No dia 6 de outubro de 2004, o IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil – lançou o livro e inaugurou a exposição sobre a obra do arquiteto paulista João Walter Toscano. Em tempos de eleição e de muitos discursos sobre a cidade e pouca reflexão e quase nenhuma arquitetura, visitar a obra de Toscano é um presente raro. Mais ainda: ler os textos que buscam introduzir os não iniciados ao seu trabalho que figuram no bem documentado catálogo, organizado por Rosa Artigas, é certeza de momentos de inteligência e prazer intelectual.
Fernando Távora e Alexandre Alves Costa, grandes mestres portugueses, em comentários e artigos recentes ou Luis Saia e Lourival Gomes Machado, dois importantes críticos paulistanos, em textos da década de 60, nos auxiliam a conhecer no discurso arquitetônico “simples e largo” desse que nos seus primórdios pode ser visto como discípulo de Affonso Eduardo Reidy, Mies van der Rohe ou de Vilanova Artigas, mas que foi demarcando sua vertical, seu próprio prumo.
Na ultima década, esses seus quarenta anos de ação construtiva vêm chamando a atenção. O trabalho do arquiteto foi mostrado em todas as recentes Bienais de Arquitetura de São Paulo, merecendo uma sala especial na última delas. Entre outras exposições, em 2002 foi um dos representantes brasileiros na Mostra Internacional de Arquitetura de Veneza.
Para um arquiteto pensar é construir, mas como bem salienta Alves Costa, para Toscano pensar é experimentar, tarefa difícil quando se tem como horizonte propor novas medidas para a experiência do mundo ao mesmo tempo em que se forja seus próprios parâmetros. Invulgar na aparente banalidade das suas soluções, Toscano na maior parte dos seus projetos revela aí, neste ponto – o simples, o natural, o despojado – a sua engenhosidade complexa.
Para o carioca comum, desses que tomam ônibus e percorrem estações de trem ou freqüentam piscinões e equipamentos esportivos, mas também para aqueles, arquitetos ou não, que fazem parte da pequena parcela dos brasileiros que conseguem chegar às universidades, o contato com a arquitetura praticada, de fato, por Toscano revela, instrui, convida a um projeto mais grandioso de vida urbana. Feita de ordem, disciplina e discrição a proposta do arquiteto nos mostra sua ancoragem na vida do dia-a-dia e se afasta tanto da rigidez quanto da inconsistência conceitual e do autoritário exibicionismo a que fomos nos “acostumando” nos nossos trajetos na cidade.
Exposição e livro mostram, assim, o adensamento de Toscano na busca de um diálogo com este sujeito anônimo, oculto, coletivo – que somos todos nós – e tantas vezes esquecidos pelos arquitetos e urbanistas na última década em benefício da espetacularização de si próprios. Ali estão os projetos de clubes, estações rodoviárias e ferroviárias, sutis e esbeltas passarelas, universidades, lugares em que Toscano luta consigo próprio e com “papel, letras, dedos e caneta” para manter o sempre atual desafio da arquitetura: rebaixar o “eu” individual daquele que concebe para elevá-lo a esse “eu” de qualquer um, de todos. Daí a dificuldade de ser banal e simples. Daí a dificuldade de ser teimoso. Daí a dificuldade de se colocar sempre a prova e de experimentar. Daí a dificuldade de duvidar, mas ter a grandeza humilde de propor.
Em quarenta anos de exercício, a obra do arquiteto manifesta períodos de plena consciência desse desafio embora, como salientava Saia nem todo o dia seja “dia de banquete”. É evidente que quando se olha numa longa duração (e quarenta anos de persistência em um Brasil que tanto reitera o elogio ao oportunismo e às oportunidades é um tempo longo), percebe-se a dificuldade do arquiteto quando trabalha certas escalas de problema ou quando é guiado por uma encomenda onde o cliente busca também exibir-se. Mas o que fazer? Embora a arquitetura seja arte pública por excelência, são poucos seja do lado dos arquitetos e urbanistas, seja do lado dos usuários aqueles que enfrentam a discussão sobre a sua própria natureza ética e estética, banal e monumental, no sentido de lugar de rememoração da própria dignidade que a idéia de homem pressupõe e cultiva.
Em quarenta anos, Toscano fez seu próprio caminho. Com certeza sabe as escalas em que gosta de exercitar seu traço – a muito íntima dos homens e das suas famílias no singular e a grandiosa dos grandes equipamentos destinados ao sujeito anônimo das metrópoles. Estão aí para mostrá-los a delicadeza da casa Aldemar Bastos (Ubatuba-1977) ou a economia potente da plataforma da Estação Pêssego (São Paulo– 1999), onde também se percebe a dimensão política da sua obra, no sentido pleno da palavra. Toscano escolheu ainda seus materiais: como por exemplo a madeira quase artesanal e o concreto da primeira e o aço da segunda, cada qual em seu tempo, lugar, contexto, “necessidade”. Mas, sobretudo, escolheu a sua geometria que nos ensina que os “não lugares” tão falados nestes tempos pós-modernos são uma bobagem. De fato, quando já não se sabe a diferença entre arquitetura e construção, sua obra insiste em lembrar que o “não lugar” é apenas o lugar do que, em um contra-senso, podemos chamar de “má arquitetura”.
nota
NE
Texto para a exposição João Walter Toscano, Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio de Janeiro, de 6 de outubro a 10 de novembro de 2004.
sobre o autor
Margareth da Silva Pereira é autora de livros e artigos sobre a história critica da arquitetura e do urbanismo no Brasil e Professora do Prourb-FAU/UFRJ