O interesse de pesquisadores pelo projeto arquitetônico e seu processo tem crescido ultimamente, seguindo um movimento que se iniciou, pelo menos no Brasil, após os anos de 1980. Desde as importantes publicações de Elvan Silva, Mário Julio Kruger e Carlos Eduardo Comas (1), diversas abordagens enriquecem o debate em torno do tema. A reflexão aqui apresentada trata sobre processo de projeto em arquitetura, a partir do estudo da Casa de Ópera de Sidney, de 1957, do arquiteto dinamarquês Jorn Utzon. Nesse sentido, não se compromete em apresentar o edifício como produto final, seus detalhes e qualidades, mas o trata principalmente a partir de seu processo de elaboração.
Correndo risco de simplificações, mas evitando generalizações, entende-se que projeto em arquitetura é uma atividade prática e criativa, elaborada por autores, que comunica antecipadamente por meio de representação geralmente gráfica uma obra arquitetônica. Certamente outras definições poderiam ser dadas, mas parece útil partir desta para que ao longo do texto novos elementos sejam incluídos e alimentem a discussão. Esta definição apresenta ao menos três elementos satisfatórios para abordar o processo de projeto: a ação criativa, a presença de autores e o desenho como ferramenta do processo.
Apesar de pouco explorado, sobretudo pelos pesquisadores brasileiros, Utzon é um dos mais importantes nomes da arquitetura do século 20. É importante ressaltar sua relevância e contribuição para a arquitetura, principalmente no recorte da chamada terceira geração da arquitetura moderna. Sua obra, estudada e atestada por importantes autores como Sigfried Giedion, Kenneth Frampton e Philip Drew (2), caracteriza-se por uma particularidade: enquanto grandes arquitetos modernos, como Le Corbusier ou Mies van der Rohe, costumavam projetar edifícios com linguagens de fácil identificação, Utzon pareceu evitar este caminho. Diferentes escalas, materiais, técnicas construtivas e formas fazem do reduzido conjunto de edifícios projetados e construídos por ele um campo fértil, heterogêneo e provocante para interessados na pesquisa em projeto (3).
A Casa de Ópera de Sidney destaca-se como o mais importante edifício deste arquiteto. A solução formal inovadora desafiou a técnica daquele momento e contribuiu para estabelecer no campo arquitetônico novas ferramentas de projeto, como a utilização de softwares. Seu processo projetual é um exemplo claro das complexidades envolvidas nesta atividade, com variados elementos interferindo no andamento do processo de criação e execução da obra. Nesse sentido, parece útil trazer luz a isto para aprofundar e contribuir com o debate sobre o projeto de arquitetura. A polêmica política e pessoal, parcialmente conhecida, que afastou o arquiteto da conclusão do edifício não é interesse central deste trabalho, entretanto, ela é trazida ao trabalho para fornecer elementos que ampliam a compreensão sobre os atores envolvidos neste projeto.
A exposição do texto busca coincidir com a cronologia do processo e construção do edifício, entretanto, eventualmente, alguns avanços e retornos são feitos para chamar à atenção sobre elementos do projeto. Ao longo de todo o trabalho são utilizados como material de pesquisa os três cadernos de desenhos de projeto apresentados ao longo do processo: o primeiro entregue no concurso em 1957, o segundo Red Book apresentado em 1958, e o terceiro Yellow Book apresentado em 1962. Para auxiliar a leitura, foram convocados – além dos historiadores já apresentados anteriormente – os autores Alberto Peñin e Peter Murray (4) que produziram pesquisas sobre este edifício. Essas informações gráficas e textuais são confrontadas com alguns dos principais elementos do processo de projeto detalhadamente discutidos por Bryan Lawson (5), importante referencial teórico para o tema. Espera-se a partir deste caso, ampliar os conhecimentos sobre o processo de projeto arquitetônico não só deste edifício, assim como enriquecer a reflexão sobre o processo de projeto em arquitetura.
O processo de projeto
Bryan Lawson (6) lembra que há diferentes tipos de desenhos durante o processo de projeto. Um deles é o desenho de apresentação, feito para transmitir uma ideia ao cliente. Estes desenhos sintetizam de maneira didática as principais informações, e evitam uma linguagem técnica. Outro tipo de desenho, ainda segundo o autor, são os de produção, elaborados para a execução do projeto. Estes sim mais técnicos, são levados ao canteiro e devem comunicar detalhadamente as informações necessárias para que as soluções idealizadas no ateliê sejam executadas no canteiro. Por fim, os desenhos de projeto (7), são aqueles elaborados durante o processo, nos quais linguagens abstratas ou técnicas podem se misturar. Eles revelam um processo de conhecimento e criação de algo que não está claro. Podem gerar novas informações, revelar dificuldades, e como definem Ana Gabriela Godinho Lima, Michael Biggs e Daniela Buchler (8), são ferramentas de construção da habilidade do arquiteto em desenvolver e sofisticar conceitos.
Os desenhos de projeto são extremamente úteis para a pesquisa do processo, entretanto, frequentemente os menos disponibilizados e acessados. Além disso, eles também são confundidos com “croquis de apresentação”, que ao contrário dos croquis do processo que retratam uma “conversa” entre o projeto e projetista, são croquis feitos ao final, como síntese conceitual da ideia de projeto. Os documentos de projeto da Casa de Ópera de Sidney consistem em sua maior parte, em desenhos resumidos de execução e desenhos de apresentação. Há poucos desenhos de projeto, e o que se sabe sobre o desenho de Utzon é relatado por Philip Drew (9), em dois tipos distintos: um espontâneo e exploratório, e outro delicado com uma precisão quase digital. Cada um serve a propósitos diferentes. Nas palavras do autor, “a primeira [maneira de desenhar] é sobre espontaneidade, como um tatear no escuro em busca de algo, a segunda é semelhante a uma planta de engenharia naval bastante precisa, confiável e exata” (10). Em outro momento, ao falar sobre o desenho de projeto, Drew descreve que:
“Os desenhos de Utzon também revelam quais são suas intenções. Os borrões pesados em lápis 6B eram reservados aos seus primeiros pensamentos enquanto suas ideias são formadas e ainda tentativas. Giram ao redor de “constelações” vagas desestruturadas e expressivas. Estes primeiros croquis são explorações com acidentais sugestões, pequenas pistas e pontos de partida” (11).
O que o relato de Drew parece sugerir é que Utzon espera do ato de desenhar a resposta para o problema mesmo que o próprio problema ainda não tenha sido definido. Nesse sentido, essas explorações com acidentais sugestões são croquis mais comprometidos em encontrar os problemas do que soluções. No processo de projeto da Casa de Ópera de Sidney esses desenhos começam antes do andamento do concurso, quando o arquiteto ainda elaborava sua proposta de projeto. Entretanto, este material não é facilmente encontrado, restando à pesquisa os desenhos de processo a partir do concurso. Em um deles, disponibilizado na contracapa do Yellow Book, está destacado pelo arquiteto uma solução que parece aceitável para resolver o problema do encontro das coberturas.
Já os desenhos das pranchas do concurso foram responsáveis por chamar a atenção de Eero Saarinem, um dos integrantes do júri. Sigfried Giedion (12) aponta que a participação do arquiteto finlandês foi decisiva para a escolha do projeto de Utzon, e Murray reforça que a cor branca da cobertura em forma de conchas, e sua relação natural com a baía e com as velas dos barcos, impressionou os avaliadores (13). O documento oficial divulgado pelo juri dizia que:
“O desenho é simples, quase um diagrama. Mas estamos convencidos de que representa um conceito que pode se transformar em um dos edifícios mais representativos do mundo. Esta proposta é a mais original e criativa também. Não obstante, estamos convencidos de seus méritos: em primeiro lugar a simplicidade de sua organização e depois a unidade da expressão estrutural. Acreditamos que esta seja uma composição arquitetônica fascinante, perfeita para a paisagem de Bennelong Point. As abóbodas em formato de conchas se inserem harmoniosamente na baía, como as velas de um barco” (14).
A verdade é que nem Utzon, tampouco os jurados, sabiam as dificuldades construtivas que as impressionantes abóbodas trariam futuramente. Se por um lado este desenho de apresentação foi capaz de convencê-los sobre quem deveria ganhar o prêmio, nada dizia – e talvez nem pretendesse – sobre como tudo aquilo seria construído. Um olhar comparativo entre o desenho de apresentação do projeto e a solução final sugere uma falta de certeza de Utzon sobre a execução da obra, resultado da distância histórica entre desenho do ateliê e a prática do canteiro que acompanha este ofício desde o Renascimento.
Os desenhos de apresentação do edifício são em sua maior parte dedicados à cobertura, o elemento de maior dificuldade construtiva. Entretanto, isso não significa que a plataforma não era uma preocupação do arquiteto. Conforme novos desenhos de apresentação eram divulgados ao longo do processo, mudanças na estrutura geral da plataforma também eram percebidas. O piso interior da sala de concerto e sala de ópera ganham novas geometrias, as escadarias mudam de dimensões e novos platôs são distribuídos. Alguns acessos são eliminados e outros acrescentados; o restaurante, sob a cobertura menor, muda de localização e recebe uma linha de projeção de cobertura que projeta com mais clareza seus limites. São desenhos que sintetizam ideias que foram elaboradas e elegidas como aceitáveis, e que mesmo depois de apresentadas, passaram por outro momento de análise, resultando em uma nova síntese. Em outras palavras, parece uma estratégia de análise por meio da síntese, aprendendo sobre o problema com tentativas de criar soluções.
Nesse sentido, dois procedimentos são vistos no processo de Utzon: o primeiro, não tão óbvio quanto pode parecer, é que os problemas mais fáceis foram resolvidos antes dos mais difíceis, e isso foi possibilitado, em partes, pela própria organização formal da edificação. É razoável pensar que as coberturas só pudessem ser construídas após a construção da plataforma que as apoia, e por isso ela deveria obrigatoriamente ser projetada e executada primeiro. Mas o número reduzido de desenhos da plataforma sugere que este elemento apresentava poucos problemas técnicos em comparação com as coberturas. Além das alterações descritas no parágrafo anterior, as pranchas mostram alguns detalhes construtivos de vigas protendidas que chegam a 1,40m de altura e vencem um vão de 50m, livrando o térreo de pilares e permitindo o acesso e circulação de automóveis (15). Resolver os problemas mais fáceis nem sempre é uma atitude “natural” do processo, e não é incomum que alguns projetistas se concentrem em problemas mais difíceis para depois atacarem os mais fáceis.
O segundo ponto, em parte consequência do primeiro, é que problemas específicos eram resolvidos simultaneamente ou até mesmo antes de problemas gerais. Em 1958, Utzon encomendou uma peça de tapeçaria de Le Corbusier para colocar em um dos foyers, desviando a atenção para um problema específico do design de interiores, aparentemente sem relevância naquele momento, enquanto problemas gerais da plataforma sequer estavam completamente resolvidos. Isto reforça uma visão já recusada pela maior parte dos pesquisadores de que o processo de projeto parte do geral para o particular em um processo linear e não retornável. Muitas soluções “menores” e mais específicas podem ser resolvidas, justamente porque são mais fáceis. Este procedimento também contesta a interpretação cartesiana de que o processo de projeto se concentra em resolver partes por partes, para posteriormente, encontrar o todo. O que se vê, ao contrário, é que o todo e as partes são resolvidos simultaneamente, e problemas paralelos de diferentes escalas são enfrentados com a mesma importância.
O que permanece sólido no processo de projeto das plataformas é sua organização em platôs e escadarias que reproduzem a monumentalidade que Utzon havia conhecido nos sítios maias e astecas (16). Esta inspiração, reforçada pelo próprio arquiteto em artigo publicado na revista italiana Zodiac em 1959 (17), faz parte de um arquivo pessoal presente em todo projetista, e que é acessado nos momentos que exigem criatividade. A prática projetual, como prática cultural, carrega as marcas de identidade (18), e por isso está carregada de valores e visões de mundo daquele que a executa. Nesse sentido, nunca um projeto é neutro, e contem sempre a visão de mundo do arquiteto com suas subjetividades. Por sorte, estava claro para Utzon a origem simbólica e formal de sua plataforma, reforçando um valor transcultural que permaneceria em seus projetos após a experiência em Sidney.
Entretanto, a divergência de interpretações sobre a origem da cobertura, somadas à ausência de elementos textuais (19), corroboram para explicações que variam desde um monstro rastejando até uma orgia de tartarugas. Apesar de inúmeras lendas sobre a verdadeira origem da solução esférica, a teoria mais aceita indica que a grande inspiração tenha sido as velas dos barcos que Utzon costumava frequentar nos estaleiros de Aalborg, na Dinamarca. Por mais que os esboços conceituais do arquiteto não evidenciem nenhuma relação com barcos, as primeiras imagens de apresentação, mostradas nas pranchas do concurso, se aproximam da ideia de velas infladas pelo vento, como tecidos sofrendo deformações, fazendo desta associação a mais convincente.
Parte dos desenhos da cobertura procuram demonstrar as soluções construtivas deste elemento. Entretanto, é comum que os desenhos de execução sejam menos comuns no conjunto de imagens apresentados pelos arquitetos. Primeiro porque sua complexidade técnica exige conhecimentos específicos de interpretação nem sempre ao alcance de todos. Segundo porque um edifício de grandes dimensões, como é o caso, exige o acompanhamento técnico de engenheiros. Em Sidney, o escritório britânico de engenharia Ove Arup ficou encarregado dos projetos de engenharia. Nesse sentido, o que se vê mais próximo desses desenhos apresentados ao público são resumos, ou diagramas, com algumas pistas das soluções técnicas. Além da cobertura, eles também tratam dos interiores das salas, que por mais que não tenham sido executadas de acordo com as ideias iniciais de Utzon, e sejam responsabilidade dos novos arquitetos que assumiram o projeto, indicam soluções preliminares que o arquiteto estudava.
Nos desenhos que Utzon enviou ao concurso, a cobertura do edifício aparece desenhada como finíssimas cascas de concreto que aparentemente estão relacionadas com outros projetos da mesma época, como as paraboloides hiperbólicas de Felix Candela e as cascas de Pier Luigi Nervi. Entretanto, elas por si só são dotadas de grande carga expressiva original, que parecem apontar para outro tipo de cobertura, menos geométrica do que as de seus contemporâneos. No caderno de 1958, os desenhos de execução insistiam na ideia da cobertura como casca de concreto, com as angulações, diâmetros de curvatura e precisões aparentemente refinadas. Mas no caderno de 1962 os desenhos mais precisos indicam uma cobertura ogival, correspondente com a solução executada, na qual dois meios arcos se apoiam e anulam suas cargas. Neste mesmo volume, já são detalhadas as peças pré-fabricadas da estrutura, assim como os revestimentos cerâmicos da cobertura.
Apesar das diferenças de linguagem, função e objetivo dos desenhos de Utzon, todos eles mantêm certa integridade na relação entre cobertura e plataforma. Nesse sentido, por mais que a solução final não fosse exatamente clara, o arquiteto insistia no contraste entre a cobertura aérea e leve pousada sobre uma plataforma telúrica e pesada. Este princípio é o que Lawson (20) descreve como gerador primário: “uma ideia relativamente simples logo no início do processo de projeto [...] usada para reduzir a variedade de soluções possíveis”.
Este gerador primário fica evidente enquanto o arquiteto busca resolver o problema das vedações do edifício. Não era possível realizar o desenho dos caixilhos antes da solução exata da cobertura, por isso, somente após os esforços realizados para a solução das abóbodas foi possível resolver os fechamentos de grande complexidade geométrica. O que aparentemente Utzon sabia é que qualquer solução equivocada no desenho dos caixilhos poderia por abaixo o princípio da cobertura sobre o pódio. Fechamentos grosseiros e mal desenhados provavelmente transmitiriam a sensação de coberturas apoiadas nos caixilhos, e por isso deveriam ser evitados. Esta preocupação é vista já nos primeiros desenhos de enviados ao concurso, nos quais não se pode sequer saber qual a solução para as vedações, já que elas inexistem naquela representação.
Em 1957, após o anúncio do vencedor, a maquete para apresentar o projeto à população australiana e ao júri mostra uma solução de persianas horizontais que logo em seguida seriam substituídas por peles de vidro. A partir do Red Book, os estudos desses fechamentos constituem uma linha contínua de investigação do arquiteto, e o vidro adota uma configuração diferente: um zigue-zague em planta, parecendo uma tela dobrável. Essa solução faz sentido do ponto de vista estrutural, pois os diferentes planos cruzados suportam um ao outro contra cargas de vento. Nas elevações, esse fechamento é visto como um plano dividido em pedaços retangulares com travessas horizontais descontínuas. Se por um lado tal solução agradasse por não ferir a ideia inicial de suspensão das coberturas, essa solução aponta para uma questão importante: como esses planos se conectariam com o lado interno curvo das conchas? A dificuldade em resolver o encontro dessas peças com a cobertura provou que esse fechamento não era o mais adequado.
Assim, uma nova proposta foi produzida no Yellow Book, na qual o arquiteto abandonou a pura verticalidade anterior para abraçar a solução de membranas articuladas como as asas de um pássaro. Nesta configuração, os montantes evitariam tocar no chão e estariam fixados nos arcos da parte interna da cobertura, contribuindo para a sensação de leveza da cúpula. Entretanto, essa solução não foi executada. Como parte das medidas de corte de gastos, o governo australiano não aprovou o resultado e o desenho final para as paredes de vidro foi desenvolvido por Peter Hall, arquiteto que substituiu Utzon após sua demissão.
Mas a solução dos fechamentos não foi só pensada somente para transmitir leveza e suspensão e com isso preservar o gerador primário. Cabe lembrar que os problemas de projeto são multidimensionais, e por isso, como esclarece Bryan Lawson (21) “é raríssimo que a coisa projetada tenha alguma parte que sirva a um único propósito”. Os fechamentos também deveriam proteger os interiores dos ruídos externos, assim como das intempéries. O que se vê como resultado é uma solução integrada que atende a um número satisfatório de propósitos.
As restrições que não permitiram a execução do fechamento de acordo com os ideais de Utzon não são incomuns. Sobre restrições de projeto discutidas por Lawson (22), é importante observar resumidamente três pontos fundamentais. O primeiro indica agentes de restrição numa escala crescente de menor para maior rigidez: projetista, cliente, usuário e legislador. É importante lembrar que no caso aqui estudado, e como também prevê Lawson, apesar desses papeis tenderem a se misturar, as restrições trazidas pelo projetista sempre serão mais flexíveis se comparadas com as do cliente, usuários ou legisladores. O cliente de Utzon era o Comite de arquitetura do Ministério de Obras; os usuários eram os músicos, funcionários e expectadores; e o legislador consistia nos órgãos tradicionais que regulam as leis edilícias da cidade.
O segundo ponto é que esses agentes devem lidar com restrições que são internas e externas ao projeto. A primeira, mais fácil de resolver, é trazida pelos clientes e pelo próprio projetista, como por exemplo o programa de necessidades de uma sala de concertos, capacidade de plateia, entre outros. A segunda pode estar relacionada a fatores externos ao projeto, como as condições do terreno, localização, fatores climáticos, entre outros. No caso de Sidney um exemplo de restrição externa é a localização do terreno em uma península artificial que dificulta a construção de subsolos.
O terceiro ponto trata das funções das restrições. Segundo Lawson (23), o propósito das restrições é “assegurar que o sistema ou objeto projetado cumpra, de maneira mais adequada possível, as funções dele exigidas”. Elas orientam os critérios usados pelos projetistas para a tomada de decisões, podendo ser quatro funções básicas das restrições: radicais, práticas, formais e simbólicas. De forma resumida, as radicais tratam do objetivo que está na raiz do projeto, aquilo que é fundamental, ou mais óbvio, e por isso quase sempre são dominantes. As restrições práticas estão ligadas aos limites da construção (técnicas e materiais) assim como o desempenho da edificação. As formais tratam da composição visual do projeto e tendem a ser mais requeridas pelos arquitetos. Por fim, as simbólicas tratam dos alcances filosóficos e conceituais do projeto.
Contextualizando ao caso, é possível classificar que a relação entre a cobertura e a plataforma do edifício está relacionada às restrições formais e simbólicas trazidas ao processo principalmente pelo arquiteto e respeitadas pelos outros geradores de restrições. Já as restrições práticas parecem ter sido negociadas entre o arquiteto e a equipe de consultores e responsáveis técnicos do Ove Arup. Um exemplo foi a decisão de montar as peças pré-fabricadas da cobertura já revestidas com as cerâmicas, uma vez que a colocação manual seria construtivamente inviável (24). Por fim, uma das restrições radicais, e talvez a mais importante considerando a função do edifício, foi a que aparentemente menos orientou os critérios de decisões.
Sob o ponto de vista acústico, o edifício tinha poucas referências. Uma delas era o Lincon Center de Nova York e a sala da Berlin Philharmonic, similares pela magnitude e complexidade do programa. A solução mais detalhada por Utzon para o interior da sala maior, já em 1962, consiste em uma série de triângulos de madeira laminada nas laterais e no teto, como uma grande capa sobre a sala, que permite múltiplas reflexões. Esta geometria, cujos estudos acústicos ficaram a cargo de Yuzo Mikami, possibilita um sistema geométrico flexível que se adapta naturalmente a curva da estrutura e a qualquer nova circunstância que surgisse durante a construção. Para a sala menor, a proposta sugerida inicialmente consistia em uma série seções de côncavas, que revelou posteriormente problemas graves de reflexão. Utzon então propôs uma nova solução obtida do deslizamento de um cilindro maior gerando perfiz convexos (25).
Mesmo com a nova solução da sala menor mostrando-se satisfatória, o comitê de arquitetura do Ministério de Obras exigiu uma maior coerência e unidade estética entre as duas salas. Yuzo Mikami (26) aponta esse momento como um período de “pânico” do arquiteto, e mais um dos inúmeros confrontos que contribuiu para o rompimento entre Utzon e o cliente. Ao final, o que foi executado pouco tem a ver com aquilo que estava sendo elaborado por Utzon e seus consultores acústicos, e hoje, o que se sabe é que os problemas acústicos da sala maior geram despesas desnecessárias e prejudicam de forma drástica a qualidade acústica da sala (27).
O que parece ter ocorrido neste momento é recorrente nos processos de projeto, e pode ser entendido como a quebra de um pacto consueto dos limites das restrições. Este suposto pacto informal funciona como um “código de comportamento” e orienta até onde cada agente deveria interferir no processo. Por mais que não seja formalizado, espera-se que o projetista respeite as restrições dos legisladores e que esses, também respeitem as decisões formais que não afetem restrições legais. Da mesma forma, caso o cliente considere que a solução proposta pelo arquiteto esbarra nas restrições orçamentárias, é natural que novas formulações do problema sejam elaboradas pelo arquiteto, visando alternativas cabíveis.
De certa forma é comum que clientes individuais interfiram muito mais nas restrições formais e simbólicas dos projetos, afinal, não é tão simples para os arquitetos conferirem mensagens mais pessoais apenas a partir de sua intuição. Citando a arquiteta Eva Jiricna, Bryan Lawson (28) argumenta que os piores clientes são aqueles que tudo permitem e não participam do processo, e frequentemente, quando as restrições são aproveitadas, o resultado por ser muito positivo. Por outro lado, é também esperado que um comitê de obras de um concurso que já foi vencido tenha algum afastamento de decisões técnicas e formais da equipe vencedora. Em resumo, todos os agentes são responsáveis por impor restrições, mas ao que parece, no processo da Casa de Ópera de Sidney, o comitê de obras do governo australiano rompeu os limites de restrições do processo de projeto.
De certa forma, é compreensível que alterações de roteiro, sobretudo em um edifício desta dimensão, sejam tomadas pelos agentes. Em 1965, após o desligamento de Utzon, a nova equipe de engenheiros e arquitetos alteram significativamente o projeto para as duas salas. A sala maior perde a função de ópera e concertos e passa agora a ser apenas sala de concertos. Terraços de plateia são agrupados no entorno do palco e agora já não há mais a necessidade de fosso para orquestra. A plateia teve um aumento da capacidade de público de 2.000 para 2.700 ouvintes e o forro acústico também sofre alterações significativas. Esta é uma evidência de que os problemas de projeto não podem ser totalmente determinados antes de se começar o processo. Antes que algumas soluções sejam testadas, alguns problemas permanecem escondidos e como aponta Lawson (29) “é muito provável que objetivos e prioridades mudem durante o processo de projeto assim que as consequências das soluções começarem a aparecer”.
No conturbado processo de projeto da Casa de Ópera de Sidney muitos fatores contribuíram para o triste desfecho do processo, apesar do ótimo resultado do projeto como um todo. Curiosamente, o edifício que projetou Utzon ao campo internacional da arquitetura foi também o motivo de seu isolamento e reclusão após seu desligamento. Um duplo papel do projeto que comprova que não é somente o arquiteto que projeta e transforma o ambiente durante o processo, mas também o processo de projeto também afeta e transforma o arquiteto. Utzon morreu em 2008, cinco anos após ganhar o prêmio Pritzker, sem nunca mais ter voltado à Austrália para ver a obra finalizada.
Considerações finais
O processo de projeto da Casa de Ópera de Sidney é sem dúvida um dos mais românticos e polêmicos do século 20. Todos os imprevistos atribuem uma carga emocional que dificulta uma leitura arrazoada, e o artigo aqui exposto não é imune a isso. Curiosamente, por outro lado, a polêmica deste processo escancara os elementos da realidade que envolvem um processo de projeto, desmitificando uma visão da criação romantizada muitas vezes propagada por profissionais e pesquisadores. Se o resultado final é um dos edifícios mais reconhecidos e emblemáticos da arquitetura moderna, talvez o seja justamente por ter passado por um doloroso processo de imposições, concessões e tensões.
Cabe destacar que são exceções os arquitetos que têm a oportunidade de projetar um edifício desta dimensão, importância e significado. A maior parte dos profissionais tem um portfólio constituído de pequenas e médias obras, frequentemente para clientes individuais. Também é verdade que muita coisa mudou desde que o projeto foi elaborado nos anos de 1950 e 1960 e nesse sentido, caberia perguntar não só o que dessa experiência pode ser aprendido, mas também o que pode ser reformulado. Embora exista atualmente uma demanda por novos tipos de produção do espaço, ainda mais complexos, menos hierarquizados, e novos problemas diferentes dos anos 1950, as práticas e pensamentos reunidos aqui formam um conjunto relevante de experiência de projeto. Em resumo, seis breves reflexões.
Primeiro é compreender a função do desenho e para qual momento e objetivo do projeto ele será usado. Considerar, inclusive, a necessidade do desenho e reconhecer que eventualmente as soluções podem ser encontradas de outra maneira. Segundo é ter clareza que o projeto carrega valores arquitetônicos e é fundamental ao arquiteto reconhecê-los para poder refletir sobre seu processo. Terceiro é saber que os problemas de projeto surgirão enquanto soluções são testadas, e a síntese do projeto também é análise. Quarto é reconhecer que problemas mais fáceis podem ser resolvidos primeiro, a despeito de sua escala no projeto. Quinto é verificar a existência do gerador primário que respeite os valores arquitetônicos, buscando orientar o projeto a partir dele. Nesse sentido, também estar atento que infelizmente, nem todos os projetistas são criativos como Utzon, e por isso é importante também correr o risco de rever o gerador primário ao longo do processo. Por fim, identificar as restrições e agentes do projeto, valorizando suas contribuições e sabendo que cada um tem seu papel e limites para tornar o projeto melhor.
notas
1
SILVA, Elvan. Sobre a renovação do conceito de projeto arquitetônico e sua didática. I Encontro sobre Ensino de Projeto Arquitetônico da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1985; KRUGER, Mário Júlio. Teorias e analogias em arquitetura. São Paulo, Projeto, 1984; COMAS, Carlos Eduardo Dias (Org.). Projeto arquitetônico. Disciplina em crise, disciplina em renovação. São Paulo, Projeto Editores Associados, 1986.
2
GIEDION, Sigfried. Espaço, tempo e arquitetura: o desenvolvimento de uma nova tradição. São Paulo, Martins Fontes, 2004; FRAMPTON, Kenneth. Studies in Tectonic Culture: The Poetics of Construction in Nineteenth and Twentieth Century Architecture. Cambridge, The MIT Press. 1996; DREW, Philip. Tercera Generacion. La significación cambiante de la arquitectura. Barcelona, Gustavo Gili. 1973. E também DREW, Philip. The Masterpiece. Jorn Utzon: a secret life. South Yarra Victoria, Hardie Grant Books, 2001.
3
Josep Maria Montaner argumenta que Utzon é um reflexo tanto da melhor tradição da arquitetura moderna dinamarquesa quanto de inumeráveis influências internacionais. Esta estranha mistura, sabiamente dosada e modelada para cada contexto, outorga um valor especial à obra de Utzon: a conciliação de valores contrapostos. MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno. Arquitetura da segunda metade do século 20. Barcelona, Gustavo Gili, 2001.
4
PEÑIN, Alberto. La transformación del proyecto arquitectónico durante el processo constructivo: la opera de Sydney y el centro pompidou de Paris. Tesis Doctoral. Gandia, Etsab, 2006; MURRAY, Peter. The saga of Sydney Opera House: The dramatic story of the design and construction of the icon of modern Australian. London, Spon Press, 2004.
5
LAWSON, Bryan. Como arquitetos e designers pensam. São Paulo, Oficina de texto, 2011.
6
Idem, ibidem.
7
Donald Schon descreveu o projetista como alguém que conversa com o desenho durante seu processo de projeto. SCHÖN, Donald. The reflective practitioner. Nova York , Basic Books, 1983.
8
LIMA, Ana Gabriela Godinho; BIGGS, Michael; BÜCHLER, Daniela. The Value of Architectural Sketches. Working Papers on Design, 4, ed. Grace Lees-Maffei <https://bit.ly/3z5eAvz>.
9
DREW, Philip. Tercera Generacion. La significación cambiante de la arquitectura (op. cit).; DREW, Philip. The Masterpiece. Jorn Utzon: a secret life (op. cit.).
10
Idem, ibidem, p. 34.
11
Idem, ibidem, p. 43.
12
GIEDION, Sigfried. Op. cit.
13
MURRAY, Peter. Op. cit.
14
PEÑIN, Alberto. Op. cit.
15
Idem, ibidem.
16
CURTIS, William J. R. Arquitetura moderna desde 1900. Porto Alegre, Bookman, 2008.
17
UTZON, Jorn. Platforms and Plateaus: Ideias of a Danish Architects. Zodiac, Milão, 1959.
18
CUFF, Dana: Architecture. The Story of Practice. Londres, MIT Press, 1991.
19
A importância de elementos textuais para o estudo de projeto é defendido por Ruth Verde Zein. Para mais informações, consultar: ZEIN, Ruth Verde. Há que se ir às coisas: revendo as obras. In ROCHA-PEIXOTO, Gustavo; BRONSTEIN, Lais; SANTOS DE OLIVEIRA, Beatriz; LASSANCE, Guilherme (Org.). Leituras em teoria da arquitetura. Objetos. Coleção Proarq, volume 3. Rio de Janeiro, Faperj/Rio Books, 2012.
20
LAWSON, Bryan. Op. cit., p. 53.
21
Idem, ibidem, p. 64.
22
Idem, ibidem, p. 92.
23
Idem, ibidem. p. 100.
24
PEÑIN, Alberto. Op. cit.
25
Idem, ibidem.
26
MIKAMI, Yuzo. Utzon’s sphere Sydney Opera House: How it was designed and built. Tokyo, Shoku Kusha, 2001.
27
Para mais informações, ler: KAMENEV, Marina. Sydney's Opera House: easy on the eyes, not the ears. Time Magazine, Sidney, 2011.
28
LAWSON, Bryan. Op. cit., p. 88.
29
Idem, ibidem, p. 118.
sobre o autor
Márcio Barbosa Fontão é graduado e mestre em arquitetura e urbanismo, docente nos cursos de arquitetura e urbanismo do Centro Universitário Unitoledo e Centro Universitário Unisalesiano.