O conjunto arquitetônico da Cidade Universitária de Caracas, obra do arquiteto venezuelano Carlos Raúl Villanueva, representa, com uma qualidade extra, uma grande parte dos mais altos ideiais e proposições do urbanismo, da arquitetura e da arte modernos. A Cidade Universitária de Caracas é a utopia moderna construída, representa o vínculo para alcançar um mundo ideal de perfeição para uma sociedade e um homem novos que haviam surgido no mundo ocidental graças às trascendentais mudanças filosóficas, sociais, tecnológicas e estéticas ocorridos nos séculos anteriores.
Neste conjunto Villanueva levou a cabo, assumindo um total compromisso com seu tempo e com uma grande complexidade, uma solução que pretende resolver, eficiente e funcionalmente, os problemas que se haviam apresentado nas cidades tradicionais, que propõe recuperar a relação perdida entre os espaços urbanos e a natureza, que está desenhada de acordo com a escala do homem, que incorpora e aproveita em seu funcionamento e em sua construção o desenvolvimento tecnológico de seu tempo com a introdução do automóvel e o uso do concreto armado. Às vezes propõe a realização de um mundo ideal de beleza e poesia, aonde as formas e estruturas expressam o espirito dos novos tempos, aonde se cria um novo espaço complexo, aberto, integrado e dinâmico e aonde as artes passam a formar parte essencial do lugar habitado pelos homens.
Na Cidade Universitária de Caracas Villanueva elaborou estes temas que caracterizam a modernidade arquitetônica, conseguindo, nesse sentido, uma das obras mais importantes de nosso século no âmbito internacional. Ao mesmo tempo, a Cidade Universitária de Caracas constitui uma interpretação moderna de nossas tradições arquitetônicas e urbanas coloniais e é uma solução exemplar para a arquitetura de nosso clima tropical.
Assim mesmo, o conjunto da Cidade Universitária de Caracas possui o valor histórico de representar, através de suas diferentes etapas e edificações, realizadas por Villanueva durante um período de mais de vinte anos, as mudanças que se sucederam durante este século do urbanismo e da arquitetura acadêmicos até a plena modernidade.
Temas-valores
Os temas desenvolvidos por Carlos Raúl Villanueva na Cidade Universitária de Caracas, pelos quais podemos considerá-la uma obra de altíssimos valores, tanto universais como locais, foram determinados estabelecendo as qualidades que podem ser inferidas a partir da análise da própria obra. Sua explicação se sustenta nos textos e obras da modernidade aonde foram expostas as idéias que posteriormente Villanueva levou a cabo, nos textos escritos por Villanueva, nos quais explicou suas aspirações e proposições.
Urbanismo. A cidade moderna
“Atualmente, o principal problema de todo arquiteto é o de domar a cidade e, ao fazê-lo, devolver ao homem a sua máxima criação cultural. Há, portanto, uma reciprocidade da importância urbana da arquitetura e a importância arquitetônica do urbanismo. Ambos representam aspectos opostos de uma só entidade. Considero ao arquiteto, e apenas ao arquiteto, como o responsável por todo o processo urbanístico, desde a obra isolada até a obra coletiva e a comunidade”.
C. R. Villanueva, Sibyl Moholy-Nagy, Caracas, 1999, p.173.
Urbanismo. Complexa organização funcional moderna
“A decomposição do fenômeno urbano em uma gama de funções (a partir das quatro famosas funções do CIAM: habitar, trabalhar, circular, cultivar o corpo e o espírito), que permanecem separadas, isoladas e sem conexão entre elas, como uma regra coerente e uma maneira de ver e analisar as coisas também esquemática, foi uma das características do urbanismo dessa época e que todavia hoje se aplica nos escritórios burocráticos e se ensina em muitas de nossas Escolas e Universidades”.
“A semelhante concepção é necessário contrapor uma visão mais ampla, mais aglutinante dessas funções. Uma visão que abarque todas as possíveis relações entre as partes, preservando, dentro da necessária complexidade, os valores tangíveis e intangíveis por elas reduzidas”.
C. R. Villanueva, O desenvolvimento e condição presente das cidades das Américas (1965), Caracas, 1980, p.15-16.
Tecnologia. Concreto armado. Estruturas escultóricas
“Agradam-me os materiais que por sua pobreza, por sua sinceridade plebéia, me permitem desafiar a estúpida vaidade do exibicionismo”.
“Entre eles me atrai particularmente o concreto armado, símbolo do progresso construtivo de todo um século, rugoso, dócil e forte como um elefante, monumental como a pedra, pobre como o tijolo”.
C. R. Villanueva, Reflexões pessoais (1965), Caracas, 1980, p. 80.
As formas complexas e abstratas
“Nós, os arquitetos, devemos muito aos artistas, pintores e escultores; constantemente têm aberto um mundo completamente novo para nossa ação; exploram os materiais e o espaço, revelam a cor, a linha e a forma”.
C. R. Villanueva, Tendências atuais da arquitetura (1963), Caracas, 1980, p. 54.
“Na atualidade nos encontramos em presença de um mundo novo das formas: existem muitas delas que havia sido impossível realizar com materiais e espírito tradicionais”.
C. R. Villanueva, Tendências atuais da arquitetura (1963), Caracas, 1980, p. 50.
O espaço. Dissolução dos limites entre interior e exterior
“Nasceu de fato um novo espaço, uma nova sensação espacial muito distinta em seu conteúdo, mais dinâmica, mais ativa e mais humana. Consegue-se evitar não apenas a forma puramente geométrica, pois tudo se dissolve agora, se adelgaça, se torna contínuo e transparente e sobretudo se une com outros espaços e outros volumes e outras aberturas, com uma riqueza de possibilidades jamais imaginada. Tudo se atravessa, se interpenetra de um modo fluído e penetrante, em uma gama rica e potente que expressa características próprias que são: elasticidade, movimento, continuidade e dinamismo”.
C. R. Villanueva, Tendências atuais da arquitetura (1963), Caracas, 1980, p. 47.
O espaço dinâmico. A quarta dimensão
“As mudanças introduzidas na imagem que se tinha do mundo físico foram modificando totalmente nosso conceito de estrutura espacial, mas foi realmente e em especial a revolução cubista que ensinou aos arquitetos o novo caminho aonde se chega a conceber um espaço em quatro dimensões e aonde o tempo justamente as representa”.
“Os arquitetos então substituindo a um espaço eminentemente estático, por outro essencialmente dinâmico. O espaço se conhece porque algo se move: o objeto ou o espectador e a caminhada fazem aparecer sob nossos olhos a diversidade dos acontecimentos. Consegue-se fazer desaparecer o sentido da fachada e o espectador se vê obrigado a mover-se em torno da arquitetura para compreendê-la, senti-la e saboreá-la: um novo espaço nasceu, não unicamente físico, mas abarcando todas as possibilidades humanas”.
C. R. Villanueva, Tendências atuais da arquitetura (1963), Caracas, 1980, p. 47-48.
A síntese das artes. O museu moderno
“Introduzir a obra pictórica ou escultórica dentro do marco arquitetônico significa atualmente evidenciar um claro desejo de assumir responsabilidades sociais. Faz falta repetir que o artista contemporâneo já não pode criar para si mesmo, em um mundo pessoal cuja compreensão está circunscrita a um número limitado de pessoas, ou que flutue no isolamento estéril da atuação individual?”
C. R. Villanueva, A síntese das artes, p. 8
O local. O clima
“Porque ao utilizar funcionalmente os materiais próprios, nossa arquitetura não foi concebida unicamente para o homem, mas também para um clima e uma luz muito definidos, realizando assim uma harmoniosa unidade com a paisagem que nos rodeia”.
C. R. Villanueva, Arquitetura colonial, Caracas, 1980, p. 74.
“Essa idéia constante que preside nossa arquitetura, de defender-se do sol, da chuva e da deslumbrante luz tropical, se reencontra no estudo das fachadas das casas coloniais, aonde os maciços predominam sobre os vãos e os múltiplos postigos de madeira das janelas permitem graduar a luz, favorecendo ao mesmo tempo a aeração”.
“Nas diferentes classes de persianas e gelosias de madeira, todas de inspiração oriental, executadas com inteligência e bom gosto, se sobressai especialmente a sabedoria dessa norma que satisfaz tanto ao coração como ao espírito”.
C. R. Villanueva, Arquitetura colonial, Caracas, 1980, p. 75.
A poesia
“A poesia está no coração dos homens: em uma época conduzida por imperativos econômicos se deve, através de soluções de austeridade que se impõem, manter firmemente os valores poéticos da arquitetura e lutar com força contra uma tendência de produzir formas puramente utilitárias; a arquitetura deve existir em função desse conteúdo poético e é unicamente aproximando-se desse segundo mundo como uma totalidade chega a alcançar as realidades verdadeiras”.
C. R. Villanueva, A arquitetura francesa (1965), Caracas, 1980, p. 87.
nota biográfica
Carlos Raúl Villanueva nasce em Londres, em 30 de maio de 1900. Gradua-se arquiteto em 1928 na Escola de Belas Artes de Paris. Regressa para a Venezuela em 1929 e começa a trabalhar no Ministério de Obras Públicas como Diretor de Edificações e Obras de Ornamento até 1939.
É professor fundador da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Central da Venezuela, criada em 13 de outubro de 1941.
Entre suas obras mais destacadas se encontram suas casas de habitação e veraneio: Caoma e Sotavento (1951-52), a Reurbanização do Silêncio (1941-45) e a Urbanização 23 de Janeiro (1955-57), a Galeria de Arte Nacional, o Museu de Ciências Naturais (1935-39) e o Pavilhão para a Expo 67 de Montreal (1967).
Pela Cidade Universitária de Caracas, começada em 1944, recebe, em 1963, o Prêmio Nacional de Arquitetura. Carlos Raúl Villanueva falece em Caracas em 16 de Agosto de 1975.
notas
1
Recopilación de algunas de las citas de textos y conferencias de Villanueva que utilicé para elaborar la Justificación que presentamos a la UNESCO para pedir la declaratoria de patrimonio mundial. Publicado originalmente no website Kalathos.
sobre o autor
María Fernanda Jaua é arquiteta, professora de História da Arquitetura Moderna na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Central da Venezuela e coordenadora do “Registro de Arquitetura da Cidade Universitária de Caracas” realizado para sua postulação junto à UNESCO para se tornar Patrimônio Mundial, orientada em seu doutorado pelo arquiteto Helio Piñón na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, Universidade Politécnica da Catalunha