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architexts ISSN 1809-6298


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Tendo 1984, de George Orwell, publicado em 1949, como pano de fundo, o Show de Truman é uma parábola sobre o totalitarismo, aonde a reescrita da história e a manipulação da memória moldam a ideologia e permitem a dominação


how to quote

MOURA, Rosa. A cidade vigiada. The Truman Show, de Peter Weir, 1998. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 053.02, Vitruvius, out. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.053/534>.

O ser vigiado

O Show de Truman, inevitavelmente, remete a 1984, de George Orwell, publicado em 1949, que é uma parábola sobre o totalitarismo (fábula ao regime soviético de então ou antecipação ao império norte-americano de agora?). O Grande Irmão, onipresente, observa em todos os momentos, vigia os atos, reflexões, submete, impede a individualidade. Como Christof, (re)escreve a história e manipula a memória, cria o espaço ao qual atem o personagem, molda a ideologia, faz prevalecer seu poder de dominação.

Essa utopia negativa há muito tempo se tornou realidade. Desde 1984 até nossos dias foi se estruturando um mundo apoiado em signos e na sutileza de um discurso hegemônico, massificado sob compulsão ao consumo. Vive-se “hoje no mais totalitário de todos os sistemas, cujo centro é formado pelo próprio Ocidente democrático. (...) A voz do Grande Irmão é a voz do mercado mundial anônimo; e a ‘polícia do pensamento’ das relações democráticas de concorrência funciona de forma muito mais refinada do que todas as polícias secretas” (2).

Na leitura das parábolas orwellianas podemos nos reconhecer a nós mesmos como os prisioneiros desse sistema amadurecido. Pequenos Trumans, em menor evidência, mas cativos do mercado, seduzidos pelo consumo subliminarmente imposto pelo merchandising do reality show (3), ao qual assistimos como substituto de nosso próprio cotidiano.

Truman rechaça a farsa, ao tomar conhecimento dela. Mas, a sociedade contemporânea, se entrega à manipulação por um poder central, que elabora o “pensamento” do indivíduo e recria o imaginário coletivo. Então, consente e até deseja ser observada. Celebridade é ser visto, independente da circunstância. O objeto do desejo é estar no centro da cena, o que torna a sociedade de controle difuso em que “a exposição da privacidade é um valor, não uma tortura.” (4).

Interpassivos (5), destituídos do espaço enquanto esfera pública, amendrontados com relação ao outro, despolitizados e invadidos na privacidade. Protagonistas ou figurantes? Poder e dominação, simulação e virtualismo, técnica e exclusão. Eis os elementos que nos levam a uma cidade vigiada.

Os olhos do poder

De forma similar a Truman, o exercício do poder e da dominação sobre as pessoas, exacerbado, faz-se circular por canais cada vez mais sutis. Captura os indivíduos, sua ação cotidiana, seus corpos. Onipresente nos objetos construídos, olhares vigilantes imiscuem-se nas mais íntimas formas de relações sociais.

A partir do olho imperceptível de lentes e chips, a sociedade é constantemente vigiada. Tecnologias sem fio – bina, celular, câmeras, células óticas, sensores eletrônicos de digitais, da íris, rastreadores, satélites – significam tanto novas liberdades como nova escravidão. Nas ruas, lojas, supermercados, bancos, caixas eletrônicos, portarias, elevadores, deixou de ser constrangedora a presença disseminada do aviso simpático e ao mesmo tempo ameaçador: Sorria. Você está sendo filmado!

Uma eterna vigilância paira sobre edificações, equipamentos, veículos em movimento, e não só serve à segurança como ao controle. Da “inteligência geográfica”, que georreferencia objetos urbanos e indicadores pessoais, até sistemas contendo a seqüência genética dos indivíduos estarão à disposição, não só de órgãos de segurança, como do mercado de trabalho e de consumo.

A cidade é aprisionada, intermediada pela tela. Tecnologias de informação e comunicação instalam o presente permanente (sem memória coletiva), a ubiqüidade, o tempo real na irrealidade do espaço virtual. O espaço público das relações interpessoais cede lugar ao espaço privatizado, mediado por máquinas. O diálogo passa a ser teclado ou monitorado: instaura-se uma conversação muda, ou, se sonora, sem alma, sem tato, sem o calor da presença. A abertura planetária cria o isolamento dos indivíduos, cativos diante da tela, num processo de comunicação solitária (6).

A cidade se superexpõe. Entrega-se à invasão imperceptível do interior dos espaços públicos e privados, e a mutação dos papéis. A instantaneidade dos meios de comunicação permite uma sucessão de eventos espetacularizados, banalizados, expostos a uma sociedade que a tudo vê, entretanto como espectadora, irresponsabilizada: a queda das Torres Gêmeas, no 11 de setembro, foi o mais bem acabado “efeito especial” jamais visto ao vivo pela maioria da população mundial (7).

O usuário, em permanentes deslocamentos, e não o habitante, marca a cidade. A arquitetura tem de adaptar-se a interlocutores em trânsito, a transeuntes desconhecidos que impõem o risco. Como suporte, apóia-se na tecnologia da invasão: “equipada com objetos de controle, a porta da cidade deixa de ser o gate, o arco do triunfo, e passa a se constituir de ‘sistemas de audiência eletrônicos’, ‘pórticos magnéticos’, que interceptam o suspeito no trajeto” (8). Bancos de dados sucedem aos portais e as redes não se inscrevem no tecido construído, mas na interface homem/máquina. A cidade desprovida de portas encontra alternativas invisíveis para a infinidade de rupturas. Serve-se de fechamentos, certamente menos aparentes que as portas da antiguidade, mas não menos limitantes e segregativas (9).

No ideal de Jeremy Bertham, a visibilidade deve ser organizada inteiramente em torno de um olhar dominador e vigilante. Uma visibilidade universal, agindo em proveito de um poder rigoroso e meticuloso. O Panopticom, editado no final do século XVIII (10), é um sistema ótico inovador, que permitia exercer bem e facilmente o poder. O modelo disciplinar do “panoptismo”, capturado por 1984, de Orwell, persiste e se aperfeiçoa nos dias de hoje, com seu poder vigilante e coercitivo. “Não é preciso mais confinar ninguém, já estamos numa prisão sem grades, virtual (...)” (11).

A cidade simulacro

Concentração e objetos construídos dão materialidade e deixam perpassar os olhos do poder. Na cidade, a arte de planejar, organizar, gerir, produz espaços que moldam moradores sob interesse de um Grande Irmão. Verdadeiros cenários que aprisionam e sintetizam a realidade: como revela Marlon, “nada do que se vê no Show (de Truman) é falso; é meramente controlado.”

A cidade prevista, e que prevê, cria um “patriotismo” (12) e uma sensação de bem estar, que a torna única, insubstituível, isenta a críticas. Essa produção artificial do espaço, numa ordenação da cidade mediada pela interação criador/criatura, constrói o citadino, despolitizado do significado de cidadania, naturalmente pacífico, porém exigente, instituído de aguçado senso estético, ávido pela modernização e revitalização das formas urbanas, e dotado de um inabalável amor cívico pela sua própria cidade (13). “Enquanto estes (os cidadãos) se dividiriam quanto a visões ideológicas, projetos de sociedade e prioridades nacionais, os citadinos estariam acima (ou além) destas pugnas” (14).

Na cidade tornada palco, o citadino se destitui da capacidade criadora e transformadora, assumindo o perfil de consumidor do produto urbanismo, desvinculando-se de seu papel político enquanto agente da produção do espaço e da cidadania. Um citadino-objeto, associado à imagem da cidade sujeito, como um filho obediente, no colo de uma mãe dedicada.

Essa cidade, concebida para que tudo funcione equilibradamente, é apenas um simulacro no qual todos estão felizes, integrados, adaptados, cumprindo seus papéis determinados, sem imprevistos ou sobressaltos (15).

Resgatando de Baudrillard as idéias de “simulacro” e “hiper-realidade”, Soja discute a recriação das cidades, a partir de uma “cópia exata de um original que já não existe – ou talvez nunca tenha existido: ele se adianta ao processo mais simples da simulação para criar farsas e fantasias ‘reais’ que funcionam não apenas como imagens e ícones, mas como parte de nossa realidade material” (16). Verdadeiras “simcities” (17); perfeitas “disneylândias” (18). A “cidade simulacro” se faz marcar pelo “crescente poder político e social das simulações do real como substitutos lógicos e comportamentais para eventos e condições materiais reais” implicando “uma mudança radical no imaginário urbano, nas maneiras pelas quais relacionamos nossas imagens do real com a própria realidade” (19).

A construção de tal simulacro se dá a partir da produção de um verdadeiro e cotidiano espetáculo (20), no qual os cidadãos, transformados em consumidores do tema proposto, tornam-se seus atores figurantes. A cidade é reinventada (21), tematizada (22), commoditizada (23), iconificada pelo uso abusivo do city marketing, que transfigura a organização original e fixa novos valores diretamente relacionados com o consumo imposto pela ideologia dominante (24). Desconstrói as possibilidades de participação política e elimina os pressupostos que permitiriam a gestão democrática do espaço urbano.

Seahaven, Pleasantville (25) ou Disneylândia se multiplicam enquanto cidades planejadas/modelos de cidades, configurando uma imagem de equilíbrio e a materialização do consumo. Abusam da realidade virtual, da simulação e do mascaramento das assimetrias de poder, criando no imaginário coletivo a fantasia de uma cidade segura, civilizada, asséptica. Simples parques temáticos ou hiper-realidades concretas, baseiam-se em redes industriais de serviços, articulando a mídia, o capital imobiliário, o entretenimento, em uma cultura pública do consumo de um espaço de qualidade (26). Multiplicam-se também enquanto partes da cidade, no formato de grandes condomínios comerciais e residenciais auto-suficientes, shopping centres, espaços multiplex culturais e de lazer, grandes áreas revitalizadas, gentrificadas, business district centres ancorados por corporações comerciais ou financeiras. Entregam-se a não-lugares que se replicam em todas as geografias, pautados em um sistema de ações com intencionalidades globais que modificam a paisagem e estrangulam os hábitos – MacDonalds, Blockbuster, Wal Mart, Alphaville são os símbolos mais bem acabados do processo. Traços originais do lugar são preservados apenas como cópias mal elaboradas de uma memória apagada. Em substituição, são criados ícones urbanos que se apropriam da história, outorgam valor ao solo e à cidade, segregando populações insolváveis e inserindo a urbs num mercado mundial de alta competitividade.

Tais espaços simulacros são mistos de cultura visual, controle espacial e administração privada que alimentam o desenvolvimento da cidade e encaminham o poder local para modelos público-privados de expansão de negócios. Indústrias do imaginário, na qual todos obedecem sorridentes a uma engrenagem em que o trabalho comparece disfarçado de animação (27), ou em que a competência técnica projeta num cad a cidade do pensamento hegemônico, tornada “ideal” para todos os segmentos.

A cidade simulada para a perfeição enclausura, afasta a realidade da produção imperfeita do espaço e do cidadão. Omite as contradições inerentes ao espaço e à sociedade. Exorcisa a segregação (Baudrillard) num postiço mundo da sociabilidade cordial, por assim dizer ficcionalizada que, sob a fachada de um splendid new world, escamoteia o lado sombrio da violência, da pobreza e do trabalho precarizado (28).

Mais perfeita é a cidade – portanto mais cercada –, mais se tornam agudas as suas contradições. A cidade se torna cidadela.

A cidade cidadela

A cidade protagonista do desenvolvimento se apóia no modo produtivista para, incorporando os recursos da técnica, construir sua modernidade. Velocidade e inteligência são atributos indispensáveis aos novos equipamentos urbanos. Atributos, porém, que fazem uma modernidade incompleta, que superpõe traços de opulência, devido à pujança econômica e as expressões materiais, a traços de desfalecimento, graças ao atraso das estruturas sociais e políticas na qual se insere (29); ou uma modernização inconclusa, limitada em termos da cidadania política e social (30). Em tal cidade exclusão e segregação tornam-se naturalizadas e prevalece o estado da exceção.

O exercício de controle sobre o espaço urbano se aperfeiçoa e se expressa na arquitetura do medo. Barreiras físicas e de vigilância – muros, grades, guaritas, cercas elétricas, alarmes, sistemas de monitoramento, leitores infra-vermelho – aperfeiçoam e diversificam a cidade carcerária, de Foucault, fazendo emergir a cidade-prisão, lugar em que a polícia substituiu a polis (31). Pouco diferente da cidade cenário que, mesmo de papel, enclausura, impede que Truman navegue para a liberdade.

A cidade é produzida para um segmento, não para o todo. Incluídos e excluídos passam a disputar o espaço e os eventos, postos lado a lado. Ao mesmo tempo em que usos voltados aos segmentos de média e alta renda invadem as já adensadas periferias carentes, concorrendo com loteamentos baratos parcelas de solo ainda disponíveis, a ocupação pobre cada vez mais adentra as áreas nobres, preenchendo ilegalmente os interstícios possíveis.

Nesse processo de apropriação, a cidade se torna violenta. O poder e a propriedade que já se apartaram da miséria com cercas invisíveis, passam a se proteger em fortificações com acesso controlado por seguranças armados, constituindo enclaves (32), comunidades fechadas, e colocam em evidência o fenômeno da blindagem de veículos e edificações, criando espaços invioláveis, autênticos cofres-fortes, que dão sensação de proteção a uma minoria iludida de que, dessa forma, “sobreviverá, encouraçada, à barbárie social que a cerca”. Os simulacros materializados “nos condomínios fechados, shopping centers, centros culturais, edifícios ‘inteligentes’ são os novos guetos pós-modernos da minoria incluída nos negócios locais das empresas transnacionais” (33). Tais condomínios e centros comerciais, controlados por regras de admissão e exclusão, inibem a passagem e a convivência democrática, antes garantida por ruas abertas, restringindo o direito da cidadania.

Noutro extremo, os já “guetificados” espaços da pobreza – enclaves também cercados, vigiados, protegidos, sob ordens de controles cada vez mais inconcebíveis, alvos de propostas cínicas (34) – se reproduzem nos “morros”, nas “vilas” e “jardins” das periferias, nas ocupações dos espaços públicos centrais, logradouros, pontes e vigas de viadutos. Territorialidades onde os números fatais da violência crescem com o tráfico, a criminalidade, a miséria, com a não-submissão à lei do silêncio.

A ameaça explícita da violência desses redutos constrange a cidadania: ao se “proteger”, a sociedade ameaça. A metáfora de Virilio de uma cidade formada por uma elite que viverá em bunkers e por miseráveis que vão atacá-la (35) é simplista diante dos imbricados embates cotidianos e dos comandos territorializados que se multiplicam.

A ostentação da cidade hegemônica, com direitos e lugares, é uma agressão à cidade dos não-cidadãos. A arquitetura da proteção, fruto da exclusão explícita, recria as fachadas e as funções do edifício, abre acessos privados aos condomínios fechados e entre centros comerciais, designs que transformam espaços públicos historicamente heterogêneos em passarelas isoladas da “tensão da rua”, negando “as expressões espontâneas e inesperadas da vida”, evitando o “confronto com a realidade” (36). “A cidade, de lugar da hospitalidade, torna-se inóspita ao acolhimento do outro e cristaliza-se na cidadela, que é lugar fortificado onde só se reconhece o mesmo.” (37)

O temor da cidade imperfeita, insegura, torna a casa cela. O contato com o mundo passa a ser mais e mais mediado pela tela que, ao mesmo tempo que entretém, atualiza fatos sobre os perigos da rua. O reality show recria, dessa forma, a cotidianeidade abdicada pelo medo; e o olhar eletrônico desloca-se do debate e do conflito coletivo para colocar em destaque o conflito individual, absorvido pela passividade dos citadinos em viver seu cotidiano projetado nesse show da vida.

Desigualdade e dominação expressas nas condições de vida e de poder se complexificam. Áreas nobres e pobres, cidade legal e cidade ilegal foram contraposições de imagens que no passado caracterizaram uma aparente dualidade do espaço urbano. O desenho pós-moderno expõe, sem subterfúgios, um único ambiente “promíscuo”, perfeitamente ajustado à sua lógica de produção. Privilégios se entrecruzam com privação – áreas “luminosas”, inseridas na dinâmica resultante da técnica, da velocidade, das redes mesclam-se a áreas “opacas”, imersas em “tempos lentos” (38), nas quais a imobilidade das pessoas leva a cidade a se tornar tal conjunto de guetos e transforma sua fragmentação em desintegração (39). “Guetos” que, longe do sentido clássico, representam a exclusão que surge da mescla entre a pauperização e o racismo; cidadelas, como “feudos” em que os ricos se escondem do resto da sociedade (40).

A cidade fragmentada em territorialidades afronta e recua, provoca e protege-se, enclausura-se em espaços vigiados; ao mesmo tempo vigia.

Vigiar a exceção

Diferentemente do espaço delimitado do cenário, no qual há pleno controle das contradições programadas na ficção, o espaço real, vivido, deixado “ao quase exclusivo jogo do mercado, (...) consagra desigualdades e injustiças e termina por ser, em sua maior parte, um espaço sem cidadãos” (41). De cidadão a consumidor, o citadino, induzido pelas vitrines do desejo redecoradas pelos ares da globalização, desencadeia uma ordem de violência onipresente na contínua dissolução da vida social. O apelo ao consumo é inexorável e intangível para as maiorias, o que provoca o confronto e aumenta a tensão urbana.

Um estado de exceção se perpetua nas relações sociais: do silêncio da ditadura política à submissão dos mandos do mercado. A flexibilização do trabalho torna a informalidade regra, o emprego incerto e o futuro imprevisível; a financeirização dos orçamentos públicos retira a autonomia dos estados, e as políticas sociais relegam o projeto de mudar a distribuição de renda transformando-se em “antipolíticas de funcionalização da pobreza” “As cidades são os lugares por excelência dessas exceções” (42).

Crescentes hordas de excluídos assustam, são uma ameaça ao conforto dos que usufruem a modernidade urbana. Na sociedade sem cidadania, as classes ditas “subalternas são e carregam os estigmas da suspeita, da culpa, da incriminação permanente” (43). O outro tornado inimigo legitima o controle indiscriminado, fazendo romper a possibilidade da cidade como o espaço da produção de relações. “A morte da polis é (pois) a morte da política e a negação da negação: todo o espaço público deve ser privatizado, deve estar sob o olhar panóptico, porque o perigo é o público. (...) Não há mais política: há tecnicidades e dispositivos foucaultianos que se impõem com a lei da necessidade. Adequamos nosso discurso para reconhecer a ‘realidade’e em nome dela, planejar a exceção” (44).

Exacerbados os riscos, desviadas as formas de enfrentamento das fontes do perigo e canalizadas para alvos errados. Pobres, negros, nordestinos, árabes, muçulmanos. “Quando a complexidade da situação é descartada, fica fácil apontar para aquilo que está mais à mão como sendo a causa das incertezas e ansiedades modernas” (45).

Os pactos de coexistência que fizeram da cidade um lugar de sociabilidade, mesmo que estreitamente vigiada, caem no vazio. O equilíbrio entre a ordem e a desordem dá lugar a uma “desordem armada”; a cidade do encontro e da convivência se converte no lugar do enfrentamento e da defesa contra o outro. Nem mesmo a sobrevivência está mais assegurada (46).

Como desculpa para conter a avalanche da violência e da criminalidade, a policialização da sociedade incita uma guerra civil mal disfarçada. A aglomeração se torna frágil, ameaçada, e se coloca em permanente estado de vigília. Na esfera mundo, emerge a “metropolítica do terror” (47).

Hiperpotências são ridicularizadas sob a novidade da ameaça inesperada que surpreende a velocidade absoluta dos mísseis, dos exércitos e dos serviços de informação. A sincronização das emoções sentidas em escala mundial, viabilizada pela informação/comunicação, no lugar de fazer emergir uma democracia mundial, oferece elementos ao terrorismo, que joga com a instauração do pânico mundial.

Acuados diante do inimigo imprevisto, estamos assistindo a uma “metamorfose dos conflitos”. A cidade aperfeiçoa seus métodos de vigilância; os olhos do poder afinam o foco e disseminam os alvos. Ninguém mais está salvo, afinal, o “exterminador está entre nós” (48).

O ser libertado

O ser vigiado enfrenta o “diálogo” com o “Grande Irmão”: Christof tenta convencer Truman a permanecer na cidade, usufruir Seahaven que é um “modelo de mundo”.

Mesmo assim, Truman decide. Adentra o escuro oferecido por uma porta que o liberta de um mundo previsível.

A sociedade ao mesmo tempo em que se aprisiona, assiste de suas celas/cidadelas a libertação do personagem. Torce por ela.

Mas se reforça em seu aprisionamento, consumindo o produto recomendado pelo merchandising do reality show. Como em 1984, o sinistro já não é tanto a coerção externa, mas muito mais a interiorização dessa coerção (49).

Assim, mal liberto Truman de seu espaço-simulacro, a audiência busca saber o que está passando em outro canal.

notas

1
Texto apresentado no Ciclo Cinemacidade – PUCPR, maio 2004.

2
KURZ, Robert. Parábolas do meio-irmão. Folha de São Paulo, Caderno Mais! (Orwell reloaded), 01/07/2003, p. 15.

3
Esse tipo de produção, disseminado mundialmente, invadiu a TV brasileira muito recentemente. Embora a maior audiência recaia sobre o Big Brother Brasil, enquadram neste tipo de produção nada menos de 26 programas baseados na idéia (SAITO, Bruno Yutaka. Trans TV. Folha de São Paulo, caderno Ilustrada. São Paulo, 09/05/2004, p. E10), grande parte sustentados na perspectiva da “metamorfose”, e não apenas do “voyerismo”. São programas que realizam sonhos de mudança de guarda roupa, de decoração, de jardinagem, e até mesmo de perfil ou de corpo (como Tudo é Possível, da GNT; Extreme Makeover, da Sony, e vários outros, muitos deles concentrados na programação do canal fechado People and Arts). O modelo encaminha-se para reproduzir-se enquanto reality novela (MATTOS, Laura. Globo engaveta “reality novela”. Folha de São Paulo, 16/05/2004, p. E3.) ou ainda games de relacionamentos pessoais, como propõe projeto da Jynx Playware (de Recife), cujo desafio é organizar um roteiro, criar personagens e situações que garantam audiência. Um misto do The Sims e do Big Brother Brasil, provisoriamente chamado de The Truman Show (ASSIS, Diego. “The Sims” e “BBB” convergem em Recife. Folha de São Paulo, caderno Ilustrada. São Paulo, 30/04/2004, p. E3). Um dos fatores de sucesso do modelo está no retorno ao mercado: pesquisa comparativa sobre merchandising em reality show e novela apontam que são mais elevadas as taxas de retenção de propagandas e de recall (lembrança sem estímulo de marca) para o primeiro. Comportamento que pode ser justificado porque, nas novelas, “o merchandising se perde na ficção, fica camuflado” (CASTRO, Diego. BBB é mais eficiente do que ‘Celebridade’. Folha de São Paulo. São Paulo, 24/04/2004, p. E8).

4
BENTES, Ivana. “1984” em 2003. Folha de São Paulo, Caderno Mais! (Orwell reloaded). São Paulo, 01/07/2003, p. 7.

5
ZIZEK, Slavoj. A risada enlatada ou o retorno dos oprimidos. Folha de São Paulo, caderno Mais! (Orwell reloaded). São Paulo, 01/07/2003, p. 16-17.

6
VIRILIO, Paul. A cidade superexposta. Espaço e debates, n. 33, ano XI. São Paulo, Neru, 1991, p. 10-17.

7
Continuando o espetáculo, a decapitação do civil americano no Iraque penetrou mídias e telas em todo o mundo, como uma ficção, uma banalização da violência, uma imitação de mau gosto de cenas de Tarantino.

8
VIRILIO, Paul. Op. cit., p. 11.

9
VIRILIO, Paul. Op. cit.

10
Segundo Foucault, “o princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção periférica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, dando para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Devido ao efeito de contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia.” (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 210).

11
BENTES, Ivana. Op. cit., p. 7.

12
VAINER, C. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000.

13
MOURA, Rosa; KORNIN, Thaís. (Des)construindo o discurso eleitoral: o primeiro turno das eleições municipais majoritárias em Curitiba no ano 2000. Revista de Ciência Política, n.16. Curitiba, jun. 2001, p. 67-95.

14
VAINER, Carlos. Op. cit., p. 96.

15
A imagem produzida de bem-estar não revela o interior da cidade, na qual os conflitos não se restringem às entranhas das casas, mas encerram nelas os confrontos da cotidianidade. A seqüência inicial de Beleza Americana é emblemática desse mascaramento: o zoom a partir da imagem aérea de uma cidade visivelmente organizada, tranqüila, com ruas limpas, arborizadas, edificações de boa qualidade, terraços, jardins, portas que se abrem para interiores bem arrumados, bem servidos, habitados por famílias completas, padrão, mas que, ao serem penetrados, se decompõem em rupturas, reveladoras da perversa e inconsistente farsa das relações de dominação estabelecidas entre as pessoas, e destas com a sociedade como um todo.

16
SOJA, Edward W. O desenvolvimento metropolitano pós-moderno nos EUA: virando Los Angeles pelo avesso. In: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia; SILVEIRA, Maria Laura. (org.) Território: globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/ANPUR, 1994, p. 166.

17
SOJA, Edward W. Postmetropolis. Critical studies of cities and regions. Oxford: Blackwell Publishing, 2002. Ver também SOJA, E. W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1993.

18
SORKIN, Michael. See you in Disneyland. In: FAINSTEIN, Susan; CAMPBELL, Scott. (Eds.). Readings in urban theory. Oxford, Blackwell, 1996.

19
SOJA, Edward W. Op. cit. (1994), p. 165-166.

20
SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó, Argos Ed. Universitária, 2003.

21
SÁNCHEZ, Fernanda. Op. cit.

22
SORKIN, Michael. Op. cit.

23
IRAZÁBAL, Clara E. “Curitiba and Portland: architecture, city marketing, and urban governance in the era of globalization”. Tese de Doutorado. University of California, Berkeley, 2002.

24
SOJA, Edward W. Op. cit., 1994; SÁNCHEZ, Fernanda. Cidade Espetáculo: política, planejamento e city marketing. Curitiba, Palavra, 1997.

25
Filme de Gary Ross (1998), no qual dois jovens dos anos 90 são transportados, via tela, à ficção dos seriados dos anos 50, rompendo o equilíbrio característico da casa, da família e da cidade. Na medida em que os personagens despertam para o novo, e a aparente tranqüilidade das relações cede lugar ao conflito, as cenas passam de preto e branco para cores. O título foi traduzido para o português como “A vida em preto e branco”.

26
ZUKIN, Sharon. Aprendendo com Disney World. Espaço e Debates. Revista de Estudos Regionais e Urbanos. NERU, v. 23, n. 43-44. São Paulo, jan./dez. 2003, p. 11-27.

27
ZUKIN, Sharon. Op. cit.

28
ARANTES, Otília .B. F. Berlim reconquistada. Falsa mistura e outras miragens. Espaço e Debates. Revista de Estudos Regionais e Urbanos, v.23, n.43-44. São Paulo, NERU, jan./dez. 2003, p. 28-50.

29
SANTOS, Milton. Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo, Nobel, 1990.

30
DUHAU, Emilio. Las metrópolis latinoamericanas en el siglo XXI : de la modernidad inconclusa a la crisis del espacio público. Cadernos IPPUR, ano XV, n. 1. Rio de Janeiro, 2001, p. 41-68.

31
SOJA, Edward W. Op. cit.

32
Os Estados Unidos são o exemplo do que pode ser considerado uma “nação de enclaves”. Nas últimas décadas, o mercado imobiliário norte-americano produziu um amplo conjunto de comunidades fechadas – distritos centrais de negócios, guetos raciais, de renda, enclaves de elite, pontuados nas periferias por enclaves comerciais (malls e outlets) – principalmente impulsionadas pelo automóvel particular (apenas 10% dos domicílios americanos não possuem automóvel) e unidas por auto-estradas, produzindo desperdícios de recursos, poluição, alienação social e a destruição humana, que acompanham a desigualdade estrutural (ANGOTTI, Thomas. The real estate market in the United States: progressive strategies. Encontro Intenacional Democracia, Igualdade e Qualidade de Vida. O desafio para as cidades do século XXI. Porto Alegre, SCPRS/UFRGS/IPPUR/FAUUSP/Planners Network, 1999).

33
ARANTES, Paulo. Cidades blindadas. Correio da Cidadania. www.correiodacidadania.com.br (Acesso em 15/04/2004).

34
WISNIK, Guillherme. O muro de cinismo da Rocinha. Correio da Cidadania. www.correiodacidadania.com.br (Acesso em 15/04/2004).

35
VIRILIO, Paul. A catástrofe urbana. Folha de São Paulo, Caderno Mais! (entrevista). São Paulo, 24/08/1997.

36
GOLDSMITH, William W. Resisting the reality of race: land use, social justice and the metropolitan economy. Encontro Internacional Democracia, Igualdade e Qualidade de Vida. O desafio para as cidades do século XXI. Porto Alegre, SCPRS/UFRGS/IPPUR/FAUUSP/ Planners Network, 1999.

37
PECHMAN, Robert Moses. O mel e o fel da cidade. Lendo folhetins e romances em busca de alguma moral urbana. Espaço e Debates. Revista de Estudos Regionais e Urbanos. NERU, v. 23, n. 43-44. São Paulo, jan./dez. 2003, p. 71-78.

38
SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo, Hucitec, 1996.

39
SANTOS, Milton. Op. cit. (1990).

40
MARCUSE, Peter. Urbanista se assusta com ‘feudos’ de SP. Entrevista a Cassiano Elek Machado. Folha de São Paulo, caderno Cotidiano. São Paulo, 7/07/1998, p. 6.

41
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo, Nobel, 1987, p. 43.

42
OLIVEIRA, Francisco de. O Estado e a exceção ou o Estado de exceção? Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Anpur, v. 5, n. 1, maio 2003, p. 11.

43
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 57.

44
OLIVEIRA, Francisco de. Op. cit., p. 13.

45
BAUMAN, Zygmunt. A sociedade líquida. Entrevista de Zygmunt Bauman a Maria Lúcia Pallares-Burke. Folha de São Paulo, Caderno Mais! 19/10/2003, p. 6.

46
PECHMAN, Robert Moses. Op. cit.

47
VIRILIO, Paul. ‘Pânico frio’ substitui Guerra Fria. Entrevista a Fernando Eichenberg. Folha de São Paulo, 04/04/2004, p. A24.

48
VIRILIO, Paul. Op. cit. (2004), p. A24.

49
KURZ, Robert. Op. cit.

sobre o autor

Rosa Moura é geógrafa do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – IPARDES.

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