Desde Américo Vespuccio – que não viajou para o Novo Mundo para apoderar-se de terras nem catequizar indígenas –, continuou incessante o olhar surpreso e perscrutador dos europeus sobre as terras de América. Primeiro foi a visão realista do holandês Teodoro de Bry, denunciando as atrocidades da colonização hispânica – o Vaticano proibiu em sua época a circulação de sua belíssima coleção de gravuras –; depois veio o segundo descobrimento realizado pelo Barão de Humboldt que, com rigor científico, difundiu as particularidades e diferenças destas terras prometidas. No século XX, a paixão pelo paraíso tropical – seja o Caribe ou o Brasil –, a fascinação pelas culturas indígenas no eixo andino e a inusitada extensão dos pampas, motivou as visitas de antropólogos – Claude Levi-Strauss –, de artistas e poetas – Cendrars, Marinetti, Péret –; de escritores – Stefan Zweig –, de políticos – Clémenceau – e de arquitetos e urbanistas. Nos anos trinta se apaixonaram pelo Continente, Le Corbusier, Alberto Sartoris, Hannes Meyer, Werner Hegemann, Karl Brunner, J.C.N. Forestier e Alfred-Donat Agache. Já na Segunda Pós-guerra, outros críticos e projetista, mais ou menos identificados com o caminho seguido pela vanguarda local, também expressaram com veemência suas visões da América Latina e do Caribe, a partir de suas respectivas visitas: os italianos Enrico Tedeschi, Ernesto Rogers, Bruno Zevi, Gillo Dorfles, os irmãos Gasparini; o suiço Max Bill, os alemães Max Cetto, Mathias Goeritz e Edwin Walter Palm, entre outros.
Juntando-se à corte de admiradores destas terras, o arquiteto belga Jean François Lejeune organizou com grande paixão – e afrontando as inúmeras dificuldades de todo trabalho de equipe a nível internacional – a exposição e o livro Cruauté & Utopie. Villes et paisajes d´Amérique latine patrocinados pelo CIVA (Centre internacional pour a ville, l´architecture et le paysage) de Bruxelas, ocorrida na capital belga entre os meses de maio e outubro de 2003. Lejeune, formado na Bélgica, se radicou em Miami para ensinar e pesquisar na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Miami. Seus interesses foram sempre orientados para os processos urbanos e arquitetônicos da modernidade latino-americana, tendo realizado estudos sobre a proposta urbanística de Forestier em Havana e o desenvolvimento de Miami Beach, primeiro bairro “moderno” da Flórida. Portanto, ao convidar um grupo de especialistas daqui e de lá, para a elaboração da mostra e da publicação, centrou seu interesse em dois momentos expansivos da utopia latino-americana: o período colonial e as décadas dos trinta e dos cinqüenta, anos de gestação das vanguardas artísticas, arquitetônicas e urbanísticas. Iniciativa que obteve o apoio dos principais pesquisadores sobre estes temas, locais, europeus e norte-americanos: o francês Jacques Leenhardt; os espanhóis Eduardo Subirats e Carlos Baztán Lacasa; os belgas Christophe Pourtois e Hervé Hasquin; os norte-americanos Edward R. Burian, Rebecca E. Biron, Robert A. González, Carol Damián e Keith L. Eggener; o argentino Adrián Gorelik; o chileno Fernando Pérez Oyarzún; os brasileiros Carlos Eduardo Comas, Carlos Martins, Lauro Cavalcanti e Olívia de Oliveira; os mexicanos Carlos Fuentes e Víctor Jiménez; os venezuelanos María Teresa Novoa de Padrón e Enrique Larrañaga; o equatoriano Eduardo Báez e o ítalo-argentino Roberto Segre.
Ainda que a exposição tenha se chamado Cruauté & Utopie, estes dois termos não se expressaram simetricamente, predominando a visão da utopia. Já a montagem da exposição, realizada pelos argentinos residentes em Miami, Roberto Behar e Rosario Marquardt, ao identificar a mostra com uma livre interpretação das cores do arco-íris, criaram uma imagem festiva e risonha, associada ao policromatismo das vestimentas indígenas da América Central. Assim, a América está representada no rigor cartesiano dos traçados urbanos coloniais e ao mesmo tempo pela magia e pelo misticismo das imagens religiosas, que rompiam com o anonimato e a frieza da geometria de origem européia. Ritos, cânticos, procissões e carnavais humanizavam com seu sincretismo cultural e mestiçagem social, a vida cotidiana das cidades coloniais, gerando uma nova expressão da herança ocidental, transformada pelos usos e costumes da sociedade criolla, na qual os escassos índios sobreviventes fizeram perdurar seus mitos e suas crenças. Processo urbano pontual que todavia não alterava a magnificência da paisagem, cuja dimensão inusitada – parafraseando Alejo Carpentier –, tanto impressionou os artistas europeus que viajaram para a América e ilustraram as surpreendentes belezas naturais: foram os Rugendas, Schmidt, Taunay, Debret e outros.
O núcleo principal da exposição se centrou na visão das vanguardas brasileiras, mexicanas e venezuelanas, identificadas com alguns personagens sobressalentes de cada um destes países. Do Brasil, além da bela maquete do Ministério de Educação e Saúde, e documentos e plantas originais dos anos trinta – ilustrando o fervor de renovação que fez da arquitetura brasileira um paradigma da modernidade “regional” dos códigos do Movimento Moderno –, se destacou a obra paisagística de Burle Marx – estava estendido o incrível plano contendo o desenho do Aterro do Flamengo –; e a multifacetada produção de Lina Bo Bardi, lutadora incansável pela renovação expressiva da arquitetura paulista, mas também pelo necessário diálogo com as culturas populares e as tradições locais. O México privilegiou a figura de Juan O´Gorman e Luis Barragán; o primeiro, líder do racionalismo da linha dura nos anos trinta, mas logo convertido ao regionalismo – não crítico, como diria Kenneth Frampton – até o final da vida, que o fez habitar quase numa caverna, convivendo com os ícones e reproduções da arte asteca. O segundo, síntese do encontro entre o silêncio introvertido do espaço colonial e a abstração dos códigos do Movimento Moderno. Por último, Caracas, ficou identificada nas elaboradas maquetes da Cidade Universitária e os desenhos do auditório da Aula Magna projetada por Carlos Raúl Villanueva na década de cinqüenta, com a participação de Calder. Buenos Aires e Havana, estiveram presente em menor escala; cada uma com uma coleção de cartões postais dos anos trinta, que evidenciavam as mudanças ocorridas na passagem da cidade “clássica” para a cidade “moderna”.
A crueldade se resumiu a uma câmara obscura onde múltiplos televisores reproduziam imagens das dramáticas condições de vida da cidade de Tijuana, cenas tomadas de um filme de Chantan Akerman, From the other side, que mostram o angustiante fenômeno dos imigrantes mexicanos clandestinos nos Estados Unidos e a contraditória cultura kitsch existente nessa cidade de fronteira, documentada no ensaio escrito por Robert A. González. Mesmo considerando que Lejeune, Carlos Fuentes e Rebeca E. Biron tenham se referido às contradições sociais, econômicas e urbanas da América Latina, a crueldade da existência cotidiana de milhões de habitantes da região deveria estar mais presente. Carlos Fuentes, ao falar da significação do espelho como um mútuo olhar para a realidade – a partir da Europa e da própria América –, deveria ter deixado claro que é um espelho não brilhante e luminoso, mas sombrio e profundo como a caverna platônica, expressão, não só da Legenda Negra da conquista da América – a eliminação de dez milhões de índios, substituídos por outros tantos milhões de escravos –, mas também das contradições existentes nas megalópoles como México D.F., São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires, ou a “utópica” Brasília, já condenada pelas cidades satélites e pelas ocupações clandestinas de terras aonde se assentam as favelas.
Considero oportuno recordar o livro publicado pela editora Siglo XXI na década de setenta, América Latina, para verte mejor, com fotografias do italiano Paolo Gasparini e textos do escritor cubano Edmundo Desnoes, que apresentava uma realidade urbana e rural, na multiplicidade de signos e ícones arquitetônicos e urbanísticos, ainda pouco difundidos até hoje; ou então, mais recentemente por algumas fotos de Sebastião Salgado. Seria então necessária uma nova versão de Cruauté & Utopie, onde o fiel da balança penda para a crueldade, cada vez mais presente neste imprevisível e sombrio século XXI. Sem dúvida, a exposição não abriria com a cortina multicromática do arco-íris, mas com as imagens de Tupac Amarú esquartejado, a foto de Che Guevara assassinado na Bolívia – metáfora da Lição de Anatomia de Rembrandt –, as esparramadas Favelas no Rio de Janeiro e a extensão infinita da Cidade Nezahualcoyotl no México DF.sobre o autorRoberto Segre, arquiteto e crítico de arquitetura, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é atual coordenador do PROURB