"Após o sinal das sete trombetas de concreto,
A luz que desce ilumina antigos habitantes
Das frestas deste mundo.
Desperta, ó ser do espaço
A áqua-voz guia
Em seus pés nus
Ao ventre do vento,
Buscam a semente que contém o sonho e
O fogo;
As estrelas ligam-se aos neóns
Formando o invólucro sagrado dos anjos de rua."
Nossa percepção está condicionada pelos limites das quatro paredes e do teto, fomos e somos moldados continuamente numa sociedade que padroniza as diferenças de cada indivíduo na sociedade. O medo, a claustrofobia, a paranóia são sombrias criaturas que habitam essa zona fronteiriça. A percepção dos moradores de rua, porém, não está condicionada por esses limites. É uma percepção voltada para o Aberto, para a experiência do Aberto, para a cidade enquanto imprevisibilidade. E voltando ao papel dos anjos como mediadores, o que são os moradores de rua senão mediadores entre o espaço privado e o espaço público, entre o espaço público e a rede ecológica?
Não se trata de uma investigação místico-religiosa a respeito do uso dos espaços das cidades, mas da própria banalização de nossa "ciência" de apreender e formar conexões de tais espaços que está em jogo atualmente. Temos que ultrapassar, atravessar as dualidades até hoje vigentes, de uma moral do bem e do mal, das verdades e das mentiras que negociam as vidas numa sociedade.
Rua, espaço e essência
A sociedade atual se depara com a complexa malha de informações que rotaciona as cidades contemporâneas, gerando vislumbres e atrocidades no cotidiano dos habitantes.
A tecnologia torna-se religião, esta assume os disfarces que a mídia oferece. A perda de alma da cidade, eis o tema que James Hillman, considerado um dos mais importantes e revolucionários psicólogos depois de Jung, desenvolve, em seu livro A cidade e alma (2), onde mostra não apenas que a famosa análise no "divã" é um mero aparelho psicanalítico de fazer dinheiro, mas também, entre outras coisas, que a arquitetura e a cidade possuem uma alma que lhes é própria, e que cabe a nós despertar (e penso que, nesse aspecto, o papel dos moradores de rua é essencial). Além disso, mostra que a rua exerce, implicitamente, uma função de "consultório". É a rua em si mesma que poderá vir a assumir o papel de se tornar uma grande força para o futuro da arquitetura.
A volta desta "essência" ao espaço urbano corresponderá, desse modo, de um sentido ético associado ao uso do espaço público. Sob esse aspecto, os moradores de rua têm muito a nos ensinar. A "essência" de fato volta, pois imaginação e criatividade aliam-se no próprio ato de viver dos moradores de rua das grandes cidades. As chamadas bricolages constituem uma sobreposição-justaposição de materiais, que passam a ser utilizados para fins diferentes daqueles para os quais foram originalmente destinados. Nas mãos dos moradores de rua, as bricolages tornam-se não apenas efetivos espaços físicos de habitar, mas também "invólucros sagrados", manifestações criadoras, nos quais a essência passa a habitar. A "essência" de um chapéu, associada à proteção da cabeça de quem o usa, passa a habitar um mero saco plástico. Peças de papelão, ferro, borracha, madeira tornam-se habitats móveis. Identifico tal processo espontâneo e criativo de reciclagem com a figura da serpente comendo a própria cauda, o ouroboros alquímico, a transmutação da matéria morta em elementos vivos, morte-renascimento, reciclagem.
Pressupor que a parcela de moradores de rua é um mero conjunto amorfo, anônimo e difuso é querer tapar o sol com a peneira. Em Los Angeles, o número desses habitantes cresceu tanto que já se admite uma cidade subterrânea, e em São Paulo e em outros estados os moradores das favelas e mesmo de classes médias escolhem a rua como moradia. Instituições privadas, políticos e mídia já não se contentam em fazer o possível para rechaçar os moradores de rua para fora do campo de visão do espaço urbano, como se essa parcela significativa da população nada mais fosse que uma modalidade ambulante de lixo; atualmente, passaram ao "ataque" físico, concretizado na chamada arquitetura antimendigo, em proibições absurdas, que chegam mesmo a ser anticonstitucionais (por exemplo, a iniciativa de um "certo" prefeito de cercar praças públicas alegando que isso diminuiria a criminalidade), na adoção de "artefatos" criados por arquitetos e destinados a expulsar os moradores de rua de locais públicos (demolição de marquises, despejo de óleo queimado, aplicação de jatos de água e ateamento de fogo).
Vê-se em São Paulo não apenas um total descaso por parte da prefeitura e das empresas privadas em relação ao problema desses moradores, cujo número triplica a cada ano, mas até mesmo a adoção de medidas criminosas, tais como assassinatos "acidentais" e a chamada operação "tolerância zero" da Polícia Militar. O absurdo chega a ponto de elementos arquitetônicos fundamentais serem planejados em função de uma visão antimendigo.
Ao contrário da imagem que a mídia insiste em nos mostrar, apresentando-nos uma visão de vida extremamente restrita, limitada por uma capacidade igualmente restrita para lidar com os poucos materiais que tem à mão, a realidade do morador de rua parece apontar para a direção contrária. A riqueza de maneiras de utilizar o espaço e os materiais a que ele recorre é um fluxo de inesperadas informações, de respostas criativas vindas da escuridão do asfalto, é uma potencialidade fervilhante à procura de concretização.
Dessa riqueza poderíamos esperar, entre outros exemplos, o advento de um novo sentido de coletividade, que encontre soluções novas e imaginativas para o habitar, soluções animadas por um autêntico sentido de bem comum, como o era a famosa Bicicleta Branca de Amsterdã, "presente" que os anarquistas psicodélicos da década de 60 ofereceram à população da cidade, e que podia ser utilizada por qualquer pessoa que a encontrasse desocupada. Por que tais exemplos se mostram como “brinquedinhos infantis” críticos perante a onipotência do arquiteto e urbanista como articuladores sérios que ditam futuros?
Seja qual for a resposta, boa parte da arquitetura brasileira atual está sob controle de interesses da classe dominante, o que se pode ver, por exemplo, nos condomínios enclausurados, "paraísos" controlados por centenas de câmeras de proteção, nas casas de mármores que, incessantemente, emergem das páginas das revistas mensais de arquitetura. Ambientes acolhedores cuja "face oculta", na verdade, é uma arquitetura que não ativa a percepção, uma vez que se fecha ao espaço externo com um pavor "feudal" (ou seria uma percepção de prisioneiro?). Essa aberração (fruto maduro da sociedade disciplinar e da sociedade de controle), porém, é apenas um caso limite de uma arquitetura que tem as mãos atadas, uma arquitetura cujo propósito essencial é o de funcionar como monumento ao dinheiro de quem a encomendou, uma arquitetura que, na muda linguagem das pedras, não passa de uma eloqüente apologia do dinheiro. Com isso, a arquitetura torna-se indecidível quanto a sua função atualmente, indecidível a atuação do arquiteto numa sociedade presa ainda nas filigranas podres de uma moral que rege tudo e a todos. Fazemos parte de uma arquitetura que responde a uma estratificação social abrupta, a uma forte hierarquização sócio-econômica e a um poder tirânico da mídia. A arquitetura é previsível, ela tem sempre a pretensão de “adestrar” o amanhã esquecendo que o futuro é incerto, indeterminado.
Muitas são as vias que comprometem a ação criadora do espaço. Uma delas é o marketing político, que costuma recorrer a uma arquitetura de alto impacto visual como "isca de votos" (vide os Cingapuras, que, do ponto de vista da utilização do espaço, nada mais são que cortiços disfarçados). Outra é a mídia, que sempre se esforça por impor o que é certo ou errado segundo os padrões da sociedade dominante. Desse modo, a imaginação está trancafiada por mordaças de uma cultura cujo propósito é, muitas vezes, a mera defesa de interesses escusos, e a mera justificação da paranóia do inimigo invisível sempre à espreita. E quem não sabe o quanto a miséria é necessária no âmbito do jogo político? Afinal, enquanto houver miseráveis na sociedade, sempre estarão garantidas as mensagens políticas de erradicação da pobreza. As soluções que nossos líderes têm em mente são tão ineficazes quanto o ato de dar esmolas, as quais aliviam mais a consciência de quem as dá do que as necessidades de quem as recebe.
Iniciativas voltadas especificamente para o morador de rua certamente irão convergir na elaboração de uma futura arquitetura dos espaços abertos. Por exemplo, em meados da década de 80, o artista-designer Kryzistof Wodiczko desenvolveu em Nova York um projeto denominado Homeless Vehicle, um veículo que é igualmente um protesto político, e planejado para ser um habitat móvel para os moradores de rua. Outro exemplo é o sleeping bag Barbun, criado por um estilista italiano e adotado, em caráter experimental, pela prefeitura de Roma para uso de moradores de rua.
As habitações móveis ou cápsulas de morar aparecem com máxima criatividade nos espetaculares e irreverentes projetos psicodélicos do grupo Archigram (1961-1974), juntamente com os projetos dos chamados metabolistas, grupo japonês do qual fazia parte, entre outros, o grande arquiteto Kenzo Tange. O Archigram , desenvolveu possibilidades de fazer florescer, no espaço urbano, uma arquitetura de caráter mágico, futurista, que levasse ao espaço urbano a estética da pop art, a arquitetura da "aldeia global", uma arquitetura brincalhona, onde imaginação e realidade se casariam em fecundas núpcias nos espaços da cidade. Lutando contra a arquitetura inglesa tradicional, que consideravam medíocre, e contra o modernismo estagnado, o grupo introduziu na arquitetura a concepção de colagem, a materialização do imaginário das histórias em quadrinhos e dos sonhos da conquista espacial, a tecnologia do computador aliado à natureza, mostrando a possibilidade de uma inesperada libertação dos espaços da cidade. Temas como o da Walking City, The Capsule e o Cushionycle "colam" idéias vindas das artes plásticas, do mundo da moda, da ficção científica, da música, da ecologia, de um sentido amplo e original para o habitar, integrando-as numa mesma teia multidimensional.
A integração entre a natureza e o homem, entre a tecnologia e o ato de imaginar. É nessa região limítrofe que os moradores de rua atuam, e onde poderão servir de mensageiros, reutilizando os espaços mortos da cidade. Porém, agora, sendo vítimas de uma exclusão cada vez mais absurda, onde, ironicamente, a rua tem um caráter de propriedade particular de algo ou de alguém, como bem o demonstram certas medidas tomadas pela polícia metropolitana e pela prefeitura, onde está a rua?
Em contraposição a uma arquitetura comprometida com valores reacionários, um novo pensamento arquitetônico incorporaria até mesmo o amplo sentido de ética, tanto no questionamento entre certo e errado como no exercício do arquiteto-designer sobre a cidade.
Atualmente, Daniel Libeskind, arquiteto polonês, propõe uma discussão radical da questão do público e do privado a partir de um entendimento profundo da história alemã do pós-guerra. No seu processo de criação, formas que emergem de uma complexa malha de informações (vindas de fontes históricas, sociais, visuais) funcionam como diretrizes para a obtenção de inusitadas estruturas arquitetônicas, revelando a história escondida pela história, os mitos e as motivações inconscientes que se ocultam na zona limítrofe entre o público e o privado, e trazendo assim, materializada na superfície, a Justiça, o ponto de equilíbrio, o fiel da balança entre o espaço público e o espaço privado, um atravessar, uma intersecção através do profano e o divino. Ora, esse espaço fecundo e pleno de vitalidade inconsciente não é também um espelho por excelência da alma do morador de rua? Da sua história imemorial, da sua experiência do Aberto, dos seus anseios e das suas dores, alem de seus anjos e demônios? "Estar sob o efeito" dos espaços arquitetônicos de Libeskind é penetrar numa zona ao mesmo tempo pessoal e coletiva, é abrir novas dimensões nas experiências do olhar e do caminhar, é atribuir novos significados a formas conhecidas, é materializar o invisível, a imaginação, e novos modos de pensar e de sentir.
Talvez todas essas percepções profundas e radicais que resumimos acima, e que vão da psicologia de Hillman à visão arquitetônica de Libeskind, da mobilidade de "morar" do Archigram à intensidade e profundidade com que se desdobram nos dias de hoje as discussões sobre a relação entre o público e o privado, sejam apenas estrelas de primeira grandeza constelando uma realidade maior: a de que o corpo-cidade estaria ansiando por ética ao invés da moral.
Não se trata, como poderia parecer à primeira vista, de uma simples idealização da imagem do morador de rua ou mesmo de uma discussão moral entre o bem e o mal, o certo e o errado, este ou aquele arquiteto me “satisfaz”. Talvez se pudéssemos reconhecer no status do "arquiteto" a dignidade de uma vocação ética, num sério embate no ensino, na prática e nas mediações de seu exercício, começar a pensar arquitetura de fato.
A arquitetura esqueceu de suas diferenças de natureza, ela é sempre isso do que aquilo, essas são as escalas, as ferramentas, os códigos gerais, nesta ou aquela forma de sociedade, de cultura, essas são as formatações para uma bela arquitetura. Mas é necessário sempre perguntar, o que é arquitetura?
notas
1
Artigo publicado originalmente na revista eletrônica Rizoma 6.0.
2
HILLMAN, James. A cidade e alma. São Paulo, Studio Nobel, 1993.
sobre o autor
André Teruya Eichemberg é arquiteto e urbanista formado pela UNESP, desenvolvendo mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP com pesquisas voltadas para novas concepções espaciais na realidade virtual e espaços urbanos.