Uma intensa e desmedida paixão de um homem pela sua cidade é, talvez, a melhor explicação para esta obra monumental. A cidade é São Sebastião do Rio de Janeiro, o homem é Gilberto Ferrez e a obra é o magnífico catálogo analítico "Iconografia do Rio de Janeiro (1530-1890)". Ferrez, autor de mais de 35 livros sobre arte, fotografia, história, arquitetura e urbanismo traçou, ao longo desta sua trajetória intelectual, uma meta obsessiva e gigantesca que foi a construção deste minucioso inventário de iconografias cariocas.
Tudo o que fazia e pesquisava servia de pretexto para, em última instância, reunir, catalogar e analisar as iconografias relativas àquela tarefa momentânea na qual estava empenhado. Foi esta obstinação que garantiu, em grande parte, a concretização deste aparente trabalho de Sísifo que agora chega às livrarias. Infelizmente, o seu esforço hercúleo não foi suficiente para que conhecesse, em vida, esta primorosa Edição da Casa Jorge Editorial, sob o comando cuidadoso do historiador e crítico de arte Carlos Roberto Maciel Levy. Ferrez faleceu poucos meses antes da publicação de sua Opus Magna.
Bisneto de Zéphyrin Ferrez – escultor da Missão Artística Francesa que chegou ao Rio em 1816 -, neto de Marc Ferrez – mestre pioneiro da fotografia no Brasil -, Gilberto Ferrez não se furtou a seguir os caminhos artísticos traçados por seus nobres antepassados. Todavia, é curioso notar que a sua inclinação artística e sua obstinada trajetória como pesquisador e escritor, permaneceram latentes até aproximadamente os seus 40 anos de idade. A partir daí, e até a sua morte – em 23 de maio de 2000 -, aos 92 anos, foram mais de cinco décadas de inquietações e, sobretudo, muita produção.
Mas, esta "Iconografia do Rio", não se trata apenas de uma simples compilação de estampas cariocas dispersas pelo mundo afora em Instituições públicas ou coleções particulares. Ao contrário, como escreve o próprio Ferrez na Introdução do Catálogo, fosse apenas isto, seria uma tarefa que não demandaria grandes esforços intelectuais e nem tampouco seria inédita e pioneira em sua essência. Assim, a sua ambição era tão desmedida quanto aparentemente impossível de ser concretizada, mesmo para um homem dotado de uma cultura e erudição notórias. Isto porque Ferrez se propôs, desde o início, a levantar, organizar – em ordem cronológica – e, sobretudo, descrever e analisar as 4.494 estampas inventariadas. No seu ambicioso planejamento, e assim o fez na organização do catálogo, um registro completo deste inventário compunha-se de seis itens, a saber: 1) o ano no qual a obra foi executada; 2) nome do artista, sua nacionalidade e data de nascimento e de morte; 3) nome ou legenda da estampa; 4) breve descrição da mesma; 5) informações complementares e 6) coleção à qual pertence a obra e a respectiva localização.
Para tanto, percorreu arquivos, museus, coleções e bibliotecas no Brasil e no exterior (Londres, Paris, Lisboa, Nova Iorque, Viena), visitando os colecionadores e examinando in loco todo o material catalogado. Quando não era factível o exame do original existente, mandou executar fotografias e também contou com a boa vontade de alguns proprietários que lhe enviaram reproduções de suas coleções. Foi assim que conseguiu, com o apoio de instituições e de colecionadores da Austrália, Alemanha, Rússia e África do Sul, ampliar o seu feito e dar uma dimensão ainda inexistente para uma obra desta natureza no Brasil, que encontra poucas publicações análogas em outros países, conforme observa Maciel Levy.
Ferrez arrolou gravuras, litografias, xilogravuras, mapas, óleos, aquarelas e diversas estampas – muitas delas desconhecidas até por historiadores mais argutos – sobre o Rio de Janeiro, desde a sua fundação portuguesa – em 1565 – até o final do século XIX, quando estas formas de representação começaram a perder terreno para a fotografia.
A obra, composta por dois volumes e com uma refinada produção editorial, serve como fonte de consulta documental para historiadores, sociólogos, antropólogos, geógrafos, arquitetos, urbanistas e também, para todo aquele cidadão que, assim como Ferrez, seja um apaixonado por esta cidade. Deste modo, Ferrez construiu uma História Iconográfica do Rio de Janeiro, de seus espaços públicos e de sua gente que, em boa parte, supera muitos textos já escritos sobre a mesma. A sua motivação essencial na escolha das 4.494 iconografias constantes no livro, foi a de publicar aquelas que, sob o seu crivo de historiador competente, possuíssem um grande valor documental intrínseco para o conhecimento preciso da história da cidade, a despeito de algumas (poucas) não possuírem uma qualidade estética no mesmo patamar.
Para quem se interessa pela história e evolução urbana do Rio de Janeiro, esta obra, já se pode dizer a priori, é uma referência fundamental para a matéria. Se no Volume I, Ferrez catalogou e analisou as estampas desde as pioneiras de Cousin (1522-1594), Staden (1525-1576), Thevet (1502-1592) e Albernaz (15??-16??), passando por Froger (1676-1715), Massé (16??-17??), Alpoim (1698-1795), Julião (1740-1811) e Bradley (1758-1833), até os mais conhecidos – em função da abertura dos portos, após a chegada da Família Real Portuguesa ao Rio - como Debret (1768-1848), Rugendas (1802-1858) e Ender (1793-1875); no Volume II, o autor brindou seus leitores com 238 primorosas reproduções de algumas das mais representativas estampas inventariadas. Não há dúvida de que, com sua capacidade organizacional e com a sua análise crítica das 238 iconografias reproduzidas, Ferrez pavimentou um caminho outrora bastante árido para os pesquisadores, sobretudo no que se relaciona às iconografias executadas nos séculos XVI, XVII e XVIII, quando o Brasil ainda não estava aberto para o mundo, em função do Pacto Colonial.
Sem dúvida, esta "Iconografia do Rio de Janeiro", é o coroamento coerente e grandioso de sua vasta produção intelectual e de toda a sua vida. Se tomarmos como exemplo apenas duas de suas importantes publicações anteriores, como "O Velho Rio de Janeiro através das gravuras de Thomas Ender", de 1957, e o catálogo "A Praça XV de Novembro antigo Largo do Carmo", de 1978, já podemos detectar neles um certo leitmotiv que os integram agora nesta publicação póstuma.
Com efeito, como bem nota o próprio Ferrez, sobre o material coletado, "este rico acervo torna visível e compreensível o imenso labor do homem, drenando pântanos e lagoas, retificando rios e modificando o perfil da orla marítima, saneando baixadas, cortando e arrasando morros, tornando, enfim, a vida possível numa região onde a parte plana, enxuta, era quase inexistente." É imbuído deste espírito desbravador que o autor vai descortinando, paulatinamente, o processo de fundação, implantação e consolidação do Rio de Janeiro, numa sequência inefável de imagens que abordam temas como a arquitetura, os espaços públicos, a escravidão urbana, a natureza, os subúrbios, os transportes e enfim, todo um sistema de relações materiais e simbólicas que tornaram, desde os primórdios, tão complexa e encantadora esta Muito Leal e Heróica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Livro conta a história do rio de janeiro através da iconografia
Como se sabe, o território a partir do qual se desenvolveu a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, somente passou a ser de interesse para os portugueses, quando estes perceberam que a posse e o domínio destas terras estavam ameaçados pelos estrangeiros, notadamente os franceses – comandados por Villegagnon -, que aqui chegaram a fundar a célebre França Antártica (em 1555) que serviria de refúgio para os huguenotes perseguidos em França.
Assim, esta cidade nasceu, cresceu e ampliou as suas estruturas urbanas, ao longo de seus quase 436 anos, sob o constante embate pela conquista, posse, e domínio de sua ínfima área urbanizável. A urbe vingou e, ainda hoje, não parece equivocado dizer que – a despeito da imensa área de aterro, do arrasamento dos morros pioneiros, da canalização dos rios – continua sendo uma cidade apertada entre a montanha e o mar, e que o principal símbolo desta complexa urdidura em que se desenvolve o Rio de Janeiro, é o da resistência.
Desta forma, esta "Iconografia do Rio", de Gilberto Ferrez, revela nitidamente este processo evolutivo da cidade, desde os momentos de sua fundação até o final do século XIX, já no início da era republicana. Assim, desde a gravura (nº 5) do artilheiro alemão Hans Staden, intitulada "Combate na Baía do Rio de Janeiro" (1554), passando pelos famosos óleos sobre tela de Leandro Joaquim como a (nº 364) "Vista da Lagoa do Boqueirão, aqueduto da Carioca e igrejas da Lapa e Santa Teresa" (1790) até o óleo sobre tela (nº 4.276) de Hipólito Boaventura Caron, intitulado "Vista da Gamboa no Rio de Janeiro" (1882), percebemos com nitidez o quanto esta cidade sofreu diversas modificações e acréscimos, no intuito de tornar-se um sítio urbano viável para os seus resistentes habitantes.
[texto originalmente publicado no dia 27 de janeiro de 2001, no Jornal do Brasil]
sobre o autor
Antônio Agenor de Melo Barbosa é arquiteto, mestre em urbanismo pelo PROURB / FAU UFRJ, professor da FAU UFRJ e da Universidade Santa Úrsula