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MEYER, Regina. Pensando a urbanidade. Resenhas Online, São Paulo, ano 01, n. 001.18, Vitruvius, jan. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.001/3261>.


Com imenso atraso mas num momento crucial, quarenta anos depois de seu lançamento nos Estados Unidos o livro de Jane Jacobs Morte e Vida de Grandes Cidades ("Life and Death of Great American Cities") chega ao Brasil mas num momento crucial. Tanto pelas teses que apresenta quanto por nos induzir a um cotejamento entre os problemas urbanos americanos no início dos anos 60 e a atual situação das exauridas cidades brasileiras, o livro possui ainda uma grande força. Já na primeira linha a autora adverte que estaremos diante de um ataque aos fundamentos do planejamento urbano e da reurbanização vigentes nos Estados Unidos a partir da década de 30. Sua investida, que na primeira parte do texto possui a contundência de um manifesto e na segunda a força de um verdadeiro estudo, centra-se em questões que denominamos genericamente de urbanidade. É com esse conceito, difícil mas essencial para a abordagem do mundo urbano contemporâneo, que Jane Jacobs trabalha. Sem lançar mão de uma definição linear de urbanidade, ela percorre os atributos considerados indispensáveis a sua plena manifestação e existência.

A sua tese central é bastante clara: o grau de urbanidade de uma cidade, de uma metrópole ou de um bairro depende intrinsecamente do grau de vitalidade urbana ali presente. Vitalidade e decadência não estão no texto de Jacobs em oposição simples, menos ainda em sucessão temporal. Para ela, manejar a complexidade urbana através de planos e projetos é uma tarefa séria e necessária. Suas análises, histórias, exemplos e citações têm como eixo o reconhecimento das ações e situações urbanas capazes de gerar ou de destruir essa vitalidade primordial. Relacionando as atividades e os seus espaços, Jacobs procura mostrar com muitos argumentos que as atividades regem a vida urbana e que os espaços que as acolhem devem estabelecer com elas relações de compromisso e aliança.

Ora situada na posição de dona-de-casa que observa com argúcia o universo cotidiano que a cerca, ora utilizando uma evidente cultura urbanística, Jacobs trabalha num duplo registro: o vigor e a coerência da "cidade real", produto das práticas diárias de seus cidadãos, e a debilidade e irracionalidade das cidades que resultam de uma visão teórica da vida urbana. O tema de Jacobs é o resultado desvitalizante e desurbanizador promovido pelos projetos que desconhecem o real funcionamento das cidades. O convívio entre as distintas funções urbanas — morar, trabalhar, passear, comprar, conviver, circular — e tantos outros que comparecem em profusão nos seus exemplos é a base da vitalidade urbana, matéria-prima da urbanidade. A sua eliminação através de maus projetos, e ela mostra com grande clareza como as formas conflituosas de convívio podem ser mais vitais do que a supressão das distinções através de projetos "sedativos", compromete a própria permanência da vida urbana e da cidade. Além da monofuncionalidade, isto é, a ausência da diversidade funcional, ruas mal iluminadas, calçadas desprovidas de qualidades mínimas, parques urbanos segregados, quarteirões muito longos, falta de definição precisa entre espaços públicos e privados, excesso de espaços imprecisos ou residuais, mau equacionamento do convívio automóvel- pedestre, são alguns dos elementos físicos e espaciais que corroem a urbanidade.

Na ausência de uma definição explicita de urbanidade no texto de Jacobs, proponho entendê-la como a relação dinâmica que se estabelece entre as "atividades urbanas" cotidianas, que são algo maior que as "funções urbanas", sempre renováveis e ampliáveis, e o espaço público adequado à sua realização. Pelo seu forte comprometimento com o "modo de vida urbano", Jacobs não se limita a exaltar a cidade e a metrópole moderna nem em demonstrar a riqueza da experiência de vida urbana em contraponto com outras formas de organização espacial da sociedade. Estamos aqui distantes de um relato nostálgico. Seu objetivo é identificar, através de exemplos cotidianos, as forças desagregadoras do espaço de vida urbana, aquelas que tornam impossível a realização de uma genuína urbanidade e aquelas que, corretamente acionadas, podem restaurar a vitalidade essencial. O próprio título do livro revela com precisão sua opção teórica. A precedência da palavra morte frente a vida indica com clareza que não se trata de um ciclo vital, quando se caminha de forma inexorável para a degradação e extinção. Jacobs está bem consciente de que os processos sociais, dos quais a cidade é uma das mais eloqüentes expressões, não cabem nessa simplificação e comparação com o modelo biológico. Jacobs procura apontar o caminho inverso, seus argumentos vão no sentido do enfrentamento e da reversão dos processos desvitalizadores introduzidos por projetos equivocados.

A ofensiva organizada por Jacobs alveja as propostas mais influentes da primeira metade do século XX. Mostra que já era possível identificar, pelo menos do ponto de vista da experiência norte-americana, os desastrosos resultados das ações contidas nos textos e experiências fundadores do urbanismo moderno e modernista. Cunhando a expressão "cidade-jardim-bela-radiante", ela atravessa, com a lâmina de uma só espada, três vertentes do planejamento urbano e do urbanismo. Esta expressão reúne o inglês Ebenezer Howard (1850/1928), fundador do conceito que orientou os projetos das cidades jardim; o americano Daniel Burham (1846/1912), que projetou os espaços destinados a abrigar a Columbian Exposition de Chicago a partir de elementos arquitetônicos clássicos, buscando reintroduzir no urbanismo uma estética classicizante que resultou no chamado Movimento City Beautiful, e, por fim, o seu alvo principal: Le Corbusier (1887/1965) e todo ideário modernista contido no paradigmático projeto da "Cidade Radiante".

Como o seu objetivo é extremamente concreto, isto é, apontar a responsabilidade do urbanismo e do planejamento na destruição das cidades americanas, Jacobs lança os três urbanistas num único patamar, rotulando-os indiscriminadamente de "planejadores ortodoxos". Esse gesto radical justifica-se, pois ela não está comprometida com as teorias, mas com a utilização que os profissionais americanos vinham fazendo dos princípios por eles defendidos. Assim, as idealizadas relações entre o campo e a cidade, de Howard, o esteticismo monumentalista do Movimento City Beautiful e a dogmática separação funcional do Movimento Moderno, marcos muito distintos do pensamento urbano e urbanístico, ganham na sua análise uma incômoda equivalência.

Uma avaliação consistente da atualidade ou obsolescência das teses defendidas com contundência por Jacobs implica o reconhecimento da intensificação dos problemas por ela abordados no início dos anos 60. A questão do convívio urbano e do lugar onde se realiza — o espaço público — alcançou nova escala e com isso novos atributos. Voltado para uma das mais emblemáticas cidades americanas, Los Angeles, Mike Davis aprofunda alguns temas de Jacobs em A Cidade de Quartzo (1990), atestando a dimensão alcançada pela violência urbana e seu funesto contraponto: a agonia da vida urbana em Los Angeles. Confirmando as teses de Jacobs, Mike Davis, quatro décadas depois, descreve de forma assustadora o "desastre urbano" no qual está mergulhada a cidade que adotou de forma radical o caminho inverso da urbanização regeneradora, única capaz de gerar ou restituir urbanidade.

Cumprindo o percurso inevitável, isto é, a comparação entre as questões urbanas americanas e o panorama urbano brasileiro atual, fica claro para o leitor — cidadão urbano — que o "inferno urbano" expresso numa impossível urbanidade é conseqüência de pelo menos dois processos distintos. O primeiro se impõe através de planos e projetos equivocados e desastrosos, extirpadores de urbanidade, como é o caso das grandes cidades americanas. O segundo resulta da mais absoluta ausência de planos ou da consciência de sua necessidade, como é o caso das grandes cidades brasileiras. Aqui, a erosão permanente da urbanidade instalou-se não apenas pela ausência de planos, mas, acima de tudo, pela incapacidade do poder público de entender o papel contemporâneo das cidades. Umas poucas cidades no Brasil estão efetivamente empenhadas na recuperação das condições de vida urbana. Curitiba, por exemplo, desde os anos 70 instalou um processo de planejamento consistente, buscando os elementos essenciais para a reconquista de uma desejável urbanidade. De forma incipiente, outras cidades brasileiras mostram-se hoje sensíveis à necessidade de combater a ausência de qualidade urbana.

As grandes obras viárias realizadas nas metrópoles brasileiras nos últimos 20 anos, pressionadas pelo extraordinário aumento do número de veículos, produziram em cada uma delas resultados muito semelhantes. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Porto Alegre, Fortaleza, Goiânia e Florianópolis são cidades onde a presença de vias expressas cortando os bairros centrais e periféricos já plenamente consolidados provocou uma profunda desorganização urbana. O sistema viário adaptado às novas dimensões criou rupturas urbanas muito intensas, segregou trechos de bairros, afastou setores urbanos onde a vida cotidiana era, até bem pouco tempo atrás, equilibrada e integrada. As grandes rodovias e as avenidas centrais passaram nas últimas décadas a confundir-se no interior de um único sistema cujo objetivo primordial é fazer fluir o tráfego.

Em São Paulo, a Avenida Tiradentes, a principal entrada da metrópole, é um claro exemplo desse processo de ruptura. Projetada para tornar-se a peça fundamental do denominado Sistema Y criado por Prestes Maia em 1930, foi na sua origem uma ampla e arborizada avenida moderna. A implantação do monumento a Ramos de Azevedo, em 1934, atestava o seu prestígio. Entretanto, a partir dos anos 70, suas invejáveis características de avenida moderna vão sendo gradualmente destruídas. Principal eixo rodoviário dos acessos norte/sul da metrópole, a Tiradentes sofreu constantes alargamentos de suas pistas. Sua imensa ilha central arborizada é pouco a pouco eliminada em nome da crescente necessidade de ampliar o número de pistas de tráfego. Mais tarde, o próprio monumento a Ramos de Azevedo cede espaço e é removido para a Cidade Universitária. Nos anos 90, fechando um ciclo de perdas, a incorporação de um guard-rail rodoviário separando as pistas nos dois sentidos selou seu destino — a avenida cedeu lugar à rodovia. A sua travessia tornou-se problemática e o convívio das atividades localizadas nos setores leste e oeste da avenida passaram a depender de uma única passarela de pedestres.

As próprias estações do Metrô são bons exemplos de intervenção em processos urbanos. Enquanto a recuperação do Largo São Bento, tendo como principal alvo a criação da Estação São Bento, recuperou a qualidade urbana do largo, a instalação da estação Sé do Metrô promoveu um movimento inverso. A ampliação da Praça da Sé, com a incorporação da Praça Clóvis Beviláqua através da demolição do quarteirão que as separava, eliminando as ruas Felipe de Oliveira e Santa Teresa, visando a melhorar a vida dos milhares de pedestres que se serviriam da principal estação do Metrô, resultou num espaço excessivamente amplo e amorfo. O ponto de equilíbrio entre espaço público e as funções urbanas que lhe conferem sentido parece não ter sido alcançado. As entradas do Metrô acabam flutuando dentro de um espaço desurbanizado, isto é, desvitalizado pela ausência do comércio e demais atividades que lhe davam sustentação em termos espaciais e de atividades. Os meninos da rua são provavelmente os únicos cidadãos dessa metrópole que deram à nova praça um sentido, triste, é verdade, mas de qualquer forma um sentido de apropriação, lhes servindo de abrigo. Fugindo em 1996 da Febem para a Sé, eles lhe conferiram um uso mais amplo que o de simples corredor dos usuários do Metrô.

Outro bom exemplo em São Paulo é o bairro do Brás, que, secionado pela linha norte/sul do Metrô, nunca se refez. Estão ali ainda, desde 1976, terrenos inaproveitados, verdadeiras "sobras urbanas", aguardando ainda hoje a sua reintegração.

Assim, o controle do tráfego, a reordenação do trânsito, a reconquista das áreas centrais, reconstituição do espaço público, têm sido os elementos essenciais do novo discurso sobre a cidade. Há uma vaga utopia no ar: as cidades podem ser recuperadas. Seu potencial de urbanidade pode ser reconquistado pela ampliação do convívio dos usos, pela integração das funções urbanas e pela indispensável revisão das relações da cidade com o automóvel. Para quem estava sobrevivendo sem utopias, é uma luz no fim do túnel. É nesse novo cenário que o texto de Jane Jacobs continua uma referência indispensável.

[texto originalmente publicado, com o título "A urbanidade em transe", na revista Urbs, Associação Viva o Centro, nº 19, dezembro 2000 / janeiro 2001, pp 54-57. Reprodução proibida sem autorização do autor]

leia também"Vida e morte de um grande livro", de Hugo Segawa, sobre o mesmo livro

sobre o autorRegina Meyer é arquiteta, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de SãoPaulo e consultora da Associação Viva o Centro.

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Morte e vida de grandes cidades

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