Representação e imagem da cidade
Nós facilmente falamos da ‘realidade’ da cidade como coisa ou forma, que são o resultado de uma ação cultural de classificação. Classificamos um ambiente como cidade e então ‘reificamos’ essa cidade como ‘coisa’. A noção de ‘cidade’, a cidade ela mesma, é uma representação [...] A cidade como objeto de pesquisa é sempre aporética, um objeto-crise que desestabiliza nossa certeza sobre ‘o real’ (2).
Entender a cidade como representação implica em analisar as imagens que ela evoca. As representações manifestam-se sobre os mais variados suportes, pictóricos e descritivos, como a literatura, a fotografia e o documento histórico. Porém, tanto os precisos mapas de planejamento urbano quanto as cenas de um filme são impressões subjetivas do objeto real denominado “cidade”, portanto parciais e reduzidas, “vistas” selecionadas tomadas diretamente da paisagem urbana (a fotografia, o desenho de observação) ou de aspectos específicos da sociedade urbana (estatísticas, mapas).
Embora uma compreensão da representação da cidade possa levar a uma crítica do seu caráter ideologizado, ou seja, entendendo que a representação se interpõe entre nós e a realidade, impedindo-nos de enxergar as coisas como elas realmente são, não podemos negar sua eficácia em estabelecer um forte e imediato vínculo com a cidade e, de certa forma, apreendê-la como um todo. A leitura de um mapa produzido a partir de estatísticas de criminalidade, por exemplo, pode nos induzir a evitar circular em certos bairros da cidade; é o que chamamos de uma propaganda “negativa”. Porém é através dessa representação da realidade – o crime distribuído espacialmente – que os órgãos responsáveis pela segurança pública podem exercer um controle mais preciso sobre o território.
Se por um lado as representações “reificam” a cidade, por outro elas provêem uma percepção instantânea da realidade, e isso também é válido para as representações artísticas. Representações não são apenas ficções da cidade mas fazem parte do sistema de entendimento sobre o que é a cidade: representar a cidade é uma forma de conhecer o seu funcionamento, a vida urbana e mesmo registrar a história coletiva de seus moradores. Para um observador externo, as representações permitem ter um contato mais amplo e multifacetado da realidade.
As representações constituem um rico material de estudo e ao mesmo tempo um campo bastante traiçoeiro para a análise da cidade. Primeiro porque muitas vezes elas de fato tomam o lugar do real e segundo porque somos tentados a adotar essa simplificação do real como verdadeira, nos afastando da complexidade do espaço urbano. No exemplo do mapa da criminalidade, a atenção direcionada sobre um único foco impede a distinção de outros aspectos – um bairro com altos índices fica marcado como “violento” e é tratado por esse viés, sendo evitado por moradores de outros bairros. A representação tomada como versão simbólica da realidade substitui a experiência concreta da relação entre o observador e seu objeto e a cidade deixa de ser o campo privilegiado da troca social.
A representação permite que ambientes urbanos sejam visíveis como cidades únicas. Isso traz implicações políticas à medida que a parte visível da realidade está condicionada ao poder e forças sociais e econômicas, que estabelecem, por exemplo, leis sobre a propriedade privada, valores de mercado, zoneamento urbano e estéticas arquitetônicas.
A representação pode ser entendida como um produto da incorporação de imagens, e neste processo as fronteiras entre o “real” e o “imaginado” podem ser constantemente modificadas. Para Kevin Lynch, a imagem é formada pelo conjunto de sensações experimentadas ao observar e viver em determinado ambiente.
“As imagens do meio ambiente são o resultado de um processo bilateral entre o observador e o ambiente. O meio ambiente sugere distinções e relações e o observador […] seleciona, organiza e dota de sentido aquilo que vê [...]. Assim, a imagem de uma dada realidade pode variar significativamente entre diferentes observadores” (3).
A imagem implica a concepção mental apreendida e estabelecida pelo indivíduo que resume seu conhecimento, suas avaliações e preferências sobre o ambiente em que vive. Devido a seu caráter subjetivo, a imagem urbana resultante é parcial (não representa toda a cidade, mas fragmentos) e simplificada (porque representa informações selecionadas pelo indivíduo), podendo ser também produto de caráter cultural e coletivo: pessoas que compartilham situações similares no tempo e no espaço, expostas às mesmas experiências perceptivas, tendem a compor imagens mentais também semelhantes.
A percepção do ambiente é mais aguçada quando se trata de um lugar turístico, onde a paisagem é um fator de atração. O turista, sensível às representações, tem sua atenção voltada para o aspecto visual dos lugares e para aquilo que ele tem de pitoresco, de diferente e atrativo aos sentidos, principalmente o que pode ser contemplado pelo olhar: a beleza, a composição e a harmonia das formas e cores não passam despercebidas. É a partir dessa constatação que o mercado atua como elemento de ligação entre o lugar imaginado e o lugar real, utilizando-se de representações.
A mercantilização da imagem da cidade
Na cidade contemporânea os lugares com significância cultural – os bairros históricos, monumentos, ruas e distritos de lazer e entretenimento – atuam como elementos chave no desenvolvimento econômico. Para os locais com grande apelo turístico, a paisagem e a cultura que ela possa revelar, traduzindo em cores, formas e sons o que de mais típico ou identitário há a se descobrir, manter as qualidades visuais do espaço urbano é prioritário.
Atentos à mercadoria “cultura”, empreendedores privados dão apoio a iniciativas públicas de recuperação de fachadas, mobiliário urbano, limpeza e iluminação, novos projetos de comunicação visual, recuperação de imóveis históricos e equipamentos culturais. Em contrapartida, recebem do mesmo Poder Público financiamentos para novos negócios como restaurantes e bares, galerias de arte, teatros, cinemas e toda a sorte de empreendimentos que dinamizem o turismo e o lazer, atraindo visitantes.
No Brasil vários casos demonstram que, pelo menos nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, essa parceria público-privado mostrou-se eficiente na recuperação parcial da cidade, notadamente em centros históricos como os de Salvador, Recife e São Luís. Entretanto, à parte a discussão sobre os reais benefícios sociais e econômicos de tais iniciativas, inúmeras criticas têm ressaltado a descaracterização e maquiagem do espaço urbano nesses sítios.
A remodelação de cidades por vezes implica na camuflagem e remoção de elementos “indesejáveis”; da mesma forma, aspectos “desejáveis” são enfatizados ou simplesmente inventados, sem qualquer relação com a história e cultura locais. A criação dessas novas paisagens para o consumo turístico toca em uma delicada questão: até que ponto tais empreendimentos contribuem para a manutenção e sobrevivência da paisagem e da cultura local? E ainda mais: qual o limite a ser imposto entre o “real / autêntico” e o “imaginário / falsificado”?
O “city marketing” e a “espetacularização” da cidade são políticas que tendem a mascarar a realidade, desviando a atenção das pessoas dos problemas relacionados ao desenvolvimento urbano e social das cidades, concentrando o foco de interesse no aspecto econômico com resultados a curto prazo (4). Os governos locais argumentam que, em contrapartida, ações sobre o espaço físico e investimentos em setores estratégicos para a manutenção ou alteração da imagem da cidade produzem efeitos mais imediatos e positivos para as finanças públicas e, em conseqüência do aumento dos recursos, políticas sociais e urbanas em longo prazo podem ser beneficiadas.
Sobre a mercantilização das cidades Bianchini (5) observa que em meados da década de 1980 houve uma mudança das políticas de aspecto sócio-culturais na Europa, que vinham sendo desenvolvidas desde o final da Segunda Guerra, para ações de desenvolvimento econômico e regeneração urbana. Segundo Bianchini a “linguagem do subsídio” foi gradualmente substituída pela “linguagem do investimento”. A política cultural passou a ser vista como uma estratégia econômica para compensar a perda de empregos no setor industrial. Nesse contexto, o turismo emerge como uma “indústria pós-moderna”, perfeitamente adaptada ao novo direcionamento político.
Os aspectos que interferem na escolha de destinos, preferências de gosto e criação de repertórios visuais indicam que a opção por ações estratégicas, pontuais e de resultados mais imediatos na intervenção sobre o espaço urbano e a paisagem é adequada ao perfil do turismo de massa. Sabemos que o olhar do turista se volta para aquilo que é especial, espetacular, incomum e novo. Além desse aspecto devemos considerar que o contato do turista com a localidade visitada em uma viagem de lazer é efêmero e superficial, e raramente se estabelece um vínculo permanente com o lugar.
Guy Debord (6) argumenta que o incremento do espetáculo na vida contemporânea é uma conseqüência natural em uma sociedade que valoriza cada vez as aparências em detrimento do ser. O que esta sociedade produz é denominado por Debord como “autenticamente espetacular”. A espetacularização das cidades, portanto, pode ser entendida como mero resultado de mudanças no contexto social e cultural que, obviamente, compactuam com políticas econômicas que sustentam a produção “real” de cidades idealizadas.
John Urry afirma que há dois tipos de “olhar” o lugar turístico: o “olhar romântico” e o “olhar coletivo”. No conceito romântico o turista enfatiza a natureza, a privacidade e “um relacionamento pessoal e semi-espiritual com o objeto do olhar” (7). O turista nesta situação adota um caráter introspectivo, valoriza o que é intocado, exclusivo ou raro, e uma experiência de percepção solitária dos lugares. Ao contrário, o “olhar coletivo” privilegia as grandes cidades, os locais públicos, a aglomeração de pessoas. O turista adquire um caráter cosmopolita e atribui qualidade aos lugares de acordo com o número de pessoas, turistas ou não, que o freqüentam.
O olhar “romântico” e o olhar “coletivo” são habilmente manejados pelo mercado para atrair clientes específicos, para a praia “selvagem” ou o “point do verão”, e é possível observar, principalmente na propaganda, que são a partir dessas imagens pré-concebidas e simplificadas que são criados os paradigmas dos lugares turísticos. As imagens estabelecidas para um lugar turístico geralmente são associações de elementos naturais, como o clima, a vegetação e as formas do relevo, e de elementos culturais, como as festas populares, os museus, a arquitetura e os monumentos públicos. Da composição bem dosada entre o pano de fundo visual proporcionado pelo ambiente físico e a vida cultural dos lugares surge o que denominamos “cenários do lazer” (8).
Cenografia, autenticidade e identidade cultural
Espaço e território são transformados para realçar aspectos visuais que correspondam aos anseios dos turistas de fruição de belas paisagens. Atendendo a essa demanda o mercado cunhou uma série de predicativos para categorizar tipos de atrativos e de atividades: turismo cultural, turismo de negócios, turismo rural, turismo religioso, turismo de aventura e outros. A imagem é então “colada” a essas categorias pela veiculação de cenas específicas: a cidade histórica, o centro metropolitano, o campo bucólico, a multidão de peregrinos, a natureza selvagem. Da apropriação de imagens com o objetivo de compor repertórios de lugares turísticos que possam ser mais facilmente identificáveis pelo turista surgem os espaços cenarizados para o lazer.
Um dos aspectos mais evidentes dessa “cenarização” é uma espécie de “arquitetura de fachada” que pode ser identificada por edifícios semelhantes em forma, dimensão e partido projetual, mas diferenciados por ornamentos, modificados ao sabor da moda ou segundo os temas específicos. Essa produção cênica é ainda mais valoriza quando associada a determinadas paisagens naturais e situações geográficas peculiares – a figura do chalé de madeira no alto da montanha ou da casa rústica coberta com sapé em uma praia selvagem são imagens emblemáticas da adequação entre arquitetura e ambiente.
A cenografia de cidades e lugares turísticos típicos do século XX é criticada sob o argumento de que essa reprodução de cenários é, em muitos casos, aleatória, sem qualquer vínculo com a cultura, identidade, história ou com a paisagem (referindo-se a elementos da natureza) original dos lugares. Alguns autores afirmam que esta é uma produção de não-lugares ou de falsos lugares, simulacros do real. A artificialidade patente em alguns lugares turísticos não é criada sem razão. Adyr Balastreri observa que “o espaço turístico resulta, em muitos casos, da captação do imaginário coletivo na tentativa de resposta. Por outro lado, o espaço criado é reforçado pela mídia que gera e alimenta o processo fantasioso” (9). Guy Debord analisa o turismo como a circulação de pessoas considerada como consumo, um “subproduto da circulação de mercadorias”, que pode ser caracterizado como “o lazer de ir ver o que se tornou banal”, pois o próprio planejamento econômico das viagens encarrega-se de igualar os espaços (10).
Analisando as relações entre pós-modernidade e turismo e lazer, Rojek (11) observa que turismo e lazer transformaram-se, na sociedade contemporânea, em uma atividade de consumo e não mais em uma questão de identidade e auto-realização. Esse “pós-turismo” e “pós-lazer”, como denomina Rojek, valorizam a ficção e a dramaturgia, o espetáculo e a sensação, uma vez que a autenticidade não é necessariamente uma preocupação do pós-modernismo. “A experiência de consumo é acompanhada de um senso de ironia”, pois quem consome está consciente de tratar-se de um produto fictício mas extremamente prazeroso e excitante, o que não diminui ou desvaloriza o produto de consumo.
Neste contexto as atrações temáticas estão tornando-se uma característica comum dos lugares turísticos. Os temas são trabalhados pelos empreendedores privados e Poder Público como forma de identificar o lugar e atrair mais turistas. A identificação, inclusive, passa por um processo de regionalização geográfica imposta por novas subdivisões do território, uma espécie de “domesticação dos lugares”. John Urry observa que “o espaço é dividido em termos de signos que significam determinados temas, mas não temas que se relacionem necessariamente com a verdadeira história ou com processos geográficos”, o que equivale a dizer que essa regionalização é, muitas vezes, meramente fictícia (12). A identificação de regiões turísticas induz a criação de uma cenarização igualmente temática, sobretudo quando a arquitetura põe-se a serviço da ênfase ou da reprodução maciça do patrimônio histórico “reinterpretado” ou da construção da pura fantasia.
A tematização explica-se pelo fato de que a percepção da paisagem é uma experiência subjetiva e resulta de uma interpretação particular do ambiente. Nos lugares turísticos, por exemplo, visitantes e nativos focalizam aspectos diferentes do mesmo ambiente. Segundo Yi-Fu Tuan, a percepção do visitante “freqüentemente se reduz a usar os seus olhos para compor quadros”; já o nativo tem uma percepção mais complexa do meio que só é expressa “com dificuldade e indiretamente através do comportamento, da tradição local, do conhecimento e do mito” (13). O que para o turista é uma experiência essencialmente estética, para o nativo é uma avaliação do próprio modo de vida.
História e memória são atributos de uma civilização que indiscutivelmente conferem identidade aos lugares e portanto imprimem “autenticidade”. Mas sabemos que, como produto de interpretações e da própria dinâmica social, são também atributos passíveis de “releituras” e alterações. O conflito entre obras de revitalização urbana e a história do lugar emerge com a discussão do que é “verdadeiro” e deve ser mantido e entre o que é ‘falso’ e deve ser obliterado. Num projeto de grande porte como a reconstrução e remodelação de um centro histórico tudo se passa, portanto, sobre o ponto de vista daqueles que irão determinar o valor do patrimônio construído e das tradições e memórias culturais.
A cultura da valorização de objetos descontextualizados da dinâmica social e o consumo da natureza mistificada constituem também aspectos significativos das relações sociais estabelecidas nos lugares turísticos. Como bem observou Michael Hough o turismo pode contribuir para a proteção e manutenção do caráter regional, mas quando valores sociais e ambientais estão ausentes a diversidade da paisagem cultural e natural é degradada e o que poderia ser um lugar especial torna-se um lugar qualquer, sem identidade (14). Este é o grande desafio para os governos locais quando se inserem num setor tão competitivo e dinâmico como é o do mercado turístico. Buscar a diferença e preservar a identidade regional sem submeter-se aos encantos da globalização, que tende a padronizar os lugares, é uma opção que implica um esforço de investimento no capital humano e cultural a longo prazo, ou seja, em políticas que priorizem a população local e seu desenvolvimento como cidadãos participantes.
Conclusões
O crescente aumento da demanda do mercado turístico é um dos fatores responsáveis pela produção e consumo da paisagem urbana, seja no seu aspecto cultural seja no aspecto natural. Tal processo é sustentado pela formação e consolidação de imagens de lugares como, por exemplo, “paraísos tropicais”. Considerando o aspecto visual como principal elemento de atração turística, tanto Poder Público quanto o mercado esforçam-se em enfatizar belezas naturais e produzidas. Trata-se, portanto, não só de mostrar o que existe mas reproduzir e criar novos espaços segundo critérios estéticos.
Embora possamos incluir neste processo a produção “virtual” do espaço, como as imagens veiculadas pelos meios de comunicação, a viagem de turismo é um complemento necessário e crucial para a “venda” de lugares. A experiência de “estar” como turistas nos lugares de lazer oferece a estranheza necessária aos indivíduos para que possam interagir de forma diferente com as paisagens, mesmo as mais cotidianas. Percorrer lugares com outros olhos desperta o interesse para a descoberta da beleza, de composições e aspectos inusitados da paisagem. Essa experiência individual é o componente essencial para a formação das imagens coletivas sobre os lugares de lazer. A estratégia de mercantilização, portanto, irá atuar no reforço e incremento dessa experiência, e mesmo induzi-la.
A principal característica do turismo de massa nas sociedades modernas é a popularização das viagens. Urry chega a afirmar que “é um elemento crucial, na vida moderna, sentir que a viagem e as férias são necessárias. ‘Preciso tirar umas férias’: eis a mais segura reflexão de um discurso moderno...” (15) O marketing turístico explora o trabalho considerando-o uma atividade que exaure as forças físicas e espirituais do trabalhador, que só poderão ser recuperadas com as viagens de férias, que, obviamente, serão pagas com o dinheiro ganho com o trabalho, estabelecendo uma relação interdependente entre o lazer e a produção econômica.
As viagens de turismo na sociedade capitalista atribuem uma condição social ao trabalhador: quanto maior o seu poder aquisitivo, mais sofisticadas serão suas férias, o que geralmente se caracteriza por viagens para países estrangeiros, consumo de produtos caros e atividades exóticas. O turismo também se tornou um elemento de avaliação do “status” social do trabalhador, uma medida do seu nível sócio-econômico e padrão de vida. A ascensão social pode ser configurada pela mudança da “classe econômica” para a “primeira classe” dos aviões comerciais, ou da viagem de fim-de-semana à praia mais próxima para um cruzeiro de várias semanas no Caribe.
A divisão entre o trabalho e o lazer compreende não só uma divisão de tempos como de lugares. Para as cidades representa cumprir funções dentro do sistema de produção e consumo: a cidade do trabalho é o espaço da produção enquanto que a do lazer é a do consumo. Assim como o lazer é uma recompensa pós – trabalho, que deve ser separado deste como algo a ser atingido, a organização de cidades para o lazer no entorno da cidade do trabalho pode ser entendida como uma rede de sustentação das atividades de lazer do pólo produtor, cumprindo a função da praça ou parque urbanos em escala regional.
O turismo tornou-se, de certa forma, uma resposta à necessidade da sociedade industrial de alternar trabalho e lazer e organizá-los em tempos e lugares diferentes. Ao longo do último século o turismo exerceu um “efeito estabilizador” sobre a sociedade e a economia, como concluiu Jost Krippendorf (16), acomodando o ciclo de produção e consumo. O espaço urbano destinado ao turismo deve corresponder à expectativa de um consumo da natureza pelo trabalhador. Assim, o espaço de trabalho e de moradia seria um espaço primordialmente de produção, e nos espaços de lazer há uma ênfase no consumo, sejam bens produzidos pelo trabalho, seja o próprio espaço construído e herdado, seja a natureza. No lugar turístico as edificações, as ruas, as praças, os jardins, o sol, a montanha, o mar, o clima, quase tudo, enfim, pode ser do interesse do turista e objeto de consumo.
A necessidade de conservar aspectos naturais do território e ao mesmo tempo atender as demandas de uso que podem comprometer seus atributos paisagísticos, elementos estratégicos para a valorização dos lugares turísticos, criam conflitos típicos dentro dos processos turísticos. Em outras palavras, a sustentabilidade econômica do turismo está na sua capacidade de gerar novas atrações, descobrir novas paisagens, exaltar qualidades ambientais, seja dos mesmos lugares, através da construção de artefatos diversos, ou pela exploração de lugares “virgens” turisticamente, nos empreendimentos pioneiros. O processo de (re) produção contínua do espaço que a atividade nos sugere torna-se, paradoxalmente, um fator de risco para a degradação e depreciação dos lugares de lazer.
A propaganda e o marketing nada mais fazem que enfatizar determinadas representações da cidade criando e veiculando imagens, símbolos, slogans, e narrativas sobre o espaço urbano, e seu objetivo é claramente vender lugares através da promoção. Há diferentes maneiras de realizar essa operação e cada campanha publicitária é dirigida a atingir objetivos específicos de acordo com o produto à venda. No caso da cidade turística podemos afirmar que esse produto é a paisagem – o aspecto visual, as feições do território, a aparência dos lugares – imbuída de uma identidade cultural.
É interessante observar que, em relação à propaganda de lugares turísticos, muito raramente vemos cenas de trabalho ou ambientes simbolizando artefatos tecnológicos. Mesmo numa área de produção não se mostra o trabalho ou o comércio, mas o produto e as pessoas celebrando uma “festa do vinho”, por exemplo, numa região de vinícolas. Estamos, portanto, sempre em contato com “representações” do cotidiano do trabalho, um recorte e um aspecto destacado de todo.
Não é sem razão que uma das estratégias do mercado de turismo é ressaltar as antíteses entre realidade e imaginário, entre festa e cotidiano, entre lugares de trabalho e lugares de lazer. Agências de viagem veiculam imagens de lugares quase idílicos, induzindo o distanciamento da realidade, persuadindo os turistas a idealizarem os lugares que visitarão como que elaborados unicamente para sua diversão. Quando o turista entra em contato com a realidade concreta provavelmente não deixará de notar os bastidores da vida real; porém os lugares que frequenta – o hotel, o restaurante, o centro comercial – apresentam um cenário ou mesmo uma fachada arquitetônica que o coloca a salvo da convivência com o lado menos glamuroso da cidade, os bairros pobres da periferia e as áreas degradadas.
As imagens das cidades turísticas, sejam elas parciais ou intencionalmente totalizantes, “falsificadas” ou ”autênticas”, divulgam e cristalizam paisagens e identidades culturais selecionadas pelo mercado. O objetivo imediato da propaganda continua sendo manter, através das representações, um valor simbólico suficientemente forte para atrair turistas. Para a população e governos locais, porém, impõe-se o desafio de desmistificar, mais do que essas imagens, o processo pelo qual elas são produzidas e continuamente reelaboradas, tomando para si o controle das decisões sobre a “turisficação” do espaço urbano e da cultura (17).
notas
1
Texto disponível em CdROM "Turismo, Lazer e Revitalização. II Seminário Internacional Visões Contemporâneas". Editado pelo Laboratório de Lazer e Espaços Turísticos (LABLET), PROARQ/FAUUFRJ.
2
SHIELDS, Rob. “A guide to urban representation and what to do about it: alternative traditions of urban theory”. In KING, Anthony D. (editor). Re-presenting the city. Ethinicity, capital and culture in the 21st century metropolis. Basingstoke, Macmillan, 1996, p. 227.
3
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 16.
4
HARVEY, David. Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo, Loyola, 7ª ed, 1998.
5
BIANCHINI, Franco. “The relationship between cultural resources and urban tourism policies: issues from European debates”. In DODD, D; VAN HEMEL, A. M. Planning cultural tourism in Europe. Boekman Foundation, Amsterdam, 1999.
6
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
7
URRY, John. O olhar do turista. Lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. Tradução Carlos Eugênio M. Moura. São Paulo, Studio Nobel, 1996, p. 69.
8
SILVA, Maria da Glória Lanci. “Os cenários do lazer: turismo e transformação da paisagem urbana”. Tese de Doutorado. São Paulo, FAUUSP, 2003.
9
RODRIGUES, Adyr Balastreri. Turismo e espaço. São Paulo, Hucitec, 1999, p. 26-27.
10
DEBORD, Guy. Op. cit., p. 112.
11
ROJEK, Chris. Ways of scape: modern transformations in leisure and travel. London, MacMillan, 1993, p. 133-135.
12
URRY, John. Op. cit., p. 193-194.
13
TUAN, Yi-Fu. Topofilia. Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo, Difel, 1980, p.75.
14
HOUGH, Michael. Out of place. Restoring identity to the regional landscape. New Haven / London, Yale University Press, 1990, p. 149.
15
URRY, John. Op. cit., p. 20.
16
KRIPPENDORF, Jost. Sociologia do turismo: para uma nova compreensão do lazer e das viagens. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989, p.18.
17
Também foram consultados os seguintes títulos: 1. FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura. Globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo, SESC / Studio Nobel, 1997; 2. GOLD, John R.; WARD, Stephen (ed.). Place promotion. The use of publicity and marketing to sell towns and regions. West Sussex, John Willey & Sons, 1994; 3. ZUKIN, Sharon. “Paisagens urbanas pós-modernas”. In Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional / Ministério da Educação e Cultura, vol.24, 1996.
sobre o autor
Maria da Glória Lanci da Silva, mestre e doutora pela FAUUSP, autora do livro "Cidades Turísticas: identidades e cenários de lazer" (Aleph Editora, São Paulo, 2004) e pesquisadora sobre o papel da cultura na renovação de centros urbanos.