Durante três séculos a incômoda travessia começava na África e terminava na América. Separando os dois continentes estava a Calunga Grande, o hostil e misterioso Oceano Atlântico. Mas a Calunga também pode ser pequena, e então ela é tumba, não menos hostil quanto misteriosa. Imagine-se que, a despeito desta breve definição acima, a Calunga Grande também, não raro, era a incomensurável tumba. Isto porque estamos nos referindo à travessia de cerca de 3,5 milhões de afro-negros – já no caminho reduzidos à condição de escravos – que foram trazidos para estas bandas pelas mãos desumanas dos traficantes em seus navios negreiros, chamados de "campos de concentração flutuantes" pelo historiador Robert Thompson.
Nesta travessia a chegada em terra firme era incerta para os africanos embarcados, e a Calunga Grande poderia ser o destino final para aqueles que não chegassem vivos ou sãos. O ambiente insalubre e os maus tratos a bordo dos navios negreiros contribuíam para ampliar a incerteza da chegada. Castigos corporais, assassinatos em massa e doenças graves e contagiosas faziam parte desta difícil travessia. Aos que a completavam, desde o século XVI (1550) até meados do século XIX (1850), cabia uma tarefa: construir este país, um dos últimos do mundo moderno a abolir a escravidão.
"A Travessia da Calunga Grande – Três séculos de Imagens sobre o Negro no Brasil (1637 – 1899)" é o título deste magnífico livro / catálogo assinado pelo pesquisador Carlos Eugênio Marcondes de Moura. O livro faz parte da coleção "Uspiana – Brasil 500 anos", composta por doze títulos, editada pela Universidade de São Paulo no bojo das comemorações pelos 500 anos do Brasil. Efemérides à parte, Moura se propôs a uma tarefa tão gigantesca quanto necessária (e também inédita) para a recente historiografia brasileira: levantar e catalogar, da forma mais abrangente possível, as fontes iconográficas que "registrassem imagens dos afro-negros e seus descendentes no Brasil", no intuito de construir um guia para pesquisadores movidos por interesses diversos. Assim, catalogou 2.593 imagens com 507 destas reproduzidas no livro. Segundo Moura, "a publicação integral do material situa-se, por enquanto, nos domínios da utopia."
Com efeito, Moura também inicia o seu catálogo com a reprodução de uma imagem alegórica do continente africano (gravura nº 19; pag. 255), de autor não identificado e impressa em 1686, onde a travessia outrora começava para os afro-negros. Observa o autor que, como toda alegoria, estas primeiras imagens do universo africano e de seus habitantes se compõem de elementos da realidade e da fantasia. Todavia, este predomínio da alegoria e do simbolismo nas primeiras imagens sobre a África, é praticamente nulo quando o autor se reporta para a análise da presença do afro-negro no Brasil do século XVII, notadamente para a obra de Frans Post, artista que "mantém-se fiel à realidade e não acumula a composição com detalhes excessivos."
Dividido por séculos – do XVII ao XIX –, o livro evidencia uma grande dificuldade encontrada pelos historiadores que se debruçam sobre a produção iconográfica dos primeiros anos do Brasil-Colônia: a pequena quantidade de imagens existentes a respeito da escravidão tanto no século XVII quanto no século XVIII. Do século XVII, praticamente todo o registro iconográfico está restrito à presença holandesa – capitaneada por Maurício de Nassau – em Pernambuco. O século XVIII sabe-se que corresponde a um momento de "total fechamento e inacessibilidade da colônia aos viajantes estrangeiros, em decorrência das políticas adotadas pelo governo ultramarino, em extremo cioso de proteger dos contrabandistas as minas de ouro e diamantes." Contudo, destacam-se neste período as obras de Carlos Julião (1740 – 1811), um militar que, por estar a serviço da Coroa Portuguesa, talvez tenha encontrado algumas facilidades para penetrar no interior da Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Quanto a isto, basta dizer que no livro constam apenas 63 iconografias catalogadas do século XVIII e 1.063 correspondentes ao século XIX. Sobre a abundante iconografia oitocentista sabe-se que, a despeito da qualidade discutível de muitas obras, foi uma conseqüência direta da chegada da Corte Portuguesa ao Brasil e, principalmente, da abertura dos portos. Um outro fator que contribui para a vasta produção iconográfica do período é a própria dinâmica da sociedade e a evolução e multiplicação dos meios de representação, como a invenção da fotografia, também contemplada no livro.
De maneira acertada, o autor evitou em sua catalogação qualquer tipo de análise ou de julgamento estético que pudesse impedir o registro – e, em alguns (poucos) casos, a reprodução – de uma determinada imagem. Seguiu o objetivo precípuo de tratá-las como documentos relevantes que, em si, despertam interesses históricos, sociológicos e antropológicos. Na estrutura organizacional do livro, Moura estabeleceu um rigoroso critério de catalogação e ordenamento das imagens. Assim, para cada uma das 2.593 imagens prospectadas, o autor menciona nove itens que as identificam em particular, a saber: 1) numeração da imagem, 2) nome do artista, 3) título da obra, 4) data, 5) técnica empregada, 6) medidas, 7) localização geográfica, 8) descritores, conforme o assunto representado, 9) bibliografia.
Um outro aspecto digno de nota é que à medida em que avançamos na observação do catálogo, o negro deixa de figurar como um simples objeto do olhar estrangeiro – ávido por registrar sua imagem e suas particularidades culturais – para tornar-se sujeito atuante e fundamental naquela ordem social escravista. Pelas imagens reproduzidas por Moura percebe-se que os escravos, de fato, foram os principais responsáveis pela construção deste país, incluindo cidades importantes como Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
No caso do Rio de Janeiro, principalmente nas imagens do século XIX, percebe-se o quanto a cidade era completamente dependente do escravo urbano. Se nos detivermos apenas na questão do abastecimento de água, podemos perceber por algumas imagens reproduzidas no livro (nº 562; p 499, nº 1.064; p 504, nº 1.116; p 357) o quanto este serviço era precário. Todavia, eram nas fontes e chafarizes da cidade, representados nestas imagens, que os escravos tinham a possibilidade – enquanto esperavam na fila da água – de interagir social e publicamente com outros grupos sociais. Também a tarefa da eliminação de dejetos domésticos cabia aos escravos que, ao crepúsculo, corriam em fila e acorrentados pelas principais ruas da cidade (gravura nº 1.626; p 558), em direção ao mar (a Calunga Grande) ou a algum terreno baldio.
Outro fato interessante é que, na seqüência das imagens reproduzidas, sobretudo as do século XIX, o negro parece ganhar um rosto, uma profissão, uma identidade mais precisa que, se por um lado o difere e o afirma como um elemento social importante, por outro lado – notadamente após a abolição da escravidão – o torna alvo de fatores incômodos como o preconceito e o racismo. Na análise desta iconografia sobre o negro, fica bem clara a idéia de que, segundo a historiadora Kátia Mattoso, durante muitos anos no Brasil, negro e escravo eram dois termos que serviam para definir a mesma situação, sendo portanto sinônimos. Atualmente não há escravidão, mas com certeza a dívida social com os afro-descendentes ainda é uma projeção viva do nosso passado recente que não conseguimos superar.
Isto posto, há que se comemorar esforços como este de Moura e de tantos outros pesquisadores que lutam arduamente para que este movimento relativamente recente da pesquisa sobre a escravidão no Brasil não seja em vão e que possa alavancar discussões e, sobretudo, contribuir para a diminuição de injustiças sociais históricas.
[texto originalmente publicado no caderno Idéias do Jornal do Brasil de 28 de abril de 2001]
sobre o autor
Antônio Agenor de Melo Barbosa, arquiteto e urbanista, é mestre em Urbanismo (UFRJ) e professor da Fau-UFRJ e da Universidade Santa Úrsula