Quando por aqui esteve na década de 30, o filósofo alemão Hermann von Keyserling, impressionado com sua natureza exuberante, definiu a América do Sul como "o continente do terceiro dia da Criação". Nesse dia, segundo a cosmogonia das Sagradas Escrituras, Deus teria criado os continentes e os mares e sobre o solo firme plantado ervas que davam sementes e árvores que davam frutos. Ele já havia criado a luz, o firmamento, a noite e o dia, mas, contraditoriamente, não havia criado nem o sol nem a lua. A terra do terceiro dia da criação é noturna e aquática, uma natureza inacabada e em plena transformação, onde o homem ainda é uma impossibilidade. Tal descrição evocava involuntária e metaforicamente a descrição do território amazônico feita por Euclides da Cunha mais de duas décadas antes: "diante do homem errante, a natureza é estável; e aos olhos do homem sedentário que planeie submetê-la à estabilidade das culturas, aparece espantosamente revolta e volúvel, surpreendendo-o, assaltando-o por vezes, quase sempre afugentando-o e espavorindo".
O conflito entre a natureza primordial e a civilização humana ocorrendo no cenário americano, em especial na sua parte meridional, foi uma impressão que se constituiu ao longo de todo o período colonial, cristalizando-se, na segunda metade do século 19 e início do 20, em verdade histórica, pedra de toque de um sem número de explicações sobre a constituição das sociedades sul-americanas, com maior destaque para a brasileira. As dificuldades de instalação de uma sociedade aos moldes europeus impostas pelos territórios virgens, inóspitos e agressivos constituiriam, segundo tal visão de mundo, o grande desafio civilizacional a ser suplantado.
Em paralelo à constatação histórica constituiu-se, também ao longo dos séculos, toda uma tradição utópica formada por aqueles que buscaram por estes rincões o paraíso terreal perdido ou que enxergaram na virgindade do novo território o locus ideal para a implantação de uma civilização sem a presença do pecado. Trata-se, como se vê, de duas visões antagônicas que compartilham da mesma raiz histórica: a conquista européia dos novos territórios no além-mar.
Natureza, construção e sociedade
Não há como não pensar nessas coisas quando começamos a folhear o novo livro dedicado à obra do arquiteto Paulo Mendes da Rocha e nos deparamos com o primeiro capítulo, sugestivamente intitulado "América, arquitetura e natureza". Tal como nos dois capítulos subsequentes – "Genealogia da imaginação" e "A cidade para todos" – o texto introdutório, que abre uma série de projetos, é de autoria do próprio arquiteto e acaba com uma impressionante manifestação de fé no papel civilizacional da arquitetura: "nossos olhos se voltam para a idéia de construir as cidades americanas na natureza, estabelecendo novos raciocínios sobre o estado das águas, das planícies e das montanhas, a espacialidade de um continente, novos horizontes para nossa imaginação quanto à forma e o engenho das coisas que haveremos de construir".
São palavras que evocam as duas tradições mencionadas, só que agora entrelaçadas e repotencializadas: de um lado a certeza da inadequação do modelo civilizacional europeu para os novos estabelecimentos humanos nos trópicos; de outro, a crença inabalável nas virtualidades presentes na ação humana inovadora frente à natureza exuberante, possibilidade que se abre com a apropriação engenhosa da tecnologia ocidental. Tal apropriação "indevida" mantém certa semelhança com os mecanismos intelectuais da antropofagia oswaldiana, que também obtinha seu vetor transformador e utópico do saque seletivo de desenvolvimentos civilizacionais – ciência e tecnologia, sobretudo – e a recusa sistemática dos vícios e desvirtuamentos culturais europeus – em especial as relações sócio-econômicas, tidas como mecanismos de subjugação do homem pelo homem.
Podemos afirmar, ainda de forma preliminar, que a cidade americana proposta por Mendes da Rocha é produto da articulação de três âmbitos distintos: a natureza tropical, cenário virgem mas prenhe de virtualidades a serem descobertas e exploradas; a tecnologia apropriada, cujo vigor artificial permitirá a remodelação do território segundo os desígnios humanos; e a nova sociedade americana democrática, ao mesmo tempo destinatária e resultante da nova acomodação no território. A interação entre os âmbitos só será possível com uma visão cultural específica, coordenada por uma imaginação destemida forjada pela coragem diante da geografia portentosa e do devir histórico em aberto.
Em dois momentos distintos do livro, Mendes da Rocha insiste na superação histórica da arquitetura representativa fundada no edifício-monumento – que ele chama de palladiana – por uma arquitetura da realização, onde é preponderante o desenho da cidade para uma nova sociedade. Nesta nova situação histórica o valor da tradição, dependente do saber acumulativo transmissível através das gerações, é suplantado pela invenção voltada para o futuro. Trata-se de um valor forte, que ganha suas verdadeiras tinturas quando constatamos uma fatalidade: a jovialidade da arquitetura americana diante de uma natureza a ser domada, de um passado histórico recente que ainda não teve tempo de deitar raízes e de um futuro em branco a ser construído. Podemos entrever aqui a hipótese de Antonio Candido, que aponta as facilidades locais para um desenvolvimento mais coerente do primitivismo presente no ideário modernista europeu.
Transformar a natureza em benefício do homem
A divisão tripartite do livro não aponta para uma periodização ou mesmo para algum tipo de característica essencial compartilhada por uma série de obras. As obras que foram alinhadas em um dos capítulos, sob a rubrica de um determinado título, poderiam muito bem ser transferidas para outro qualquer, sem qualquer perda de inteligibilidade. Na verdade o que temos com os três textos introdutórios é o desenvolvimento em três movimentos de uma mesma visão de mundo, que abriga um conjunto de valores e um modus operandi específico.
"Para mim", diz Mendes da Rocha, "a primeira e primordial arquitetura é a geografia". Mas não se trata de uma geografia divina e inescrutável, à qual devemos nos curvar ou cultuar. A natureza para o arquiteto é a base material onde o homem operará as transformações necessárias para seu estabelecimento no território. "Fui formado", confirma o arquiteto, "com a certeza de que os homens transformam uma beleza original, a natureza, em virtudes desejadas e necessárias para que a vida se instale nos recintos urbanos". A natureza para Paulo Mendes da Rocha é antes de tudo um constructo mental, uma operação intelectiva e sensível onde a realidade física é, ao mesmo tempo, a constatação do existente e o vislumbre das virtualidades escondidas, como deixa claro na sua opinião sobre o projeto para a baía de Tóquio, de Kenzo Tange: "É um raciocínio belíssimo, a revelação de uma virtude da natureza que estaria perdida sem a consistência do raciocínio transformador".
Não é de se estranhar que, com tal ponto de partida, toda a obra de Paulo Mendes da Rocha, desde o objeto mais simples às implantações mais complexas, esteja permeada por uma grande preocupação territorial. Mas é necessário dizer que se trata de uma visão formal sempre engajada em um projeto político mais amplo, onde o indivíduo que tem acesso livre ao chão da cidade é o emblema de uma sociedade igualitária e democrática. Parte substancial de seus projetos, muitos deles não construídos, são suspensos e/ou enterrados – Museu da Escultura, Ginásio do Paulistano, as bibliotecas da Alexandria e do Rio de Janeiro, Centro Cultural Georges Pompidou, Loja Forma, MAC-USP, Fórum de Avaré, Poupatempo Itaquera e tantos e tantos outros –, conformando um cenário urbano sem "muros e portas, bloqueios ou fronteiras". Projetos que ilustram sua visão de mundo, que reiteram suas hierarquias: o território prevalece sobre a cidade, a cidade sobre o edifício, o público sobre o privado, o coletivo sobre o individual.
A amplitude de sua utopia social fica mais evidente quando notamos o escasso uso do termo Brasil e a recorrente referência à América. O que nos une é a grande aventura civilizacional em uma geografia nova, é a promessa de um futuro comum. Uma nova América, onde poderíamos ter em uma ponta hidroviária a nova cidade de Tietê e na outra a baía redesenhada de Montevidéu, dois sonhos do arquiteto, uma virtualidade à espera de uma materialização: a integração latino-americana.
Imaginação e engenho
Da cidade onde nasceu e viveu a infância, Vitória, capital do Espírito Santo, Paulo Mendes da Rocha guarda uma reminiscência: "uma cidade enérgica que, enquanto trabalhava se fazia ouvir pelo fragor das docas". Imagem onde vislumbramos a laboriosidade do homem que constrói máquinas e artefatos, que imagina e projeta seu futuro, que estima os meios necessários para realizá-lo. Imaginação e engenho, sublimes capacidades humanas que tornam a interação com o meio uma possibilidade radical de transformação da natureza e da própria sociedade.
Paulo Mendes da Rocha nos diz professoral: "é impossível pensar em transformações formais se não se sabe como realizá-las". A arquitetura inexiste sem a engenharia, a imaginação formal é sem valor se não estiver contaminada de engenho. Tal é a fé inabalável no poder de transformação da técnica sob a tutela da razão que conclama, em nossa própria imaginação, a poesia de Goethe, em especial estas palavras de Fausto a Mefistófeles: "lá quero armar, de braço em braço, andaimes sobre o vasto espaço, afim de contemplar, ao largo, tudo o que aqui fiz, sem embargo, e com o olhar cobrir, de cima, do espírito humano a obra-prima, na vasta e sábia ação que os novos espaços dôou ao bem dos povos."
nota
NE – Texto originalmente publicado no Jornal de Resenhas, Discurso Editorial / Usp / Unesp / Folha de São Paulo, nº 68, 11 nov. 2000, São Paulo SP, p 3.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor da FAU PUC-Campinas e editor do portal Vitruvius.