Fenômenos sociais que se observam especialmente a partir dos anos 90 na região metropolitana de São Paulo vêm exigindo uma compreensão cada vez mais apurada por parte dos estudos urbanos. Um dos desafios dessas análises tem sido o de confrontar antigas heranças com processos mais contemporâneos, a fim de se avaliar a extensão de algumas mudanças em curso. Sob esse prisma, citando apenas dois exemplos, tem sido discutida a extensão da desindustrialização na clássica "metrópole industrial", ainda que uma de suas conseqüências mais graves, o crescente desemprego, seja consensual; assim também vem sendo a revisão parcial do padrão "centro-periferia", em razão da proliferação de condomínios de alto padrão nas franjas da metrópole e de um espraiamento da pobreza por várias áreas de toda a Grande São Paulo.
Um desafio correlato é que tal reflexão deve também ser capaz de indicar sugestões de políticas públicas capazes de viabilizar esses grandes núcleos urbanos onde se concentra a maioria de nossa população, opondo-se a um imaginário "antimetropolitano" que, frente a um duro cotidiano e a muitas tragédias, cada vez mais enxerga nesses espaços somente um quadro catastrófico e inviável, apostando apenas em cidades de menor porte. Não é à toa que na próxima eleição municipal da capital a própria estratégia de governabilidade de um território cada vez mais complexo será um dos principais temas de discussão.
Nesse campo de investigações e debates, é inevitável mencionar a importância de Escritos Urbanos, com artigos escritos nos últimos 15 anos por Lúcio Kowarick, que reconstituem e desvendam, numa rigorosa perspectiva sociológica, os descaminhos de nossa urbanização, tendo São Paulo como objeto de estudo destacado.
Dada a influência do autor na pesquisa urbana brasileira e latino-americana, suas referências teóricas são muitas vezes reveladoras de importantes correntes da própria sociologia urbana. Assim, pode-se avaliar como, nos anos 70, o enfoque sociológico era centrado basicamente num determinismo econômico estrutural, de inspiração marxista, em que os "problemas urbanos" eram compreendidos à luz da "dinâmica de acumulação do capital", cuja crítica parcial levou Kowarick à criação do conceito de "espoliação urbana", que, além das determinações econômicas, guarda relação com a dinâmica das lutas populares urbanas frente ao Estado pelo acesso à terra, à habitação e aos bens de consumo coletivo.
Já a partir dos anos 80, a redemocratização deu maior visibilidade a múltiplos atores na arena social e política, com destaque para os movimentos sociais urbanos na periferia das grandes cidades, colocando em pauta a questão da ampliação da cidadania numa sociedade de forte desigualdade, com expansão dos direitos políticos, mas não dos civis nem dos sociais.
Apontando a configuração dessa subcidadania urbana, Kowarick propõe o conceito, referente à grande maioria dos pobres, de "cidadão privado", cujo paradoxo encerra a tripla condição de não se ter acesso a benefícios, de se estar isolado e de se refugiar no âmbito privado.
Um dos desdobramentos dessa mudança de enfoque é a revisão da análise sobre o papel da casa própria autoconstruída, predominante entre as classes populares das regiões periféricas. Tal prática foi vista inicialmente como uma alternativa espoliativa, por embutir um sobretrabalho gratuito, contribuindo assim para salários deprimidos, à medida que barateariam os custos da reprodução da força de trabalho.
Hoje essa experiência é analisada como espaço por excelência do "cidadão privado", no sentido de constituir um "abrigo contra as intempéries do sistema econômico", um local de relativa segurança frente a um espaço público cada vez mais marcado pelo desrespeito e pela violência, além da busca de uma dignidade moral, distinta da pobreza culpabilizada pelo fracasso, sempre atribuída aos favelados e encortiçados. As palavras do autor sobre a casa própria como típico plano individual do "cidadão privado" são instigantes: "Projeto tradicionalista, conservador? Talvez sim, talvez não. Mas, indiscutivelmente, um projeto ainda massivo e em crise, e, provavelmente, de enormes conseqüências socioculturais."
Dado que os movimentos sociais não podem ser linearmente deduzidos das determinações macroestruturais, e que, ademais, os conflitos são marcados pela diversidade com que se manifestam, Kowarick enfatiza a necessidade da atenção à complexa "produção de experiências históricas". Neste sentido, muitos movimentos se originam do "momento de fusão dos conflitos e reivindicações", vários deles estruturados na solidariedade cotidiana, tecida a partir da seqüência de sociabilidades em que se compartilha a vivência da exclusão, típica das vizinhanças dos bairros desprovidos.
Quase no final do último capítulo, retomando um tema weberiano das diferenças entre as vocações da ciência e da política, Kowarick postula que compete ao pesquisador uma dose de utopia, embora seja a política, e não a investigação urbana, a responsável pela concretização do possível. Caberia assim ao pesquisador um papel "subversivo", no sentido da produção de uma crítica radical das idéias correntes, da racionalidade dominante, além da revisão das teorias existentes. Talvez aí resida uma diferença básica entre a sociologia urbana e vários estudos produzidos por urbanistas, onde o compromisso com a consecução de seus projetos os coloca de um modo geral num outro campo de forças, com outros marcos e interlocuções.
[texto originalmente publicado no Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, 22 de julho de 2000. Reprodução proibida sem autorização do autor]
sobre o autor
Heitor Frúgoli Jr. é professor de Antropologia da UNESP/Araraquara e doutor em Sociologia na USP