Comemorou-se ano passado os 50 anos da FAU-USP através de várias homenagens e eventos, organizados sempre de maneira enfatizar uma das características mais peculiares daquela escola de arquitetura paulista: a pluralidade de direções profissionais a que se dedicam ou se dedicaram seus membros – alunos, ex-alunos, professores. Viam-se na exposição comemorativa de edifícios a objetos, de obras artísticas a cenografias, de atividades gráficas a reciclagens. Mas, fato notável, pouco se falou – e apenas de passagem – sobre a importância cultural da contribuição teórica de vários componentes do universo humano daquela escola – a qual é, sem dúvida, da maior importância.
Basta citar a profundidade do trabalho de pesquisa quem vem sendo realizada por eméritos professores da FAU tais como Carlos Cerqueira Lemos, Nestor Goulart dos Reis Filho, Benedito Lima de Toledo, entre outros, autores de vários e importantes livros e de contribuições inestimáveis à compreensão da arquitetura brasileira, dos primórdios coloniais aos dias de hoje; sem esquecer de outros nomes indissoluvelmente ligados à própria substância da FAU-USP, como a crítica de arte e arquitetura Aracy Amaral, de grande prestígio nacional e internacional, ou ainda Flavio Motta, teórico e artista – e o fato destes dois últimos não serem arquitetos, ou de algum dos professores citados não ter se formado naquela escola sendo, sem dúvida, um detalhe de todo irrelevante numa homenagem desse porte. Seria o caso também de se destacar autores e pesquisadores da geração seguinte, tais como Luiz Carlos Daher, Marlene Milan Acayaba, Silvia Ficher, Maria Helena Flynn, entre outros, discípulos de alguns dos mestres da FAU mas cuja contribuição alcançou uma importância própria, ou sua outra metade da laranja, na pessoa e nos discípulos de Sérgio Ferro; e finalmente, de uma geração algo mais nova, mais crítica e contestadora, e que encontrou nas revistas de arquitetura seu espaço privilegiado de debate, divulgação e pesquisa – da qual se destaca, entre outros nomes, Hugo Segawa, autor do recém lançado livro "Arquiteturas no Brasil. 1900-1990", que bem pode ser considerado a contribuição pessoal do autor àquele cinqüentenário.
Esse "esquecimento" revela uma das idiossincrasias da FAU-USP – e, de resto, da formação do arquiteto brasileiro em geral. Qual seja um difuso mas persistente anti-intelectualismo, fruto talvez da visão do arquiteto como ser genial, nascido já pronto da cabeça de Zeus e que, se não despreza, ao menos considera as questões teóricas do ofício da arquitetura como secundárias e não operativas – visão errônea, bitolada e partícipe do fracasso pedagógico cada vez mais freqüente na formação dos arquitetos. Esquecer a contribuição dos teóricos da arquitetura brasileira – no caso em foco, os da FAU-USP – em busca de um discurso um tanto descosido da "volta à prancheta" é uma falácia que revela seus resultados efetivos na baixa qualidade da produção dessas pranchetas, esgotando-se num saber prático que, se atinge alguns picos em certos momentos, nunca chega a formar um padrão arquitetônico de consistência, o qual só pode existir a partir de uma prática crítica, teoricamente bem fundamentada.
O livro de Hugo Segawa é histórico – mas é também crítico. Não lhe faltam informações, pesquisas, dados relevantes organizados de maneira a dar ao leitor uma visão ampla e genérica da arquitetura brasileira de quase todo este século – tarefa hercúlea que o autor não pretende esgotar. É crítico, porém, na medida em que recorta e seleciona, analisa e valoriza, dando maior ou menor destaque a alguns eventos, obras ou tendências que o autor considera – e por isso as seleciona – como de relevância e transcendência maior. E, principalmente, porque se recusa a uma visão totalizadora, unívoca e triunfal desse panorama da arquitetura brasileira. Não tem, como o autor afirma, "a pretensão acadêmica do amplo esforço de Yves Bruand" autor do clássico "Arquitetura Contemporânea no Brasil". Não privilegia arquitetos, com honrosas exceções a poucos mestres como Gregori Warchavchik, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Vilanova Artigas. E o faz porque deseja operar não com produtos mas com processos, qualificados em alguns temas que, se bem sejam organizados a partir de certa contiguidade temporal, não são meramente seqüenciais mas se superpõem parcialmente, deixando claro que, em cada momento, muitas e diferentes tendências buscam caminhos distintos, divergentes ou convergentes, algumas vezes apenas paralelos.
Publicar um livro com essa amplitude temporal num panorama da cultura arquitetônica brasileira onde se exibem raríssimos exemplos de outros trabalhos do mesmo porte – o mais conhecido sendo o já citado Bruand, que atinge apenas até os anos 1960, sendo os demais apenas manuais pontuais de muito menor abrangência – é tarefa das mais polêmicas, pois irá enfrentar, da parte de alguns leitores, toda a expectativa prévia que inevitavelmente nasce da ausência de outras fontes. O livro de Hugo Segawa se sai com galhardia desse desafio configurando-se, desde o seu lançamento, como um clássico que se tornará cada vez mais indispensável, tanto ao arquiteto formado ou em formação, como a qualquer interessado em compreender as questões mais relevantes da arquitetura brasileira deste século. Apenas a lamentar a edição demasiado "casual" da Edusp, com uma quantidade de ilustrações inferior ao que seria desejável, quando se esperaria da editora um tratamento à altura do da abrangência do tema.
No seu livro Segawa abre o século 20 com as importantes transformações pelas quais passavam as principais cidades brasileiras, iniciadas em geral por médicos e engenheiros sanitaristas, superando e negando as estruturas coloniais em busca da consolidação de novos modelos urbanos, tomados de empréstimo e adaptados das amplas discussões utopistas ou reformadoras da Europa do século anterior. Sobre essas novas bases urbanas se preparam os cenários para a modernidade arquitetônica – cujo significado, num primeiro momento, abrangerá uma amplitude muito mais diversificada do que o termo "modernidade" assumirá na segunda metade do século 20, questionando, embora sutilmente, a mitografia dos historiadores "orgânicos" do movimento moderno. Dessa maneira, Segawa organiza nos capítulos seguintes não um processo linear, ufanista e excessivamente coerente, alinhavando precursores/ desbravadores/ consolidadores, para desvelar um panorama plural para o qual concorrem diferentes interpretações do que poderia ser a "modernidade" no campo arquitetônico. Qualifica assim (e os termos são indicações, e não etiquetas) "Alguma Modernidade", que incluiria desde o debate neo-colonial aos primórdios de um certo racionalismo construtivo; um "Modernismo Programático", proselitista, de fontes formais centro-européias, que tem em Warchavchik seu epígono; um "Modernismo Pragmático", menos preocupado com manifestos e sim com a efetiva modernização da construção, servindo-se do conceito de "estilo moderno" mas de fato alavancando e disseminando uma nova compreensão para a arquitetura moderna; para então qualificar uma "Modernidade Corrente", índex que Segawa dá à canônica "arquitetura moderna brasileira". Essa estrutura inicial do livro torna o esforço do autor – e ainda mais se o compararmos sua obra ao livro de Bruand – não apenas uma "atualização", complementando informações sobre a arquitetura brasileira dos últimos 30/40 anos, como igualmente uma "re-visão" dos primeiros 30/40 anos do século.
Nos dois capítulos seguintes o livro revê a história – que é, de fato, indiscutivelmente épica – da modernidade brasileira de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e vários outros e importantes autores da chamada "escola carioca", que se dissemina por todo Brasil, seja através dos arquitetos "peregrinos", seja através da adesão espontânea de profissionais de outras regiões. Esse miolo do livro culmina em Brasília, obra máxima dessa modernidade. Segawa não encontra espaço, ali, para a necessária atualização crítica de Brasília, tarefa talvez demasiado complexa e polêmica, mas que poderia ter sido esboçada com menor timidez do que a por ele demonstrada. Entenda-se bem: criticar não é falar mal, ao contrário: penso ser Brasília uma fonte importante de ensinamentos, e sua sistemática ausência como fato de atualidade, tanto na historiografia como nos debates arquitetônicos e urbanos, longe de ser um ato "respeitoso" revela um temeroso esquecimento voluntário que tem sido nefasto para os caminhos da crítica de arquitetura brasileira.
No capítulo seguinte Segawa comete, ao meu ver, uma excessiva "rapidez" de análise ao considerar, no mesmo tom e com a mesma importância, tanto a disseminação "hegemônica" da arquitetura moderna brasileira de corte carioca por esses brasis como, sem solução de continuidade, a chamada "escola paulista", que se consolida a partir de meados dos anos 50 precisamente em oposição parcial a essa hegemonia. Há um certo pudor, entre os arquitetos paulistas, de assumir às claras sua contribuição distinta e original para a modernidade brasileira – há quem chegue a duvidar da existência dessa escola paulista. Ora, tal atitude é incoerente em face dos fatos – não cabe dúvida que a arquitetura (muitas vezes chamada de "brutalista", mas a discussão desse termo caberá em outro momento) paulista, por seus resultados formais e construtivos configura-se de maneira distinta da escola carioca, sem se necessitar cair numa visão maniqueísta de pura oposição, certamente absurda; mesmo assim, é somente ao assumir a peculiaridade paulista em sua plenitude que se poderá compreender de maneira mais precisa e aberta os rumos da arquitetura brasileira a partir dos anos 60, a qual será profundamente influenciada nos seus destinos por essa arquitetura paulista, ao menos até o início dos anos 80.
Nos dois últimos capítulos Segawa busca fazer um apanhado, necessariamente mais superficial face à pouca distância histórica, de alguns episódios importantes do desenvolvimento da arquitetura brasileira após Brasília, num "mapeamento da diversidade" que retoma a idéia de pluralidade que o livro trabalha em seus capítulos iniciais. Reside ai uma contribuição praticamente original do autor pois, se bem que esses temas tenham sido debatidos em publicações periódicas, a seu momento, somente agora recebem uma compilação que é didaticamente de grande interesse.
O livro encerra com questionamentos e dúvidas, que não podem (ou ainda não devem) ser respondidas por que escapam já domínio da história, mas são basicamente o atributo da crítica de arquitetura: afinal, que rumos estão sendo e serão tomados? Não há como responder sem um exercício de futurologia – mas isso, apenas porque de fato a arquitetura brasileira não está mais num momento "hegemônico" – o que, em si mesma, já é uma constatação da maior relevância para se compreender os rumos dessa realidade.
[texto originalmente publicado no Jornal da Tarde com o título "Um olhar sobre a arquitetura de morar paulista", Caderno de Sábado. Reprodução proibida sem autorização do autor]
leia também"A esfinge silenciosa", de Abilio Guerra, e "Histórias da arquitetura", sobre o livro de Hugo Segawa
sobre o autor
Ruth Verde Zein é arquiteta (FAU-USP, 1977), crítica de arquitetura, com uma centena de artigos publicados no Brasil e no exterior, professora da FAU-Mackenzie