O Parque Farroupilha já teve vários nomes: Várzea do Portão, Potreiro da Várzea, Campos da Várzea, Campos do Bom Fim, Redenção, e já foi só uma área alagadiça e periférica de Porto Alegre. É a área de lazer mais antiga da cidade e foi constituída previamente a um traçado de parque. Sabe-se que no início do século XIX essa área foi ocupada pelos carreteiros que vinham do interior e ali acampavam aguardando a entrega do gado aos matadouros próximos. Também há notícias de realização de rituais de escravos no local. No final do século XIX, na várzea que originaria o parque, já se instalara um circo de touradas e um velódromo, na época, as maiores diversões da população porto-alegrense.
A área da várzea já teve originalmente 69 hectares, quando era apenas uma espaço residual da cidade. Hoje o parque ocupa 37 hectares e continua mantendo o status de uma das mais importantes áreas verdes da capital. Está localizado junto ao centro de Porto Alegre entre os bairros da Cidade Baixa e Bom Fim e a sua topografia praticamente plana, é resultante dos sucessivos aterros realizados para cobrir essa área alagadiça.
Atualmente o Parque Farroupilha possui uma forma trapezoidal definida pela malha urbana, com limites constituídos por grandes ruas e avenidas de intenso tráfego. Cada uma das bordas do parque tem sua característica própria, sendo todas elas mais ou menos permeáveis ao entorno urbano. Ora são bastante largas e desprovidas de arborização, ora apresentam-se estreitas e densamente arborizadas, com vias internas que isolam os usuários da cidade.
A história do parque foi marcada por uma série de circunstâncias favoráveis que concorreram para a sua aparição. A primeira iniciativa importante para definição da área que acabaria gerando o parque remonta ao ano de 1776, através de um alvará de D. Pedro I, que proibia a alienação da área sem sua autorização prévia.
A referência mais antiga de um plano para a área é do viajante Arsène Isabelle (2), que fala da transformação da planície em um jardim botânico, com um museu.
Quanto ao seu traçado, o parque foi foco de uma série de intervenções e projetos que a cada dia o transformaram mais. O primeiro projeto de ajardinamento parcial da área atual do parque, ocorreu por ocasião da Exposição Estadual de 1901. Posteriormente, no Plano Geral de Melhoramentos para a cidade, em 1914, Moreira Maciel retalhou a área do parque em nove quarteirões prolongando as vias de tráfego no seu interior.
Em 1930, Alfred H. D. Agache definiria a proposta mais relevante para o parque a partir da qual derivariam os traçados posteriores, inclusive o atual. O anteprojeto de Agache, partia de uma estrutura rígida de eixos à qual se contrapunham formas sinuosas periféricas. Esse novo traçado desfazia o retalhamento do campo proposto por Maciel e tomava como diretriz o seu eixo monumental.
Em 1935, o anteprojeto de Agache, foi adaptado e parcialmente implantado pelo arquiteto municipal Christiano de La Paix Gelbert, para dispor os pavilhões da Exposição do Centenário Farroupilha. Essa era a maior exposição que Porto Alegre via em toda a sua história e os acontecimentos que ali se desenrolaram marcaram época, influenciando a arquitetura da cidade. Fora precedida pelas exposições Riograndense (1866), Brasileira-alemã (1881) e Estadual (1901).
Das obras executadas para a Exposição, hoje restam o pequeno belvedere, o embarcadouro e o Instituto de Educação, que foi o pavilhão cultural da exposição. O Pavilhão do Pará permaneceu no parque até 1970, como sede da Divisão de Praças e Jardins, quando um incêndio destruiu uma das suas alas e junto com ela preciosa documentação sobre o parque. Os outros pavilhões, todos em art-deco, e construídos em estuque, foram desmontados quatro meses após o início do evento. Com a desmontagem da exposição, o parque já estava praticamente implantado, só faltando completar o desenho proposto por Agache, que servira de base para o plano da Exposição. Em 1940, ao detalhar o projeto de Agache, o arquiteto Arnaldo Gladosch sobrepôs a ele alguns recantos e jardins, alterando o plano original.
Posteriormente à implantação dos recantos, três obras importantes são realizadas no parque. A primeira delas foi o Arco Duplo (Monumento ao Expedicionário) fruto de um concurso vencido pelo artista plástico Antonio Caringi. Esse arco, inaugurado em 1953, já foi alvo de piada na época. Carneiro (3) comentaria que aquela proposta acadêmica e historicamente equivocada de Caringi transformou-se num arco do triunfo de duas portas! Único no mundo! Arcos de triunfo têm uma só porta ou então três. Inovar aí é o mesmo que fazer “soutiens” com três portas seios!”
A segunda obra foi o Auditório Araújo Vianna, dos arquitetos Moacir Moojen Marques e Carlos Maximiliano Fayet, inaugurado em 1964. Inicialmente planejado para comportar atividades ao ar livre, esse auditório recebeu uma cobertura de lona em 1996. Finalmente, no corrente ano, o parque recebeu o novo Mercado do Bom Fim, reconstruído segundo anteprojeto de Otacílio Rosa Ribeiro que resgatou os seus usos anteriores: bares e floriculturas.
Atualmente dois níveis de organização configuram o traçado do parque: um global e outro particular. O global é definido a partir de uma visão telescópica do espaço, que através de uma contundente estrutura – constituída basicamente de caminhos, vegetação e água – vai se abrindo e ocupando o território. A esse eixo vertebrador agregam-se pontualmente: um lago e os recantos europeu, oriental, alpino, solar, e o roseiral, configurando o seu nível de organização particular. Pitoresco é uma palavra chave para entender esses recantos. Como num primeiro momento do jardim paisagista inglês, os recantos desse parque são pensados como cenários e integram elementos que surpreendem pela sua raridade e exotismo.
Esses dois níveis de organização da área possibilitaram que o parque fosse transformado pontualmente ao longo dos anos, sem, no entanto, alterá-lo como um todo. Essa dupla entrada também possibilitou o convívio de dois estilos paisagísticos no parque; o do jardim francês e o paisagista inglês (nos seus inícios), ambos preocupados em definir um cenário à imagem e semelhança do homem e da natureza idealizada, respectivamente.
À complexidade do traçado da área agrega-se aquela inerente ao uso e apropriação do parque pela população. Observam-se por exemplo, momentos claramente diferenciados de uso do parque. Em dias de semana ocorre um uso menor e concentrado nas áreas livres e abertas em detrimento das zonas densamente arborizadas, que se transformam em espaços desertos, cegos das suas possibilidades. À noite o parque também tem uma ocupação relevante através dos bares, encontros, prostituição masculina, entre outros. Isso acaba gerando a frequentação e uso ininterrupto da área durante 24 horas diárias.
Nos fins de semana, o parque é ocupado em toda sua extensão ao transformar-se num grande palco de manifestações culturais, sociais e políticas, atingindo seu ponto alto de frequentação. Seu uso de fim de semana também está estreitamente vinculado à Feira Ecológica e ao Brique da Redenção (feira de antiguidades) que se realizam junto a uma das suas bordas (Avenica José Bonifácio). Qual o morador ou turista que não passou aos domingos pelo Brique da Redenção? A imagem desse tradicional evento, já consolidada na memória da cidade e seu vínculo indissociável com o parque nos remetem, guardadas as diferentes especificidades dos parques e praças bem como suas distâncias temporais, aos escritos de Segawa (4):
“a praça é um espaço ancestral que se confunde com a própria origem do urbano (...) a cultura popular não oficial dispunha na idade média e, ainda durante o renascimento de um território próprio: a praça pública, e de uma data: os dias de festa e de feira.”
Se os jardins públicos, comparados com as praças, normalmente expressaram as idéias das camadas sociais dominantes, pode também, que na sua origem, as distintas intervenções realizadas no Parque Farroupilha, seguindo o lugar comum da história dos jardins, buscassem expressar as idéias das classes sociais dominantes, com a conseqüente exclusão daquelas camadas sociais de baixa renda. Hoje, no entanto, o parque é freqüentado por todas classes sociais.
Além disso, as sobreposições de projetos e o fato de se constituir um fragmento de outra época inserido no tecido urbano de Porto Alegre, são contornados brilhantemente pelos seus usuários, que interagem com esse espaço adaptando-o às suas necessidades.
Nesse sentido, os usos e atividades geradas no parque, independentemente das barreiras impostas pelo seu traçado, desenvolvem-se de maneira aleatória e independente, ocasionando atuações inesperadas. Isso reaproxima o parque às suas origens, quando a população realizava atividades espontâneas na várzea. Também informa ao projeto que o homem segue sendo parte fundamental da criação e, principalmente, da apropriação da paisagem.
notas
1
Artigo originalmente publicado na revista AU – Arquitetura e Urbanismo, n. 92, out./nov. 2000, p. 69-72.
2
ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul (1833-1834). Porto Alegre, Museu Júlio de Castilhos, secção do Arquivo Histórico, 1946.
3
CARNEIRO, Luiz Carlos. Porto Alegre; de aldeia a metrópole. Porto Alegre, Marsiaj Oliveira, 1992.
4
SEGAWA, Hugo. Ao amor do público. Jardins no Brasil. São Paulo, Edusp/Nobel, 1996.
bibliografia complementar
LUZ, Luís Fernando da. Parque Farroupilha; composição e caráter de um jardim público de Porto Alegre. Porto Alegre, dissertação de mestrado, UFRGS-PROPAR, 1999.
MACEDO, Francisco Riopardense de. Porto Alegre, história e vida da cidade. Porto Alegre, Editora UFRGS, 1973.
MACHADO, Nara Helena Naummann. Modernidade, arquitetura e urbanismo: o centro de Porto Alegre (1928-1945). Porto Alegre, tese de doutorado, IFCH PUC-RS, 1998.
MACIEL, João Moreira Maciel. Relatório do projecto de melhoramentos e orçamentos. Porto Alegre, Officinas Graphicas d A Federação, Intendencia Municipal de Porto Alegre, 1914.
PEREIRA, Renata Faria. Plan Agache: urbanismo de excelencia en los años 20. Summa, Buenos Aires, n. 25, jun./jul. 1997.
SPALDING, Walter. Pequena história de Porto Alegre, Porto Alegre, Livraria Sulina Editora, 1967.
sobre os autores
Luiz Fernando da Luz é mestre em Arquitetura pelo Propar UFRGS e professor da Unisinos RS
Ana Rosa de Oliveira é doutora em Arquitetura pela Universidade de Valladolid, Espanha, e professora e pesquisadora do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do RJ.