As obras de Ana Holck duplicam o espaço. E isso vale para dois dos sentidos do verbo “duplicar”. Introduzem mais espaço onde já havia espaço. Nesse primeiro sentido, a duplicação parece paradoxal. Como é possível aumentar as dimensões de um determinado espaço? Não é a quantidade de espaço, porém, que suas obras ampliam, mas algumas de suas qualidades sensíveis, alguns de seus atributos estéticos. É assim que a uma sala redonda do Solar Grandjean de Montigny na PUC do Rio, a artista acrescentou, em 2003, uma porta giratória apoiada no centro da sala e dividindo a sala em três partes iguais. Para percorrer o espaço circular do lugar, o espectador se vê, assim, obrigado a empurrar a porta percorrendo um trajeto também circular. A um círculo estático, a obra acrescenta uma circulação dinâmica. A duplicação é, então, imitação: um predicado da obra – circular – vem assemelhar-se a um predicado de um espaço já existente – seu aspecto redondo.
A índole mimética das obras de Ana Holck deve ser examinada, porém, com cuidado. No início há sempre espaços e coisas já existentes e independentes da obra que vem com eles dialogar. São predicados de um espaço concreto, já configurado, que a obra mimetiza. A imitação torna atual e confere um novo vigor, deste modo, àquilo que já existia em potência. Sem um espaço já dado, a obra perderia suas amarras. Daí que no seu trabalho final de graduação em arquitetura, de 2000, o projeto arquitetônico de um museu encontre seu partido na explosão inicial de uma pedra. A disposição resultante dos fragmentos de pedra aparece como fio condutor para os edifícios futuros. Uma pedra assemelha-se a outra e, conforme ficarão dispostas, também as posições que ocuparão se mimetizam: o alto e o baixo, o esquerdo e o direito, o adiante e o atrás. Para não partir de um espaço abstrato, o projeto constrói, primeiro, um lugar concreto. O imitado, nas obras de Ana Holck, não é nunca, assim, algo figurado. São coisas que existem antes da obra e que continuarão a existir como singularidades concretas também quando a obra vier se conjugar a elas. O espaço e as coisas não são substituídos por representações, mas renovados e enriquecidos por entrelaçamentos que já se deixavam entrever como atributos concretos do espaço.
Mesmo quando lida com fotografias, em My Mondrian, de 2001 e Distância, de 2002, a imitação em Ana Holck também não é figuração. No trabalho de 2001, a projeção de luz sobre partes do corpo humano tanto acentua o contorno dos corpos ou da luz projetada quanto transporta os contornos para faixas de luz ou sombra que ganham autonomia e novos contornos. Já no trabalho de 2002, as partes do corpo humano ganham ou perdem nitidez conforme se aproximam ou se distanciam. O focado ou o desfocado imitam, então, distâncias, como bem assinala o título da obra. E é na mesma linha dessa peculiar concepção de imitação – a duplicação pela obra de um determinado predicado do espaço em que se instala – que outras obras de Ana Holck também se deixam compreender. As faixas que desenham diferentes parábolas na obra de 2003 no Centro Cultural São Paulo repercutem os espaços curvos do teto do prédio. Em Transitante, também de 2003, o espaço é uma sala comum, retangular. As faixas, dispostas em diagonais, percorrem as paredes, o teto e o chão. A imitação, nesse caso, não vem de um aspecto da sala, mas do caminho transversal, também feito de diagonais, que é oferecido ao espectador para adentrar a obra. Planta e elevação é que então se assemelham.
O emprego de faixas em boa parte das obras de Ana Holck vem atender a uma necessidade imposta pelo jogo entre a obra e o atributo do espaço que mimetiza. A linha é um elemento delgado demais para conduzir a obra pela profundidade de um espaço. Já uma área plana é algo demasiado amplo para cristalizar as nervuras de um lugar. O trabalho com linhas realizado no Parque Lage em 2002 se, por um lado, mimetizava os contornos dos tocos de madeira espalhados pela sala e pelas paredes, por outro lado pouco se relacionava com o espaço da própria sala. Mas já em Empena Cega, de 2001, as faixas começavam por adensar o espaço. E também a mimetizá-lo. Entre duas empenas que ladeavam uma escada, faixas foram dispostas segundo um desenho que também configurava uma estrutura em degraus.
Como tantas outras histórias, há uma história da faixa na arte moderna. Ela encontra um ponto alto em Mondrian. Nas obras de Mondrian as faixas também ficam numa posição intermediária entre a linha e a área. Mais espessas que as linhas, não apenas dividem, mas estruturam o espaço. Menos amplas que as áreas, não são todo o espaço, mas sobretudo suas direções e seus ritmos. Transporte-se essas faixas direcionais e pulsantes para fora da tela, para espaços concretos. Que se as faça aderirem aos lugares de um modo que pareçam simples coisas nesse espaço, assim como, por exemplo, as grandes lâminas de ferro de Richard Serra. O resultado dessa mistura, quase uma dedução, serão os trabalhos com faixas de Ana Holck. Não é por acaso que sua dissertação de mestrado tenha se detido sobre as obras desses dois artistas. Aí também procurou examinar as relações, nas obras dos dois artistas, com a cidade, a música e a dança. Relações que também existirão nas obras de Ana Holck?
Estais, salvo engano, pois escrevo apenas diante de belas imagens de sua maquete, é talvez a mais bem sucedida e límpida das obras de Ana Holck. O espaço concreto e anterior à obra é formado por quatro paredes e dois grupos diferentes de três pilares cada um. É um espaço interior, mas bem poderia ser um trecho de espaço urbano. As faixas se desgarram de uma das paredes maiores da planta retangular e avançam em diferentes pontos em direção aos pilares que contornam. Não há uma regra fixa para esses avanços, mas sim a procura por um arranjo de ritmos e direções que animem e atualizem potências latentes de um lugar que passaria de outro modo desapercebido. Assim como passa desapercebida boa parte dos elementos que sustentam e dividem os equipamentos e espaços urbanos. Assim como permaneceriam mudas as palavras de nossa língua, não fossem os ritmos e as entoações tão próximos da fala cotidiana (devo essa idéia a Hélio Ziskind) e nos quais nossas melhores canções recebem as palavras e as tornam de novo significativas: pilastra, teto, parede, estai, estais, vem, vai, corre, pára. Em Estais há bem uma canção com essas e outras palavras, mas mais convém, e isso bem basta, apenas olhar a bela dança do vai-e-vem de suas faixas.
nota
1
Texto do catálogo da exposição de Ana Holck na Galeria Virgílio, São Paulo, de 21 de outubro a 11 de novembro de 2004
sobre o autor
Alberto Tassinari é crítico de arte e autor do livro "Espaço Moderno" (São Paulo, Cosac Naify, 2000)