Desde pelo menos os meados do século 19, época da emergência da sociedade moderna, urbana e industrial, o tema da comunidade constitui uma espécie de contraponto societário à modernização. Já na reflexão sociológica a partir dessa época, vários autores apontavam a comunidade como uma tipologia social marcada por grupos de pequena escala, que estabeleceriam relações solidárias, coesas, pessoais e permanentes, em que se configurariam certas identidades comuns, propícias à prática do associativismo (sobretudo no imaginário norte-americano).
Isso permitia pensar, por oposição, as várias faces do mundo moderno em formação, assinalado por novas formas de organização social em que passavam a predominar as relações formais e de interesse, os acordos contratuais, a lógica do mercado, a competição individual, as multidões pelas ruas das metrópoles. Essa tensão entre comunidade – enquanto uma reconstrução simbólica de um suposto passado perdido – e sociedade moderna tem se mantido recorrente e ganho distintas sínteses, a depender do contexto.
Um desdobramento dessa contraposição entre comunidade e sociedade foi, por parte de alguns defensores nostálgicos da primeira, a construção de representações negativas a respeito da cidade moderna, vista por muitos como espaço do vício, da decadência, do anonimato, das massas ameaçadoras. No plano citadino, isso traduziu-se na procura – sobretudo por parte dos grupos de maior poder aquisitivo – de espaços ao mesmo tempo urbanos, mas a salvo desses "males". No caso dos Estados Unidos, tivemos ao longo do século 20 a criação dos subúrbios destinados às classes médias, que passaram a fugir das áreas mais centrais, marcadas cada vez mais pela concentração de "problemas urbanos" – concentrações étnicas, violência, deterioração, etc.
Como mostrou Kenneth Jackson em seu estudo sobre os subúrbios – The Crabgrass Frontier (N. Y., Oxford University Press, 1985) –, uma enorme parcela dessas classes médias brancas foi à busca da casa própria em bairros apenas residenciais, com pequena densidade populacional, em áreas distantes do trabalho – conectadas diariamente graças ao automóvel –, o que resultou em vastos espaços que esgarçaram as fronteiras urbanas, sem vida pública significativa, segregados em termos sócio-econômicos e étnicos.
Esse breve histórico é o pano de fundo para melhor se compreender um recente movimento surgido nos Estados Unidos, o New Urbanism, cuja proposta pretende ser uma crítica à suburbanização, embora em seu imaginário não deixe de estar presente um caráter também "anti-urbano" das experiências pioneiras de "fuga da cidade moderna". Não é à toa que a construção de comunidades – nesse caso, planejadas pelo capital imobiliário – ocupe um lugar central nas propostas do movimento, possível, segundo seus criadores, por meio de um novo desenho urbano, capaz de conceber uma espécie de "minicidade" completa.
Segundo Witold Rybczynski, os conceitos centrais do New Urbanism – vários dos quais voltados ao incremento da socialização entre vizinhos –, poderiam ser assim resumidos: um "centro de cidade" utilizável na escala do andar; ruas mais estreitas, que têm o desenho menos voltado aos carros que nos subúrbios convencionais; quintais dos fundos menores e casas mais próximas às ruas que o usual; mistura de tipos de habitação com solidez arquitetônica, em estilos tradicionais [ver (Some) People like new urbanism. Wharton Real Estate Review, University of Pennsylvania, n. 2, vol. 2, p. 49-53, 1998].
A primeira experiência mais visível desse movimento foi a cidade de Seaside, na Flórida, inaugurada em 1981, que atraiu, segundo Robert Davis – seu fundador e participante ativo do Congress of New Urbanism – muitos compradores à procura de uma combinação de novas casas, urbanismo tradicional e um sentimento de comunidade (ver Lessons from Seaside, Wharton Review, op. cit., p. 38-43). Como se vê, busca-se atingir o mesmo público-alvo dos subúrbios: potenciais proprietários de classe média e alta.
Sua paisagem tornou-se mundialmente conhecida quando serviu de cenário de uma amável, tranqüila, pequena e "perfeita" cidade para o filme The Truman Show, onde Truman Burbank, interpretado por Jim Carrey, vivia aparentemente feliz até descobrir fazer parte de um filme da vida real transmitido pela TV, no qual era o protagonista.
Se nesse caso uma dada realidade urbana inspirou a ficção, outro empreendimento conhecido do New Urbanism, a cidade de Celebration – também na Flórida, projetada para 20 mil habitantes –, nasceu, por sua vez, de dentro da Disney Corporation, uma empresa com enorme poder na mídia, no entretenimento, no turismo, no consumo, na concepção de espaço público destinado à diversão (hoje presente nos inúmeros parques temáticos), enfim na economia e no imaginário sobretudo norte-americanos, mesmo que muitas vezes polêmico e não consensual.
As primeiras informações publicitárias sobre Celebration – em 1994, então ainda em construção – anunciavam todas as casas em estilo tradicional francês – que se tornara popular nos Estados Unidos após a 1ª Guerra Mundial – com quatro variantes de escolha: uma escola pública cuja proposta era tornar os estudantes aprendizes ao longo de toda a vida, aptos a desenvolver um pensamento crítico numa sociedade culturalmente diversificada e em constante mudança (articulada a uma academia que formaria os professores responsáveis por tais inovações, a serem propagadas posteriormente pela região); um sistema de fibras óticas que "providenciaria uma comunicação interativa de alta velocidade entre os moradores" (algo que depois se provou o slogan mais vazio entre todos); uma aliança estratégica envolvendo grandes e poderosas companhias, como a A. T. & T. (telefonia) e a General Electric.
Já chamava a atenção a combinação entre nostalgia arquitetônica, experimentação, tecnologia e forte controle da iniciativa privada. A autoria da Disney e as novidades anunciadas suscitavam já nessa época uma razoável cobertura da imprensa, que satirizava o empreendimento – muitos diziam que Mickey seria o prefeito –, questionava se o controle empresarial não acarretaria um "meio ambiente totalitário", e registrava a grande procura inicial por parte de milhares de compradores (malgrado os altos preços), o que talvez apontasse que muitos estavam à busca de uma "cidade perfeita".
Se naquela época eram muitas as interrogações e críticas, hoje já se pode ter um balanço inicial do projeto, do ponto de vista da experiência de seus próprios moradores, graças a dois livros recentemente lançados – The Celebration Chronicles e Celebration, U. S. A. –, ambos marcados por certas variantes de "observação participante": o primeiro, o relato de um ano de pesquisa de Andrew Ross, professor da N. Y. U. e diretor do American Studies; o segundo, o relato do casal de jornalistas Douglas Frantz e Catherine Collins, que viveu ali, com dois filhos, por um ano e meio. Dada a grande quantidade de temas tratados, enfocarei questões ligadas à vivência comunitária, que constituem de certa forma o cerne das narrativas.
O livro de Ross é de um modo geral mais crítico e com um tom obviamente mais acadêmico, combinando registros de sua experiência junto aos moradores locais com uma visão mais ampla a respeito da sociedade e do urbanismo norte-americano. É interessante observar como logo no início várias expectativas já se frustravam. Os preços médios das primeiras residências eram de US$ 220 mil, subindo depois até US$ 377 mil, o que originou uma frase muito comum sobre seus habitantes: "house rich and cash poor". Além das dificuldades em dar conta das prestações, os moradores tiveram gradativamente muitos problemas com a T. C. C., responsável pelas construções das casas, desde enormes atrasos na entrega – por sinal explorando em larga escala a mão de obra de imigrantes mexicanos clandestinos – até vários erros ou defeitos de fabricação.
Há também códigos de regras inflexíveis, que zelam por exemplo pela "qualidade urbana", arbitrando sobre o tipo de plantas nos jardins ou possíveis mudanças nas fachadas (quanto a formas ou cores) que alterem os estilos existentes. Muitos conflitos decorrentes levaram à criação de uma associação local de proprietários, para fortalecê-los na dura negociação com o setor imobiliário e com a própria Disney, revestidos ali de amplos poderes, ainda mais porque em Celebration não há, por exemplo, eleições locais e o município de Osceola, ao qual a área pertence, tem uma capacidade bastante reduzida de intervenção.
Ross também participou como professor voluntário do projeto educacional, onde teve visão privilegiada de uma outra grande fonte de conflitos. Aos poucos, muitos pais passaram a questionar o novo método introduzido aos seus filhos, com queixas quanto a várias carências: de ênfase em disciplinas clássicas como matemática e ciências; de comportamento mais disciplinado; de incentivos de competitividade para melhor desempenho; de notas, o que no futuro poderia barrar a entrada nas universidades.
Frente aos protestos, a administração escolar respondera a princípio que os insatisfeitos poderiam buscar outras escolas, o que soava estranho por se tratar de uma escola pública, mas também porque os gastos com a compra das casas impossibilitava-os de inserir os filhos numa escola privada. Quase um ano depois, a luta por um currículo mais tradicional ganhara muitos adeptos e a escola fora obrigada a ceder em muitos aspectos, sem falar da construção de uma outra escola pública na região.
Aos poucos se tem um quadro onde, ao invés da emergência de uma comunidade tal como planejada pelos administradores, observa-se um grupo reunido sobretudo em resposta, como se viu, a adversidades concretas que envolviam seus interesses mais imediatos. Vínculos como esses, além de outros de caráter informal, passaram, inclusive, a se sobrepor aos esforços dos empreendedores de promover um sentimento comunitário, com as "festas de quarteirões" organizadas por profissionais orientados pela Disney, com o intuito de se criar uma espécie de identidade homogênea, sem "fraturas internas".
Outro tópico interessante diz respeito à religião em Celebration. O local destinado a cerimônias fora inicialmente pensado como um espaço ecumênico, que seria destinado a várias religiões, o que foi rejeitado pelos batistas.
Dorothy Disney Puder, sobrinha de Walt Disney, fez contudo valer sua força política para estabelecer ali, com uma doação extraordinária de fundos, uma igreja presbiteriana, que passaria a ser, segundo seu desejo, a "congregação da comunidade". Apesar de razoavelmente freqüentada, obviamente levou outros grupos – como católicos e judeus – a buscarem outros locais em Celebration para a prática de seus próprios cultos (p. 248).
Já o livro de Frantz & Collins é de um modo geral menos crítico, arguto e distanciado que o de Ross – que chegou a tentar visitar o casal, mas esses recusaram o contato, a pedido do editor. Celebration U. S. A. possui uma linguagem mais fluente e menos "acadêmica" que o primeiro, mas percebe-se na narração – ainda que também com dados históricos e entremeada por intenções por vezes críticas – um certo encantamento com a experiência. Vários acontecimentos já citados estão ali registrados, como por exemplo as "dores de cabeça" com os construtores, quanto a uma garagem construída num local distinto do especificado.
Ambos apreciavam as redes informais de vizinhança propiciada pela proximidade das casas – a despeito de um conflito entre seus filhos e crianças do vizinho, que quase se estendeu para ambas as famílias –, o igualitarismo arquitetônico, além da liberdade de movimento das crianças, mas aos poucos passaram a sentir falta de um meio urbano mais heterogêneo, enfim, um mundo não tão apartado dos "problemas urbanos reais". Há uma crítica aos administradores pela oportunidade perdida de oferecer residências mais baratas, que pudessem trazer maior diversidade social ao local. Constatavam ao término da experiência haver uma divisão muito tênue entre harmonia e conformismo, e a maioria dos moradores parecia pender para o último, embora também frisassem que cabia à comunidade – àquela estabelecida frente aos vários problemas enfrentados – tentar mudar tal realidade.
É importante notar que ambos os livros remetem-se à obra The Levittowners (N.Y., Pantheon, 1967), de Herbert Gans, que se tornou uma referência por ser o primeiro trabalho de campo com uma população suburbana, no qual, a despeito de todas as críticas então correntes, afirmara que não havia um "modo suburbano de vida", tratando-se apenas de uma classe média comum em luta para satisfazer suas necessidades, num novo contexto social e físico. A mudança em suas vidas relacionava-se muito mais com suas próprias aspirações do que com a influência do meio ambiente suburbano. Dessa forma, não era um local utópico, tampouco uma terra perdida.
O livro de Andrew Ross, principalmente, parece seguir por linhas semelhantes. Criticando uma visão caricatural sobre seus moradores, ressalta ao final que os habitantes de Celebration já tinham experimentado tanto o pior quanto o melhor das cidades, e que ao longo disso formaram, do seu próprio ponto de vista, uma comunidade. O conflito entre proprietários e setores imobiliários com amplos poderes não é, inclusive, exclusivo a Celebration, desdobrando-se em inúmeros empreendimentos residenciais.
Concluindo, a engenharia do setor privado é, ao menos por ora, incapaz de produzir uma comunidade totalmente planejada – ainda mais por se tratar, no caso, de uma corporação poderosa como a Disney – e a idéia de uma "cidade perfeita" se traduz novamente numa fantasia irrealizável. Entretanto, a virtude da comunidade em se contrapor a tal realidade também deve ser ponderada, ainda mais porque se trata, e não só nesse caso, de uma comunidade de proprietários, em que os interesses privados sempre tendem à busca de soluções onde a casa e os arredores são sempre mais importantes que a cidade como um todo.
nota
Texto originalmente publicado no Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, 25 de agosto de 2001. Republicação em Vitruvius autorizada pelo autor.
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sobre o autor
Heitor Frúgoli Jr. é professor de Antropologia da UNESP/Araraquara e doutor em Sociologia na USP.