parte do modernismo, ao articular o estudo da informalidade peculiar dessas cidades à classificação das mesmas por suas funções específicas, ou seja, segundo a idéia de que “a forma segue a função”.
Deve ser destacado o cuidado com a nova edição. O texto é respeitado em sua forma original e diagramado com clareza, o que facilita a leitura de uma análise que, por vezes, envereda pela descrição ou enumeração de fatos, dados e fontes. Quanto às imagens, houve a preocupação com a reprodução a cores e em bom tamanho da maioria das ilustrações usadas originalmente, além de ser indicada a localização correta das mesmas. No prefácio, Murillo Marx situa o livro na fortuna crítica das cidades no Brasil, ressalta a seriedade e a maturidade do autor e postula o pioneirismo do estudo. Na orelha, Afonso Carlos Marques dos Santos aponta a relação do livro com outros estudos sobre a formação histórica do Brasil (Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido e Formação da Economia Brasileira de Celso Furtado), além de apontar a significância dos estudos pioneiros da Universidade do Brasil. Nessa edição, falta apenas uma nota sobre o autor, que, espera-se, seja incluída em Quatro Séculos de Arquitetura, outra obra de Paulo F. Santos que em boa hora a Editora UFRJ pretende republicar.
sobre o autor
Roberto Conduru é historiador da arte, professor na UERJ e na PUC-Rio