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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Esta pesquisa traz um panorama sobre as experiências da comunidade LGBTQI+ em João Pessoa PB. Baseia-se em três aspectos dessas vivências: a ocupação desta população na cidade, as sociabilidades e as territorialidades construídas.

english
This research provides an overview of the experiences of the LGBTQI + community in João Pessoa PB. It is based on three aspects of these experiences: the occupation of this population in the city, the sociability and the built territoriality.

español
Esta investigación proporciona una visión general de las experiencias de la comunidad LGBTQI + en João Pessoa PB. Se basa en tres aspectos de estas experiencias: la ocupación de esta población en la ciudad, la sociabilidad y la territorialidad construida.


how to quote

NEVES, Igor Vinicius Mendes de Araujo; DIMENSTEIN, Marcela. A praça é queer?. Ocupações, sociabilidades e territorialidades da população LGBTQI+ na área central de João Pessoa. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 255.04, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.255/8139>.

Este artigo apresenta parte dos resultados da monografia desenvolvida em 2019 no curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de João Pessoa. A pesquisa em questão objetivava compreender as formas de ocupação da comunidade LGBTQI+ nas cidades contemporâneas, especialmente em João Pessoa (1).

De acordo com as reflexões sobre os termos sociabilidade e territorialidade do sociólogo Nobert Elias (2), pode-se afirmar que essas categorias não são concretas ou físicas, mas resultam em uma produção material do lugar. Além disso, estudar o meio social se faz imprescindível para uma leitura urbana mais aprofundada, ou seja, pensar o urbano através do seu conteúdo social é entender que a cidade não está estagnada, sendo constantemente produzida e (re)produzida.

Os estudos a respeito da comunidade LGBTQI+ (3) aliados aos temas relacionados ao Direito à Cidade são frequentes, pois evidenciam uma incoerência entre o que deveria ser e a realidade vivida por essa população. Preconceito, homofobia e violência são comuns nas pesquisas e trabalhos acerca dessa temática. O relatório anual do Grupo Gay da Bahia – GGB (4) é um dos mais importantes e completos levantamentos estatísticos de homicídios desse público no Brasil, visto que é o único feito até o momento.

Os dados publicados pelo relatório são alarmantes e tratam de violência contra a população LGBTQI+. Expõem que no Brasil, a cada vinte horas, um LGBTQI+ é brutalmente assassinado ou se suicida vítima da LGBTQI+fobia (5), o que coloca o país em primeiro lugar no ranking mundial de crimes contra as minorias sexuais e de gênero.

As autoras Andrea Lima da Silva e Maria de Morais dos Santos (6), no artigo intitulado “O sol não nasce para todos: uma análise do Direito à Cidade para segmentos LGBTQI+”, versam sobre o Direito à Cidade para a população LGBTQI+ no universo de luta de classes, apropriação de territórios e vivência das territorialidades. Defendem que a cidade é palco de grandes eventos históricos para o público citado e ressaltam que as identidades de classe e as manifestações em prol dos seus direitos e hábitos cotidianos se firmam nela.

Paralelamente, as autoras apontam que a cidade é produto de classes dominantes e que, através de um discurso conservador, exclui a possibilidade de acesso, de uma forma ampla, para a comunidade LGBTQI+. É nesse cenário que a pauta do Direito à Cidade entra, não somente no âmbito acadêmico, mas também nas lutas sociais e na agenda dos Direitos Humanos – DH.

Conforme o geógrafo David Harvey (7), a ideia do tipo de cidade que desejamos não pode estar alheia ao tipo de pessoas que queremos ser, ao estilo de vida que pretendemos levar, às relações sociais que procuramos, às ligações com a natureza que nos agradam mais, aos nossos valores estéticos etc. Portanto, o Direito à Cidade

“É muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e as nossas cidades, como pretendo argumentar, é um dos nossos direitos humanos mais preciosos, ainda que um dos mais menosprezados” (8).

A Carta Mundial do Direito à Cidade (9) alega que a população, em especial os grupos vulneráveis e desfavorecidos, deve ter acesso fácil – dentro das concepções de sustentabilidade e justiça social – aos espaços urbanos, para que, assim, possa obter um padrão de vida adequado. A carta afirma que as cidades são espaços de prática e desempenho dos direitos coletivos, a fim de garantir o desfrute igualitário, justo e democrático sem quaisquer discriminações de gênero, idade, raça, condições de saúde, renda, nacionalidade, etnia, condição migratória, orientação política, religiosa ou sexual.

Segundo Henry Lefebvre (10), “a vida urbana pressupõe encontros, confrontos das diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos (inclusive no confronto ideológico e político) dos modos de viver”, pois as ideias e valores que permeiam as divergentes relações sociais dos indivíduos são frutos do trabalho e de suas transformações. Contudo, a realidade nos evidencia a ausência de políticas públicas e afirmativas que visam à proteção e aos direitos básicos para a população em vulnerabilidade social. Consequentemente, a urbe se fecha em torno da heterossexualidade, invisibilizando outras vivências (11).

Portanto, para Andréa Lima Silva e Maria de Morais Santos (12), acessar a cidade em sua integridade e utilizá-la como espaço público representa ultrapassar uma postura particular para transformá-la em um ato político, coletivo e de resistência:

“A visibilidade da diversidade sexual com manifestação pública de afetos acontece tanto pela necessidade subjetiva dos indivíduos, no que diz respeito à expressão dos sentimentos, demanda de quem se apaixona e vivencia relacionamentos afetivos-sexuais; bem como por estratégia de enfrentamento da violência e das inúmeras violações de direitos. A visibilidade afetivo-sexual constitui-se uma necessidade subjetiva comum a todos” (13).

A perspectiva de Claudio Oliveira Carvalho e Gilson Santiago Macedo Júnior (14) fortalece essa ideia, ao reconhecerem a cidade como “um ambiente que mitiga subjetividades, rejeitando as sexualidades e identidades de gênero desviantes da norma sexual posta”. Assim, uma outra cidade é construída, como uma reação e como salvaguarda das ideologias e dos valores dominantes postos pela sociedade heteronormativa (15):

“As ideias da classe dominante se constituem, sobretudo na cidade, como uma questão a ser analisada com bastante cautela, uma vez que preenchem as visões como uma verdade universal a ser adotada. Para além disso: se sustentam através de sistemas já arraigados na sociedade, impedindo a consciência de classe e fortalecendo a exploração e aprofundando as desigualdades sociais” (16).

Os autores explicam o termo “cidade-armário” a partir do entendimento de que os espaços públicos e comuns, frequentemente utilizados pela comunidade LGBTQI+, são mostrados como ambientes de proteção e ocultação das sexualidades não convencionais e heteronormativas.

Entendemos que o convencional e a heteronormatividade são efeitos causados pelos discursos religioso e moralizante, responsáveis por fortalecer a autoridade sobre os corpos que ocupam e transitam na cidade. Esses discursos que impõem formas autoritárias de apreensão do espaço público baseiam-se em binarismos: homem e mulher, heterossexual e homossexual, lícito e ilícito etc., descartando as múltiplas identidades e sexualidades.

Por consequência, a cidade é estabelecida como um cenário de preconceito e violência contra a população LGBTQI+. Ela enfraquece a noção de liberdade de expressão, identidade de gênero e Direito à Cidade, uma vez que tenta estabelecer atividades “corretas” para serem realizadas em seu espaço, especificando lugares “apropriados” (“lugar de respeito” ou “lugar de família”), os quais não estão abertos para a convivência com aqueles vistos como “inapropriados”.

Com base nos apontamentos feitos anteriormente, entendemos que João Pessoa não é exceção à regra. Nessa cidade, podemos encontrar espaços que estão fortemente ligados ao público LGBTQI+. Estes são caracterizados como de apropriação e pertença por essa comunidade, que não transpõe fronteiras na produção de seus corpos, identidades, práticas afetivas e redes de sociabilidade.

Portanto, objetivamos neste artigo identificar as formas de ocupação da população LGBTQI+ no centro da cidade de João Pessoa, mais especificamente no bairro do Varadouro, assim como descobrir as sociabilidades que são produzidas e as territorialidades que são construídas nesse local.

Mapa de localização
Elaboração dos autores, 2020

O bairro do Varadouro está no cerne da história e da cultura pessoense. Permanece se reinventando e se reconstruindo, no cenário contemporâneo, sendo, portanto, produto do meio em que está inserido e reprodutor dos aspectos cotidianos da área. Por ser um espaço antigo, de riqueza arquitetônica e urbanística, é tombado, em nível federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan e, em nível estadual, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba – Iphaep. Abandonado pelas classes altas, hoje, é local de comércio e serviço popular, além de possuir alguns estabelecimentos culturais e casas de shows em funcionamento no horário noturno, atraindo uma diversidade de públicos. O recorte espacial de análise abrange, mais precisamente, a praça Antenor Navarro e o largo São Frei Pedro Gonçalves.

Um dos públicos presentes regularmente nessa área é o LGBTQI+. Diversos são os estudos sobre essa parcela da população, os quais trazem contribuições de diferentes áreas do saber, como história, geografia, antropologia, serviço social e direito. Para a análise feita nesta pesquisa, será utilizada como base a visão da arquitetura e urbanismo. A aproximação com múltiplas áreas do conhecimento ressalta a importância de uma abordagem interdisciplinar para a compreensão de uma comunidade multifacetada existente na sociedade.

As correntes migratórias LGBTQI+ e a cidade utópica

A Revolução Sexual da década de 1960 foi de extrema importância para a emancipação das orientações e identidades desviantes da normativa heterossexual. Ela possibilitou uma articulação nas discussões sobre gênero e serviu como mola propulsora para os movimentos internacionais, principalmente após a Revolta de Stonewall. Esse cenário foi indispensável para a construção de uma nova identidade da comunidade LGBTQI+ na sociedade moderna mundial.

No artigo “’Metronormatividades’ nativas: migrações homossexuais e espaços urbanos no Brasil”, Marcelo Augusto de Almeida Teixeira (17) aponta que o processo de urbanização ocorrido no século 20 nas cidades americanas e no Brasil foi substancial para essa formação identitária. O autor defende que a supervalorização do ambiente urbano na formação identitária dessa população seria julgada criticamente sob o conceito de “metronormatividade”: o urbano como referência absoluta para uma suposta vida de liberdade e satisfação sexual. Dessa forma, a busca por liberdade sexual foi um estímulo das correntes migratórias para as grandes cidades.

Nesses grandes espaços urbanos, as pessoas que desejavam exercer a sua real identidade e ter práticas sexuais íntimas não teriam dificuldades, pelo contrário. O alto fluxo das pessoas, o anonimato, a oferta de corpos, a mobilidade e os espaços que concentravam esses hábitos – como parques públicos, banheiros, casas de banho, estação de trens e galerias de teatro – facilitavam as experiências sexuais e de sociabilidade (18).

Teixeira (19) aponta para uma nova onda de formação de territórios, ocupando regiões específicas e particularmente segregadas nas grandes cidades norte-americanas e no mundo. Para Manuel Castells (20), São Francisco foi um bom exemplo dessa formação de território. O autor expõe que os limites territoriais dos lugares ocupados pela população homossexual tornaram-se base para a criação e a implementação de instituições autônomas, como propriedades, bares, restaurantes, cinemas, centros culturais, associações comunitárias e reuniões de rua.

Diante desse contexto, Teixeira (21) conclui que a migração da população LGBTQI+ para uma área específica da cidade serviu como elemento para a construção de territórios e de uma identidade sexual múltipla. Nesse cenário, existia a possibilidade de esses corpos escaparem da dependência do antro familiar, obtendo liberdade e autoridade sobre si a partir da existência de espaços propícios às oportunidades de encontros íntimos, o que consequentemente ocasionou a formação de territórios identitários de sociabilidade.

No Brasil, a migração para as grandes cidades também foi fundamental na constituição de uma comunidade e na formação de diferentes áreas de sociabilidade homossexuais nas grandes metrópoles. Richard Parker (22) classifica as migrações em diferentes escalas: “da cidade pequena para o centro regional, deste para as metrópoles nacionais e destas para as globais”. O autor aponta para a existência de um circuito subcultural gay nas cidades, como bares, boates, saunas e grupos de sociabilidade. Dessa forma, ele evidencia que o deslocamento das pessoas, em quaisquer escalas, foi fundamental para a formação de subculturas gays metropolitanas e nacionais.

Se é possível afirmar que diferentes fenômenos influenciam na aglomeração de sujeitos específicos na cidade, faz-se necessário compreender que a dinâmica de ocupação dos espaços pode variar no decorrer dos anos. Conforme expõe Maria Elvira Diaz-Benitez,

“Não existe só uma comunidade homossexual, mas sim diversos ambientes homossexuais com diferentes repertórios que se distinguem a partir de características como estilo, aparência, idade, classe, orientação de gênero e, de uma maneira menos explícita, raça, que aparece geralmente incorporada ao fator de classe [...]. Nessas comunidades homossexuais há diversas classificações dos indivíduos – classificações taxonômicas que cumprem a função de organizar a experiência, criar sujeitos e oferecer-lhes espaços específicos nas interações” (23).

Dessa maneira, não é possível identificar um padrão de comunidade LGBTQI+, nem um padrão de apropriação dos espaços. Como explicitado anteriormente, as formas de apreensão dos territórios variam de acordo com as características físicas, econômicas e sociais de cada cidade.

O espaço queer

Para adentrarmos nos debates sobre espaço queer, é necessário conhecer as principais vertentes teóricas que antecederam e deram base a esse conceito. Mesmo que, nos últimos anos, a temática sobre gênero e sexualidade tenha sido abordada pela mídia e por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, grande parcela da população ainda não está familiarizada com o assunto ou não sabe distinguir os diversos termos referentes à pluralidade da sexualidade e da identidade.

Segundo Guacira Lopes Louro (24), no Brasil, mais visivelmente na década de 1980, os primeiros estudos sobre uma identidade homossexual atingiram o âmbito acadêmico a partir de grupos que começaram a discuti-la com base nos princípios teóricos do filósofo Michel Foucault. O historiador francês, sem romper com a política de identidade, colocou em pauta a sua concepção como um fenômeno fixo, mediante antecedentes históricos e sociais. Segundo Louro (25), Foucault concentra em seus estudos apenas o homem homossexual, destacando “o estabelecimento de seus contornos, seus limites, suas possibilidades e restrições”. Os estudiosos da teoria queer indicam que, além de ignorar a sexualidade feminina, tal visão conduz a um efeito regulador e disciplinador, na medida em que estabelece apenas a preferência do objeto amoroso como requisito para a construção de uma identidade sexual. Portanto, essa concepção trouxe diversos questionamentos:

“Como a História da Sexualidade de Foucault havia mostrado, tal escolha do objeto nem sempre tinha se constituído a base para uma identidade e, como muitas vozes discordantes sugeriam, esse não era, inevitavelmente, o fator crucial na percepção de toda e qualquer pessoa sobre sua sexualidade. Este modelo fazia, efetivamente, com que os bissexuais parecessem ter uma identidade menos segura ou menos desenvolvida (assim como os modelos essencialistas de gênero fazem dos transexuais sujeitos incompletos), e excluía grupos que definiam sua sexualidade através de atividades e prazeres mais do que através das preferências de gênero, tais como os/as sadomasoquistas” (26).

As campanhas políticas de identidade, marcadas pelo protagonismo branco e de classe média, já não se sustentavam mais. Para as lésbicas, o movimento perpetuava o privilégio masculino, o que fazia com que suas exigências e suas experiências ficassem à mercê dos homens gays. Essa política excludente também atingia bissexuais, sadomasoquistas, travestis e transexuais. (27).

Em decorrência disso, surgiram proposições e reformulações teóricas pós-identitárias. É nesse cenário que se iniciam as primeiras concepções da Teoria Queer, como uma necessidade de problematizar as noções básicas de sujeito, sexualidade e identidade. As suas definições são bastante fluidas e estão presentes em diversas áreas do estudo, portanto, buscamos nesta pesquisa nos deter nas reflexões da filósofa Judith Butler – pioneira nessa linha de pesquisa –, a qual realiza as ponderações necessárias para a compreensão do sujeito que apreende e compõe o espaço queer.

Butler está em consonância com Foucault ao declarar que a sexualidade é um tipo de experiência consequente de fatores históricos, sociais e culturais e que, dessa forma, não existem papéis sexuais naturais intrínsecos ao ser humano. A filósofa vai além ao expandir essa noção da construção social ligada ao gênero, colocando-o como protagonista na análise dos desejos e das relações sexuais. Para ela, a sexualidade e o gênero são fatores constituintes da identidade, de modo que ambos devem ser desnaturalizados do corpo (28).

A partir do entendimento de que gênero e sexo compõem a identidade do sujeito e de que essas especificidades não são adquiridas naturalmente, mas, sim, construídas por meio de diferentes contextos e atores externos, podemos compreender que o sujeito é consequência e não causa das instituições, dos discursos e das experiências. Butler expõe que essas instituições e a sociedade estabelecem normas a serem seguidas através de gestos, movimentos e estilos corporais que concomitantemente fortalecem a construção da binaridade de gênero: masculino e feminino. Esses atos e gestos performativos que transpõem significados representam o que Judith Butler denomina de performatividade. Na medida em que a linguagem se refere aos corpos ou ao sexo, não faz apenas uma descrição desses corpos, mas também constrói, reconstrói e produz a identidade de gênero. Ao contrário do que a sociedade hegemônica impõe para a aceitação e a compreensão das orientações sexuais e de gênero, o sujeito queer “não está preocupado com a definição, fixidez ou estabilidade, mas é transitivo, múltiplo e avesso à assimilação” (29).

Segundo Cottrill (30), esses corpos opostos à heteronormatividade, não satisfeitos com o ambiente familiar, começam a procurar espaços de liberdade. Esses espaços – denominados heterotopias pelo autor – estão mais próximos da ideia do que seria um espaço queer: um espaço que critique as divisões de sexualidade, de gênero, de classe e de raça; que permita a convivência entre diversas identidades; e que reivindique o território dentro das cidades.

O atual cenário da territorialidade e sociabilidade do Varadouro, João Pessoa PB

A área central de João Pessoa, desde a década de 1990, concentra uma considerável quantidade de espaços voltados à comunidade (31). Ao observarmos nosso objeto de estudo no bairro do Varadouro – a praça Antenor Navarro e o largo São Frei Pedro Gonçalves –, podemos perceber que as diversas formas de apropriação e produção do espaço urbano no decorrer dos anos, bem como as pessoas que frequentam os espaços de sociabilidade, dão forma a um processo contínuo de invenção e reinvenção da cidade.

Sociabilidades da população LGBTQI+ na área central de João Pessoa
Foto Afronte JP, 2019

Sociabilidades da população LGBTQI+ na área central de João Pessoa
Elaboração dos autores, 2020

Quando analisamos esses espaços, optamos por definir a sua ocupação a partir dos conceitos de Rogério Haesbaert e Ester Limonad (32), que trazem boas discussões no que tange às nossas reflexões sobre territorialidade. Os autores argumentam que o território é sempre uma apropriação de um espaço socialmente partilhado e construído. Por essa razão, a noção de território deve partir do pressuposto de que ele é uma construção histórica e social com base nas relações de poder (concreto e simbólico) que envolvem a sociedade e o espaço geográfico. Esses componentes que se tornam território através das ocupações e da dominação social possuem características próprias: trechos de fronteiras demarcados conforme alternam os turnos do dia; uma historicidade própria; relações de identificação cultural; e um espaço imaginário na produção de identidade (33).

Portanto, a definição de território será utilizada aqui como uma apropriação afetiva e cultural de uma determinada parcela da população, ou até mesmo de distintos grupos sociais, gerando identidades territoriais e modificações na ordem espacial e nas relações de sociabilidade.

Rogério Haesbart e Ester Limonad (34) abordam três vertentes das formas conceituais de território. A primeira se define pelo seu atributo jurídico-político, no que concerne às relações de espaço e poder institucionalizado. Nesse caso, um território é controlado e é estabelecido um determinado tipo de poder, especialmente relacionado ao Estado. A segunda vertente é a cultural(ista), na qual a dimensão simbólica é reforçada. Sob essa perspectiva, os diversos segmentos do espaço são vistos como produtos de uma dinâmica de apropriação através da identidade social do grupo de indivíduos e/ou do imaginário (“conjunto de representações, crenças, desejos, sentimentos, em termos dos quais um indivíduo ou grupo de indivíduos vê a realidade e a si mesmo”). A terceira forma de análise está relacionada à vertente das relações econômicas. Com base nessa ótica, pode-se considerar que a territorialização é abordada como um produto espacial do embate entre classes sociais e da relação capital-trabalho. Essa vertente é geralmente utilizada quando se trata, por exemplo, de classes sociais e relações de produção e divisão territorial do trabalho.

A partir da compreensão dos aportes teóricos que envolvem a comunidade LGBTQI+ e das análises de campo realizadas, foi possível descobrir que o recorte de estudo é palco de confluências territoriais. A pesquisa de campo possibilitou a identificação de diversos grupos presentes na área de estudo, sendo eles: lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e drag queens. Além dos grupos que compõem a comunidade LGBTQI+, pôde-se identificar no local a presença de heterossexuais, os quais também possuem várias classificações. Porém, neste artigo, iremos focar apenas na população LGBTQI+.

Constatou-se que a área onde percebemos a maior diversidade de grupos é a praça Antenor Navarro, por existir casarões destinados a shows LGBTQI+ que dividem espaço (metade em cima e metade embaixo) com os rockeiros. Na porção norte da praça, boa parte da concentração é de grupos heteronormativos, que concomitantemente partilham uma parcela do espaço com os frequentadores de bares alternativos. Já no largo São Frei Pedro Gonçalves, não foi possível observar tanta interação entre grupos, visto que a concentração da comunidade LGBTQI+ se dispõe em frente aos edifícios que são sede de atividades para esse público.

Quanto à porção sudeste, as atividades são reduzidas. Esse espaço proporciona poucos acontecimentos no que diz respeito à sociabilidade em lugares públicos, uma vez que está mais afastado da vivacidade da praça e do largo. A concentração das travestis é extremamente sintomática, apesar de pouco expressiva do ponto de vista quantitativo. A maioria delas está nessa localidade por demanda de trabalho.

Partindo para as atividades no local, foi possível identificar: 1) maior dispersão de pessoas na praça no sentido norte, próximo a vendedores ambulantes; 2) pessoas sentadas em frente de alguns edifícios, socializando, bebendo e fumando; 3) pegação entre homens gays nas calçadas em frente de edifícios que estavam fechados; 4) ambulantes vendendo bebidas e lanches ao redor da praça e do largo; 5) algumas pessoas em pé conversando; 6) grupos de dança que estavam com o som do automóvel ligado no trecho de transição da praça para o largo e na escadaria de alguns edifícios; 7) uso de drogas ilícitas, sobretudo em locais mais reclusos; 8) profissionais do sexo à procura e esperando clientes; 9) algumas pessoas em aplicativos de encontros; 10) consumo de bebidas alcoólicas e cigarro na maioria dos espaços; 11) algumas pessoas estavam sozinhas, sobretudo homens, caminhando entre a praça e o largo.

Conforme é possível verificar no mapa abaixo, há dois polos de maior concentração da comunidade LGBTQI+ na área objeto de estudo: em frente à boate Hera Bárbara (A) e em frente à Vila do Porto (B). Os deslocamentos eram feitos a partir dos interesses e necessidades dos usuários: algumas pessoas se deslocavam para comprar bebida com os vendedores ambulantes; outras procuravam ambientes mais reclusos para a compra e uso de drogas ilícitas; drag queens estavam em duas ou mais festas simultaneamente; uns bebiam em locais diferentes antes de entrar no show/festa; outros buscavam um espaço para sociabilizar com os amigos; travestis e transexuais se deslocavam de acordo com a mudança do cenário. Já nos pontos C e D, Espaço Mundo e Mi Casa Su Casa, respectivamente, a concentração é menor. O fluxo e a aglomeração das pessoas dependem das atividades que ocorrem nos estabelecimentos. Já nos sentidos sudoeste e sudeste, a presença das pessoas que utilizam o espaço é praticamente nula. Vale ressaltar que as diferentes atividades encontradas em um mesmo casarão da praça Antenor Navarro ajudam a trazer vitalidade ao espaço público, criando consensos de sociabilidades entre a comunidade LGBTQI+ e os demais grupos aqui listados.

Mapa das sociabilidades dos grupos e consensos com a comunidade LGBTQI+
Elaboração dos autores, 2020

População LGBTQI+ na praça Antenor Navarro
Elaboração dos autores, 2020

População LGBTQI+ na praça Antenor Navarro
Elaboração dos autores, 2020

População LGBTQI+ na praça Antenor Navarro
Foto Afronte JP, 2019

População LGBTQI+ na praça Antenor Navarro
Foto Afronte JP, 2019

Quanto ao turno mais frequentado, é possível perceber a predileção pelo noturno, uma vez que a noite permite que se expressem e compartilhem experiências de forma mais tranquila, reforçando o estigma de que esse período é o de mais liberdade para as sociabilidades avessas à heteronormatividade.

O público LGBTQI+ se apropria de quatro estabelecimentos principais na área de estudo, os quais, segundo os entrevistados, são os mais afáveis para a livre expressão de gênero e orientação sexual. É importante apontar que alguns usuários preferiam utilizar apenas os espaços públicos para sociabilidade, a exemplo da praça e do largo. Para eles, o espaço público seria melhor para a realização de práticas sociais.

Percebeu-se que o público LGBTQI+ frequentador da área percorre grandes distâncias até o local, pois a maioria reside em bairros da zona sul da cidade. Também foi possível encontrar pessoas que moram em municípios vizinhos, como Cabedelo, Guarabira e Rio Tinto. Esse fato corrobora o que Teixeira (35) traz em suas discussões acerca da metronormatividade: a vida urbana nas grandes cidades como referência para a livre expressão da identidade de gênero e orientação sexual.

Trajetória dos usuários de suas moradias até o centro
Elaboração dos autores, 2020

Por fim, nosso estudo mostra que a comunidade LGBTQI+ cria afetos com as duas áreas de investigação e ambos os territórios são espaços de referência para a concepção de múltiplas identidades dentro da população LGBTQI+. Usuários e usuárias de diferentes locais da cidade se deslocam de suas casas com vistas à livre expressão das relações de sociabilidade, sexualidade e identidade, contribuindo concomitantemente para a formação de suas personalidades e constituição de uma identidade coletiva.

Considerações finais

Observar e compreender a cidade envolvem estudar o que é preestabelecido e normatizado pela classe dominante (espaços de repressão), mas também abrangem aquilo que foge à regra e se manifesta (espaços de livre expressão). Os estudos que explanam essa problemática são importantes, uma vez que nos ajudam a entender a pluralidade e as novas formas de apreensão dos espaços na cidade contemporânea.

João Pessoa, assim como muitas outras cidades, enfrenta o problema da segregação socioespacial que evidencia uma sociedade intolerante a algo fora dos padrões heteronormativos, fazendo com que surjam espaços apropriados ou não para a livre expressão das diferentes orientações sexuais e identidades de gênero. Portanto, concluímos este artigo com a ideia de que, como nos grandes centros urbanos, aqui também é possível serem observadas experiências urbanas que escapam da lógica patriarcal heteronormativa, isto é, detectamos práticas de ocupações, sociabilidades e territorialidades das múltiplas orientações sexuais e identidades de gênero na área central da cidade.

O clamor da população LGBTQI+ por espaços de livre performatividade e sociabilidade provoca o debate acerca de temas como o espaço queer. A expressão que mais se aproxima do espaço queer são heterotopias, que, conforme Cottrill (36), têm a capacidade de alterar as regras dominantes do cotidiano e de unir múltiplos espaços diferentes entre si. Olhando para a praça Antenor Navarro e o largo São Frei Pedro Gonçalves, podemos inferir que o objeto de estudo seria uma heterotopia: de dia, comporta o uso predominante comercial; de noite, o cenário da vida noturna da comunidade LGBTQI+ e de tantos outros grupos.

No entanto, seria possível afirmar que apenas a existência de uma heterotopia garante um pleno respaldo à espacialização queer das sociabilidades avessas à heteronormatividade na área central de João Pessoa? Como existência intrínseca, sim; como situacionalidade contextualizada, talvez.

Pudemos identificar a presença de corpos queer que dividem espaços com vários outros grupos em uma área que tem suas dinâmicas cotidianas bastante fluidas. Trata-se de uma característica do espaço queer, porém, segundo Cottrill (37) – apoiado nas discussões do autor Christropher Reed – além de o espaço queer agir como uma crítica a outros espaços, este deve transpor as territorializações, se reivindicando/firmando em outros locais da cidade e em outros turnos além do noturno, para que, dessa maneira, a população LGBTQI+ garanta seus direitos baseada nas concepções do Direito à Cidade presentes na introdução deste artigo.

Por fim, ansiamos que esta pesquisa acadêmica venha provocar novas investigações e abordagens no âmbito da arquitetura e urbanismo, principalmente em pesquisas que incorporem novas leituras e representações da cidade contemporânea. Além disso, acreditamos que a própria cidade pode ser favorecida, visto que terá em mãos dados referentes à sua dinâmica social e territorial, a fim de que, desse modo, sejam efetuadas futuras Políticas Públicas destinadas à população aqui estudada.

notas

1
NEVES, Igor V. A praça é queer? Ocupações, sociabilidades e territorialidades da população LGBTQI+ na área central de João Pessoa. Trabalho de conclusão de curso. João Pessoa, Unipê, 2019.

2
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

3
Representa, respectivamente: lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers e intersexuais adentro do movimento social de defesa dos direitos desses grupos.

4
O Grupo Gay da Bahia é uma associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil. Fundado em 1980 por Luiz Mott, a organização não governamental atua na luta contra a LGBTQI+fobia, na prevenção do HIV e da AIDS e na conscientização dessa comunidade acerca dos seus direitos como cidadãos.

5
É a união dos termos homofobia, lesbofobia e transfobia, que representam, respectivamente, a aversão aos homossexuais, às lésbicas e aos transexuais. O termo surgiu na 18º Parada Gay de São Paulo, que apresentava a temática: “País vencedor é país sem homolesbotransfobia: Chega de mortes! Criminalização já!”. O tema do evento foi escolhido pela Associação da Parada do Orgulho LGBTQI+ – APOLGBT em parceria com a comunidade LGBTQI+ e a mobilização nas redes sociais.

6
SILVA, Andréa Lima; SANTOS, Maria de Morais. ‘’O sol não nasce para todos’’: uma análise do direito à cidade para segmentos LGBT. Ser Social, n. 37, Brasília, jul./dez. 2015 <https://bit.ly/3kHGNUC>.

7
HARVEY, David. Cidades Rebeldes. São Paulo, Martins, 2012

8
Idem, ibidem, p. 28.

9
A Carta Mundial do Direito à Cidade é um documento produzido a partir do Fórum Social Mundial Policêntrico, que aconteceu em 2006 na cidade de Porto Alegre. O documento foi concebido por organizações não governamentais, associações de profissionais, grupos de movimentos sociais, fóruns, redes nacionais e internacionais da sociedade civil.

10
LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo, Moraes, 1991.

11
CARVALHO, Claudio Oliveira; JÚNIOR, Gilson Santiago Macedo. “Isto é um lugar de respeito”: a construção heteronormativa da cidade-armário através da invisibilidade e violência no cotidiano urbano. Revista de Direito a Cidade, n. 1, Rio de Janeiro, jan. 2017 <https://bit.ly/2UpuGAU>.

12
SILVA, Andréa Lima; SANTOS, Maria de Morais. Op. cit.

13
Idem, ibidem.

14
CARVALHO, Claudio Oliveira; JÚNIOR, Gilson Santiago Macedo. Op. cit.

15
O termo heteronormatividade surgiu na década de 1990 para compreender como a sociedade lida com a sexualidade. É fruto do entendimento do humano a partir do “corpo – gênero – sexualidade” e dos gêneros masculino e feminino, bem como da relação entre estes. A estrutura social privilegia a heterossexualidade como norma e/ou padrão, afetando a possibilidade de compreensão das demais sexualidades não heterossexuais. Esse fenômeno de modelo patriarcalista se torna também um padrão político e econômico a ser seguido.

16
CARVALHO, Claudio Oliveira; JÚNIOR, Gilson Santiago Macedo. Op. cit.

17
TEIXEIRA, Marcelo Augusto de Almeida. “Metronormatividades” nativas: migrações homossexuais e espaços urbanos no Brasil. Áskesis, São Paulo, n. 1 jan.-jun. 2015 <https://bit.ly/3hMYksK>.

18
BECH, Henning. When men meet: homosexuality and modernity. Cambridge, Polity Press, 1997.

19
TEIXEIRA, Marcelo Augusto de Almeida. Op. cit.

20
CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. O poder da identidade. 9ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018, p. 332-340.

21
TEIXEIRA, Marcelo Augusto de Almeida. Op. cit.

22
PARKER, Richard. Beneath the Equator: Cultures of desire, male homosexuality and emerging gay communities in Brazil. Nova York, Routledge, 1999.

23
DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira. Algunos comentarios sobre prácticas sexuales y sus desafíos etnográficos. Apuntes CECYP, n. 23, Buenos Aires, 2014 <https://bit.ly/3xRG0o5>.

24
LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer: Uma política pós-identitária para a educação. Estudos Feministas, n. 2, São Paulo, jul./dez. 2001 <https://bit.ly/3wKOgVy>.

25
Idem, ibidem.

26
LOURO, Guacira Lopes. Op. cit.

27
Idem, ibidem.

28
SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte, Autêntica, 2012.

29
Idem, ibidem.

30
COTTRILL, J. Matthew. Queering Architecture: Possibilities of Space(s). Tese de doutorado. Miami, Miami University, 2006.

31
OLIVEIRA, Thiago de Lima. Engenharia Erótica, Arquitetura dos Prazeres: cartografias da pegação em João Pessoa, Paraíba. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PPGA UFPB, 2016, p. 83.

32
HAESBAERT, Rogério; LIMONAD, Ester. O território em tempos de globalização. Revista Eletrônica de Ciências Sociais Aplicadas e outras coisas, n. 2, Rio Grande do Sul, ago. 2007.

33
Idem, ibidem.

34
Idem, ibidem.

35
TEIXEIRA, Marcelo Augusto de Almeida. ‘’Metronormatividades’’ nativas: migrações homossexuais e espaços urbanos no Brasil. Áskesis, n. 1, São Paulo, jan./jun. 2015 <https://bit.ly/3wVgZqG>.

36
COTTRILL, J. Matthew. Op. cit.

37
Idem, ibidem.

sobre a autora

Igor Vinicius Mendes de Araujo Neves é arquiteto e Urbanista graduado pelo Centro Universitário de João Pessoa, Unipê (2019). Atualmente é aluno especial de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPB.

Marcela Dimenstein é arquiteta e Urbanista graduada pela UFPB em 2011, Mestre pelo PPGAU UFPB em 2014 e Doutoranda pelo PPGAU UFRN desde 2017. Atualmente é professora assistente do Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de João Pessoa e do Centro Universitário IESP.

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