“Quanto mais os olhos e os ouvidos se tornam capazes de pensamento, tanto mais se aproximam dos limites em que se tornam imateriais”.
Friedrich Nietzsche, 1878
A forma aniquilou a arte. Muito da história grega que se conhece hoje vem de uma arte há muito tempo já extinta. Trata-se da pintura em vasos a qual declinou fortemente no início do século 5 a.C. Amphora, Hydria e Kantharos eram alguns dos típicos vasos que, produzidos em diversos tamanhos, estavam associados a uma forma e uma função (transporte de líquidos). Perto de 600 a.C, Atenas dominava o Mediterrâneo exportando os vasos e a arte de artistas locais. Nesta época, diversas técnicas já estavam desenvolvidas como a produção de pigmentos resistentes à água e a utilização de fogo para selagem dos vasos. Mesmo com a limitação das pinturas em duas dimensões, as figuras eram representadas com feições, ação, poses, gestos e emoções. Por volta de 320 a.C a arte da pintura sobre vasos se tornaria uma arte morta.
A história grega relatada mostra claramente um híbrido entre escultura e pintura. Mais ainda, mostra como uma simples necessidade (carregar líquidos) foi além de sua mera função para conter em si também informação. Assim, forma e função atuaram de maneira conjunta para o desenvolvimento de uma técnica de pintura. Contudo, a forma foi uma das características que determinou a morte desta arte, afinal, a pintura, já evoluída, não poderia mais ser representada nos vasos, curvos, sendo as paredes planas superfícies mais adequadas. A forma não eliminou a função já que os vasos continuaram a ser utilizados, mas, a forma aniquilou a arte da pintura em vasos.
A cultura helênica exemplificada relaciona forma e arte em uma relação de dependência a qual, dentro de um contexto histórico contínuo ainda existe na sociedade contemporânea. Assim, desmaterializar a forma significa extinguir a visão de arquétipo ideal que os modernos buscaram e que não mais representa a sociedade dita contemporânea (expressão vaga com valor apenas mercantil) (1). A forma não definida busca incorporar o observador e usuário ao inseri-lo na interpretação da mesma, relativizando sua compreensão ao não determinar o seu significado como pode ser visto já no início do século passado em diversas obras de Picasso a exemplo de As Senhoritas de Avignon ,1907, a partir do campo da pintura. Ainda que a forma varie em sua técnica dependendo da arte (pintura, escultura, arquitetura), na ontologia da palavra o conceito é o mesmo. Assim, no tempo recente, assistimos a novas narrativas que dialogam para serem aceitas, ou seja, a quebra da forma ideal representa, nas artes, a possibilidade de novas linguagens.
No início do século 20 a abstração buscou o controle da forma dentro do contexto do pensamento moderno, ou seja, sua materialização. O pós-modernismo inseriu maior liberdade à forma ao permitir possibilidades de leitura do contexto, da história e da interpretação pessoal, iniciando um processo de quebra dos limites da forma. O Pop Art evoluindo desde a arte conceitual de Duchamp defendeu que a arte pode aceitar o banal e o cotidiano. Na modernidade líquida na qual vivemos (2) a forma desmaterializada, sem referências, sem contrato social é uma constante, resultando, na contemporaneidade, no simulacro e no virtual (3). Esta inserção de hibridismos resulta na desmaterialização da forma arquitetônica a qual, segundo Paul Virilio (4) é resultado da ação da velocidade e do tempo acelerado que estamos a viver.
Como afirma Guilherme Wisnik (5) uma das características mais marcantes da arquitetura contemporânea é o nublamento (volumes de contornos indefinidos, espaços etéreos, objetos enigmáticos e sem hierarquias claras). Hal Foster (6) defende que a estratégia pós-moderna dos gêneros indefinidos partia do princípio de que categorias como arte, arquitetura e mídia, são dadas como independentes, mas hoje, contudo, essa separação parece mais uma questão da doutrina modernista do que um fato ontológico. Temos então um campo híbrido, um objeto multifacetado, diverso e complexo, o qual gera novos significados nem sempre compreendidos. Segundo Steven Holl (7) o híbrido possui a capacidade de forçar os limites da arquitetura até deformar uma tipologia pura.
Independente do processo contemporâneo utilizado na arquitetura, fica clara a desmaterialização formal, na ontologia da palavra, do objeto e a não definição de limites reconhecíveis. Esta pesquisa busca como objetivo compreender qual o resultado para o campo da arquitetura quando identificamos sua desmaterialização e hibridização formal?
A arte desmaterializada
A pesquisa compreende, e aceita, que a arte em geral reflete o estado de vivência da sociedade. Como afirma Matuck (8), ela revela a paisagem cultural do seu tempo. Assim, ao entendemos que os conceitos que constituem o corpo da arte, no caso da arquitetura a forma não possui mais limites materiais, concluímos que a sociedade vive uma era na qual a desregulamentação geral de seus contratos sociais (leis, comportamentos, coletividade, soberania) se torna regra.
Nas palavras de Wisnick (9), na era da mídia e da eletrônica, a própria arquitetura busca certa desmaterialização, liberando-se contraditoriamente dos efeitos da gravidade, da resistência dos materiais e dos esforços físicos a que estão submetidos os edifícios em construções “liquefeitas”, que abandonam a referência antropomórfica e o princípio vitruviano da Firmitas (solidez), importantes lastros da tradição clássica tectônica.
Em termos híbridos a pesquisa defende o conceito de híbrido como inerente ao campo arquitetônico. Dentro de uma cultura ocidental, a arquitetura grega associou campos híbridos, como nas Cariátides, misto de escultura e arquitetura. Na arte moderna também pode ser identificada a existência de diversos outros campos artísticos inseridos na arquitetura. Pintura, escultura, música e teatro sempre estiveram presentes, com uma aplicação muitas vezes clara e reconhecível como na arquitetura clássica, e não explícita e difusa como na arquitetura barroca. Neste sentido difere conceitualmente de Bruno Latour (10) que defende o híbrido como uma assimetria do moderno, ou seja, em uma visão pura da arte como propagada pelos próprios modernistas. A forma modernista procurava a obra de arte total ao inserir outros campos artísticos na arquitetura, contudo, cada campo possuía sua aplicabilidade, de certa forma, independente. Citando novamente Latour (11) para os modernos, todos os híbridos eram concebidos como uma mistura de formas puras e o novo significado originado era a elevação da arquitetura como arte maior.
Arquitetura, como disciplina incapaz de completa autonomia, na cultura contemporânea, continua híbrida, mas os campos hoje são nublados, interconectados, misturados visualmente e conceitualmente. Assim, o híbrido se faz presente ao aceitar diversos campos artísticos influenciando e até mesmo ditando a forma, a qual, com seus limites borrados, cria maior complexidade em sua leitura e tende a desmaterializar os seus limites.
Assim se torna essencial compreender qual é o resultado de toda está quebra de limites na produção atual arquitetônica aceitando-a como um campo híbrido.
A forma hibrida
Ao analisarmos a evolução da forma, desde o princípio iluminista de razão, honestidade e pureza, se registra a eliminação de arquétipos, tipos e modelos resultando em uma desintegração estética do objeto artístico ao assimilar princípios outros da contemporaneidade como a contínua dissolução dos pares duais que definiram a experiência da modernidade em nome de caracterizações mais fluidas (12). Assim, a partir da ideia de objeto arquetípico, definido e de leitura precisa, resultamos em estruturas desmaterializadas na arte contemporânea, sem limites e definições estéticas aparentes, ou seja, a forma é sempre lida em estado relativo e se torna polissêmica e híbrida.
Para compreender a desmaterialização antes se faz necessário compreender a materialidade mais a fundo. O materialismo, em filosofia, defende a visão de que todos os fatos, incluindo fatos sobre o pensamento, vontade e história humanas, são causalmente dependentes de processos físicos, ou até mesmo redutíveis a eles. Nesta lógica, arquitetura material está ligada diretamente aos elementos construtivos, espaciais e sensoriais que compõem a forma. Assim, parede, piso, teto, pilares, janelas, portas, compõem e definem a forma, ou seja, a mesma é definida a partir de elementos arquetípicos. Virilio (13) defende ainda que a materialidade á alcançada quando as funções práticas de determinado elemento (porta, janela, densidade, extensão, proporção etc.) estejam representadas em sua natureza. Assim, uma porta, possui uma natureza intrínseca de gerar acesso e sua simbologia está ligada a esta função.
A materialidade da forma torna a presença do corpo como essencial. A textura, os sentidos e a imagem interpretada, compõem uma espécie de fenomenologia da forma na qual o observador/usuário é parte da obra. Segundo Martin Heidegger (14) o que dá às coisas a sua constância e essência, fonte do seu modo particular de pressão sensorial (cor, ressonância, dureza, massividade), é a matéria nas coisas.
A desmaterialização, por outro lado, objetiva o grau zero da forma. Paradoxalmente, esta forma nula, carrega em si uma quantidade infinita de leituras uma vez que a noção de limite não existe mais ou é praticamente nulo. O objeto híbrido ao negar a materialidade pura e livre de culturas midiatizadas e figurativas, pode se tornar imaterial, desmaterializado.
Segundo Zonno (15), grande parte da arquitetura contemporânea, inclinada ao formalismo, retomou valores das vanguardas construtivas, futuristas e expressionistas, elegendo o sublime, que transcende o humano, como categoria estética. A maior transformação foi a ruptura com uma visão de totalidade e unidade de linguagem. É justamente a diversidade que constitui o caráter contemporâneo, ou seja, não há uma única orientação de linguagem ou parâmetro estético que possa defini-la. Ao aceitarmos essa diversidade e dilatação do campo artístico, ou seja, a não obra de arte total (Gesamtkunstwerk) defendida por Wagner (início da indústria cultural), entramos assim no campo híbrido, misto de natureza e cultura (16).
Nas palavras de Pedro Cortesão Monteiro (17) o objeto híbrido é sempre um objeto a meio (entre tempos, entre tipologias, entre processos). Um objeto que resulta de colisões muito diversas: morfológicas, funcionais, tecnológicas, culturais etc. O resultado será, então, um híbrido de diversas formas: objeto múltiplo, transitório, ambíguo, adulterado. Isto significa que a estrutura formal, (partes e todo), e o conjunto de características formais (formato, cor, tamanho, textura, orientação, posição e inércia visual) de um objeto também necessitam trabalhar o “meio” para que este torne-se um híbrido. Assim, tanto as partes como o todo do objeto perdem seu arquétipo, assim como o formato e a orientação também perdem sua capacidade de gerar uma leitura definida.
Dentro de um pensamento modernista a Arquitetura é a arte de dar forma ao espaço. Assim, toda Arquitetura é formal uma vez que o objeto irá resultar em um espaço representando em uma forma. Segundo Adolf von Hildebrand (18) o próprio espaço, no sentido da forma inerente, torna-se uma forma efetiva para o olho. Vittorio Gregotti (19) defende que a forma arquitetônica é, por um lado, o modo como as partes e os estratos estão dispostos e também o poder de comunicação daquela disposição, sendo que estes dois aspectos estão sempre presentes. Enquanto não existe objeto sem forma, esta possui poderes de comunicação estética dispostos em níveis muito diferenciados.
Conforme pontua Manfredo Tafuri (20) devemos ter em mente que qualquer análise com a tentativa de gravar a relação estrutural entre as formas específicas da linguagem arquitetônica e o mundo de produção, de que fazem parte, deve fazê-lo violando os objetos da própria análise. Ainda, que a criação da Arquitetura só ocorre quando eliminamos toda e qualquer ideologia para então se criar significado. Contrariamente, para Robert Venturi (21) a demasiada atenção à forma invariavelmente resulta em perda de significado. Os edifícios ordinários, mas com alto grau de comunicação visual, e a arquitetura “decorada” da paisagem de Las Vegas são um exemplo, criam uma camada a mais de simbolismo enriquecido visualmente.
Na definição alemã do conceito de forma existe uma subdivisão em dois conceitos. O Primeiro é o de “Gestalt”, que define como os objetos são compreendidos pelos sentidos. O segundo é o da forma propriamente dita a qual implica em certo nível de abstração. Pier Vittorio Aureli (22) defende a discussão da forma a partir de sua aplicabilidade como o “ser formal” a qual está sempre envolvida em diversas dualidades. Ação e Situação ou Assuntos e Dados, são polos nos quais a noção “ser formal” se materializa. Ainda, a forma comporta, por definição, a composição, integração e/ou dissolução, da diferença. Assim, ainda segundo Aureli (23), o “ser formal” é contra a totalidade e as concepções genéricas da multiplicidade, ou seja, que necessariamente resulta em um objeto, o qual está em constante tensão entre seu interior e exterior, ou seja, seus opostos. Ainda, defende que o “ser formal” é um ato político uma vez que sempre representa e expressa um lado da sociedade.
Para Otília Beatriz Fiori Arantes (24) a forma-mercadoria, própria do pensamento pós-moderno foi um estágio para então se chegar à forma-publicidade, própria do capitalismo avançado. Fazem parte de uma arquitetura simulada, própria do mundo desmaterializado. Ainda, segundo Arantes, a Arquitetura, ao tratar apenas a superfície, torna-se fonte primária da experiência do simulacro. Para Paul Virilio (25), a simulação compõe parte de uma transitividade absoluta que acaba por decompor a arquitetura a qual sempre esteve baseada no declínio da antiga primazia da separação física e da limitação espacial das atividades.
Limites não delimitados fazem parte do conceito de campo ampliado (26). Para Herreros (27) a visão híbrida é um material valioso, já que possibilita a invenção e permite colocar juntos objetos que não foram pensados para assim estarem. É precisamente pelo fato de provocar esta convivência que se produz uma realidade nova, diferente. Virilio (28) cita o fenômeno paradoxal no qual a opacidade dos materiais de construção se reduz a nada e assim borra a noção de limite da forma. Assim, desprovido de limites objetivos o objeto arquitetônico perde suas dimensões espaciais flutuando em uma temporalidade sem referências, ou seja, nenhuma forma é capaz de se materializar.
A desmaterialização em obras
“Atualmente a arquitetura tem que assumir a condição mutante da realidade”.
Juan Herreros, 2006
As obras analisadas buscam contemplar o início do século 20 até os dias atuais. No período do pós-guerra, as artes em geral, em função da revolução industrial, ganham espaço na própria indústria através do design de mobiliários e utensílios e, lentamente, na sociedade em geral. Assim, se inicia o uso corrente da palavra forma. A racionalidade modernista, a partir do início do século 20, estava centrada no pensamento positivista e no culto à máquina. Defendeu uma estreita atenção ao formalismo técnico, baseado no rigor da modulação e do lançamento estrutural como definidor do espaço.
Na arquitetura a retórica positivista pode ser vista em desenhos, sempre representados isolados da cidade, com fundo branco, ideais e independentes de toda a situação urbana existente, uma vez que a cidade existente era vista de maneira negativa. A evolução modernista se caracterizou por progressivamente abrir o espaço interno através do uso de panos envidraçados. Assim, quanto maiores estes ficavam mais aparente se tornava a estrutura chegando ao ponto de a mesma ser externa ao volume edificado. Esta evolução também foi aplicada no uso de materiais industrializados como o vidro, o qual dificultava que se revelasse o traço do tempo. O objetivo era de eternizar a forma, assim como o estilo criado, ao não se imprimir os traços da história.
Contudo, quanto menos os modernos se pensam misturados, mais se misturam (29). O modernismo ao eleger a arquitetura como arte maior determina mais o hibridismo que a pureza. Significa aceitar os outros campos artísticos, ainda que classificados, como inerentes e pertencentes ao objeto, no caso, arquitetônico.
A partir de uma análise histórica e evolutiva fica clara a desmaterialização da forma quanto aos conceitos de arquétipo, hibridismo e simulacro. A pele modernista representada no uso do vidro puro é uma quebra dos limites externos e internos, que ainda mantém a pureza da forma. Evolui então para uma pele pós-moderna que é utilizada como invólucro perdendo a referência do conteúdo interno que até então representava a linguagem formal.
O ano é 1971 e a contínua quebra do objeto acontece em diversos campos artísticos, experimentos e aprofundamentos. Gianni Pettena, artista italiano, levou ao extremo este conceito. Ice House I, é um hibrido entre Land Art e Arquitetura. O artista cobriu uma escola abandonada com gelo durante o inverno na cidade de Minnesota, Estados Unidos. A forma arquitetônica foi desmaterializada em meio a um elemento natural (gelo) e, ainda que o objeto preservou sua tipologia, este ganhou vida pois foi trabalhado pela natureza. Contudo, quando revestida de gelo, foi o material que transformou a forma uma vez que ela desapareceu em meio ao contexto. Também a materialidade, que cria limites, do objeto pode ser questionada uma vez que uma pura ênfase no material também o torna desmaterializado. Neste híbrido temporário entre escultura, arquitetura, e performance uma vez que o material construtivo tende a desaparecer, a materialidade é concentrada de maneira direta neste único elemento construtivo que é o gelo, o qual, com o passar das estações, não mantém sua forma original. Assim, a arquitetura atua mais como suporte para uma forma em constante alteração. Ao se mimetizar a paisagem, o objeto perde força, mas possuindo a arquitetura da região como base, a tipologia é mantida. Este novo objeto torna-se assim um fantasma de construções que já existiram. Cria ainda uma forte crítica da relação entre homem e natureza, entre efêmero e perene, entre forma e não forma.
Conceitos como instabilidade e efemeridade parecem não se aplicar à arquitetura dentro de um pensamento clássico, do qual a contemporaneidade busca se libertar. Toyo Ito (30) defende alguns conceitos deste pensamento. Entre eles uma Arquitetura do vento, sem forma, rápida, que flutua no ar, com pouca matéria, sem peso significativo. Ainda, uma Arquitetura como manifestação efêmera e instável, que busca a estabilidade e a permanência, mas que se mostra instável, fictícia e transitória. Ainda, borrada e de limites difusos, oscilantes e sinuosos, e que aceita o limite como membrana e película osmótica que não separa o interior do exterior, mas que permite que se atravesse.
O objeto arquitetônico perde força em um processo continuo de desintegração, dissolução e contextualização. O modernismo possuiu uma forma clara, pois continha um objetivo claro e bem definido que era de transformar a sociedade através da arquitetura. A complexidade formal da contemporaneidade nada mais é que o reflexo do contínuo deslocamento do objetivo definido pela sociedade. Interessante economicamente a uma cultura neoliberal o objetivo da arquitetura está sempre sendo alterado, deslocado, e seu resultado formal não costuma ficar claro.
A forma segue assim um processo de dissolução e desintegração. Não possui mais tipologia nem arquétipos. O espaço que a forma agrega não está mais delimitado visualmente e muitas vezes nem fisicamente. A forma se tornou um processo, sem um resultado previamente definido. Yona Friedman (31) defendeu a dissolução da Arquitetura, mas o que vemos é a dissolução de conceitos fundamentais e inerentes ao campo arquitetônico. Aurelli (32) defende que, hoje, é necessário reestabelecer os limites da forma, contra a ubiquidade e a organização complexa da mesma. Essa atitude em relação ao enquadramento e à limitação precisa ser desenvolvida tanto como uma forma material literal de arquitetura quanto um princípio político.
No Centro de Artes Tippet Rise, em Montana, Estados Unidos, as formas buscam sua gênese na própria terra. A forma é definida através de um novo processo de projeto, uma nova metodologia. O arquiteto, na fase de projeto, define mais o processo de formação da construção do que a forma final. As formas obtidas foram definidas em conjunto com a retirada da terra que anteriormente as continham e apoiavam quando em estado de repouso, onde retém memória e impressão e à qual introduzem novos significados e tensões. São estruturas da paisagem porque nasceram dela e lhe dão ordem, transformando a matéria em espaço habitável e desenvolvendo uma nova constelação de programas entre os planaltos, cumes, cânions e colinas que compõem o sítio.
O objeto como representação idealizada é eliminado e a força da forma resulta do processo criado. A materialidade é elevada ao extremo ao receber a textura do lugar. Contudo, a metodologia possui a mimetização como elemento norteador o que acaba por desmaterializar, eliminar a forma e consequentemente a própria Arquitetura. Esta se torna, ao perfeito método de Duchamp, puro conceito.
Em meio a um lago, na Suíça, cidade de Yverdon Les Bains famosa por seus spas termais ergue-se, em 2002, uma nuvem artificial. Seus limites acontecerão em função do vento e sua função unicamente de gerar experiências. Sua tectônica é desregulamentada e as referências visuais, táteis e acústicas eliminadas. Segundo Elizabeth Diller (33), esta é uma Arquitetura de atmosfera, resultante das forças naturais e artificiais. Como objeto arquitetônico possui piso, guarda- corpos, instalações elétricas, hidráulicas, pilares e cobertura. Contudo, a forma se torna híbrida justamente por não haver limites e, dentro de uma pura experiência sensorial, também se torna escultura.
O espaço criado, delimitado apenas pela plataforma metálica questiona a dependência visual do objeto e por consequência elimina o conceito de forma e referência. A plataforma sublinha a ocorrência do tempo através de uma forma continuamente mutável e em estado efêmero. Assim, se cria uma arquitetura performática e de eventos, conforme defende Bernard Tschumi (34) o qual, rejeitando o dogma modernista de que a forma segue a função, defende que a Arquitetura (forma) é consequência da ação (eventos).
Se trata, assim, de um objeto híbrido em sua essência. Interage entre os campos de arquitetura [como equipamento, infraestrutura], escultura [como objeto e experiência], performance [em sua efemeridade], música [com seus ruídos] e teatro [enquanto representação]. Um objeto que se dissolve no ambiente e estimula a percepção sensorial do usuário. Uma reação à arquitetura midiática contemporânea de formas espetaculares, uma vez que o espetáculo privilegia o senso visual e acústico. Contudo, ao se valorizar apenas a experiência, ao extremo, pode se perder o senso crítico que poderia, aqui, ser gerado. A desorientação vira regra e desta forma representa a sociedade atual de forma performática. Assim, a Arquitetura é reposicionada como uma ferramenta para a revelação social e política.
Discutir a desmaterialização da arquitetura induz, necessariamente, ao conceito de limites os quais contemporaneamente se tornam irreconhecíveis. Segundo Bernard Tschumi (35) a partir de uma sensibilidade desenvolvida durante séculos em torno do surgimento de uma imagem estável (da forma), hoje favorecemos a sensibilidade de imagens instáveis. Ainda, a discussão sobre a forma é irrelevante uma vez que ela é sempre o resultado de uma estratégia arquitetônica e nunca o ponto de partida. Assim, aplicasse a ideia de forma-conceito a qual é definida como uma configuração abstrata que pode ser utilizada em um local ou caso específico. Tanto a forma pode gerar o conceito quanto o conceito gerar a forma e, uma vez que sendo o conceito algo abstrato, o mesmo pode ser reutilizado e aplicado em diferentes situações gerando assim um catálogo de ideias arquitetônicas.
O edifício Kanagawa Instituto de Tecnologia – KAT, 2004 a 2008, busca uma ressignificação da forma ao redefinir os limites de elementos tradicionalmente reconhecíveis. Assim, uma floresta de pilares, conjunto de pequenas colunas de proporções variáveis, atua tanto como estrutura do edifício quanto como delimitador de espaços borrados. Nenhuma das 305 colunas são idênticas em seção e ângulo. Diferenças sutis na forma destes suportes são definidos pelo seu propósito estrutural e pelo papel dos espaços que elas criam. Grupos de estruturas dividem ambiguamente a área para criar variados espaços. As colunas são dispostas dentro da Arquitetura como árvores colocadas em uma paisagem de forma a criar um espaço mimetizado como uma floresta.
Tudo se transforma em “pele”, seja piso, paredes externas ou cobertura, uma vez que a iluminação acontece tanto pelo perímetro externo quanto pela finíssima cobertura. Vasos de plantas, elementos flexíveis, ajudam a delimitar espaços. Assim, a forma do espaço está sempre em constante mudança, se torna indefinida, ambígua.
Segundo Josep Maria Montaner (36) as convenções que fundamentam a memória coletiva é que garantem uma relação com a sociedade e que este respeito aos fundamentos caracteriza uma postura, da arquitetura, totalmente oposta aos mitos vanguardistas da novidade, da ruptura e da experimentação. Assim a forma carrega toda a complexidade de uma sociedade também complexa. Ela contextualiza, registra o tempo, os erros e acertos desta própria sociedade.
A coletividade híbrida e com forma sem limites é melhor representada em um campo artístico como a performance a qual buscou sair das instituições (teatro, música, cinema, dança etc.) e assim se tornou política uma vez que trabalha o não simbólico e a não representação. É uma arte ainda que necessita de materialidade, mas não do significado da materialidade uma vez que se baseia no efêmero. Assim, a forma imaterial, desmaterializada, busca representar experiências ao aceitar o contexto e as relações que possam vir a existir em torno da obra.
Conclusâo
“No reino do arbitrário das formas, o aleatória ameaça”.
Jean-Philippe Domecq, 2011
Nas palavras de Pedro Fiori Arantes (37) a proliferação eufórica no uso de superfícies midiáticas e ornamentos digitais com o objetivo de tornar a Arquitetura cada vez mais uma experiência imaterial, pode conduzi-la a um grau zero da forma. Esta, referenciada em um tempo no qual, cada vez mais, não encontra outro caminho senão o experimentalismo, uma vez que o poder da criação já está superado, mas a ressignificação está livre. Assim, a forma não pode mais ser catalogada uma vez que é mimetizada, seja com a natureza ou apenas com conceitos, campos nos quais infinitas formas são possíveis. Assim, quando falamos que um elemento do campo, no caso arquitetônico, deixa de existir, concluímos que o campo se desmaterializa, ou seja, torna-se um híbrido. Nestor García Canclini (38) afirma, ao debater sobre a identidade de um povo que, apesar de existirem processos híbridos, as culturas possuem núcleos ou estruturas incomensuráveis, não redutíveis a configurações interculturais sem que se ameasse a continuidade dos grupos que se identificam com eles.
Conclui-se que esta falta de limites dos campos artísticos resulta na possibilidade de a Arquitetura perder a sua identidade e, talvez até a sua utilidade e nobre tradição por se confundir ou mesclar com outras práticas que lhe são próximas. Contudo, sendo a forma uma produção cultural, fica clara a necessidade de uma hibridização natural, sem questionar os limites de cada campo artístico, de adaptação, e que permita ainda sua evolução. Assim, a compreensão das artes como crítica social, ou seja, política, demonstra uma função, essencial, para a arte pois como citado por Adolfo Natalini (39): “se a Arquitetura é apenas uma codificação dos modelos burgueses de propriedade e sociedade, então deveríamos rejeitar a Arquitetura”.
Ao desmaterializar a forma estamos renunciando a questão política da arte pois quando não há crítica, o resultado se torna apenas experiência e no caso da forma se torna puro formalismo desprovido de valores importantes à sociedade. Dentro de uma visão liberal, na qual vivemos, a materialidade da forma se torna uma comoditte (forma/mercadoria) que reflete o pensamento atual de quebrar e extinguir o valor da arquitetura como arte, visando apenas uma experiência estética, desprovida de outros valores, tornando-se essencial para o ciclo de rentabilidade. Dentro deste ciclo a forma se torna produto burguês e de massas, a ser apreciado de modo Kantiano, com criação, uso, obsolescência e morte, processo, aliás, midiatizado pela sociedade do espetáculo.
A forma avaliada como mercadoria reflete um conceito de forma dentro de uma visão platônica, e de certa forma simplista, ao eliminar sua materialidade. A visão aristotélica distingue a matéria (elemento primário) da forma (arranjo) sendo que estes conceitos existem em todos os objetos de maneira inseparável. Paradoxo claro, pois, como citado por Stephen Cairns e Jane Jacobs (40) o capital necessita liquidez de uma Arquitetura que é matéria sólida.
Assim, uma forma arquitetônica e artística não materializada reflete uma sociedade sem limites sociais, sem passado, sem futuro, e sem duração e extensão. Preza o presente instantâneo que se modifica na velocidade de seu consumo, cada vez mais virtual. Se a arte, e a forma utilizada, reflete o “nosso” tempo, a dificuldade deste reflexo torna-se crescente uma vez que a contemporaneidade é cada vez mais veloz, mais líquida, e menos alusiva à própria sociedade.
Como visto historicamente, quanto mais a forma se desenvolve mais se desmaterializa e consequentemente tornasse específica na medida que sua linguagem necessita de um intérprete, de um especialista, para ser compreendida. Assim, ao mesmo tempo em que a forma sem limites aceita variadas leituras do usuário ela também afasta, pela sua complexidade, este mesmo usuário. Segundo Nicholas Ray e Francisco Gonzáles de Canales (41) existe uma relação dialética interminável entre a forma arquitetônica, como um sistema estável, e a cidadania, como um grupo autônomo de indivíduos que possui a capacidade de formas de vida plurais e contraditórias. Assim, quando esta dialética é rompida por uma forma desprovida de referências e de limites, a arquitetura se torna apenas produto comercial uma vez que o diálogo dentro da sociedade é extinguido.
Por fim, hibridizar os campos entre arquitetura e outras artes faz parte de um processo natural, mas que necessariamente é político e assim capaz de criticar. O simples experimentalismo e experiência não pode ser uma base suficientemente sólida para a sustentação de um campo artístico uma vez que estimula apenas o superficial e a representação, conceitos que até mesmo o teatro crítico busca eliminar. Afinal, como nas palavras de Otília Arantes (42), na sociedade de mercadorias, o que não falta são palcos, cenários e sobretudo a encenação da massa consumidora como público de um teatro na escala global. Algo como uma cerimônia ritual de controle por meio de inoculação de doses colossais de aura e carisma na vida ordinária de multidões anestesiadas. Assim, nesta sociedade, sendo o espaço construído, ou seja, a Arquitetura, necessidade básica, a questão que se coloca é como uma sociedade sem limites convive com uma Arquitetura sem forma, também sem limites?
notas
1
DOMECQ, Jean-Philippe. Uma nova introdução à arte do século XX. São Paulo, Edições Sesc São Paulo, 2017, p. 180.
2
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de janeiro, Jorge Zahar, 2001, p. 9.
3
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo, Edusp, 1993, p. 50.
4
VIRILIO, Paul [1979]. Estética da desaparição. Rio de Janeiro, Vozes, 2015.
5
WISNICK, Guilherme. Dentro do nevoeiro. São Paulo, UBU, 2018, p. 5.
6
FOSTER, Hal. O retorno do real. São Paulo, Cosac Naify, 2014, p. 122.
7
HOLL, Steven. The Alphabetical City. Pamphlet Architecture, n. 5. New York/San Francisco, Princeton Architectural Press, 1980.
8
MATUCK, Artur. Uma arte de apropriação reclama um direito ao conhecimento. In ALVARADO, Daisy Valle Machado Peccinini de Arte novos meios: multimeios: Brasil `70:80. 2ª edição. São Paulo, FAAP, 2010.
9
WISNICK, Guilherme. Op. cit., p. 69.
10
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. São Paulo, Editora 34, 1994.
11
Idem, ibidem, p. 76.
12
WISNICK, Guilherme. WISNICK, Guilherme. Op. cit., p. 61.
13
VIRILIO, Paul. Op. cit., p. 93.
14
Heidegger, Martin [1927]. Ser e tempo. 10ª edição. São Paulo, Vozes, 2006.
15
ZONNO, Fabiola do Valle. Lugares complexos, poéticas da complexidade: entre arquitetura, arte e paisagem. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2014, p. 59.
16
LATOUR, Bruno. Op. cit.
17
Monteiro, Pedro Cortesão. Jornal Arquitectos, Lisboa, 2006, p. 20.
18
HILDEBRAND, Adolf von. The problem of form in the fine arts. In MALLGRAVE, Harry Francis; IKONOMOU, Eleftherios (org.). Empathy, Form, and Space Problems in German Aesthetics, 1873-1893. Santa Monica, The Getty Center Publication Programme, 1994.
19
GREGOTTI, Vittorio. Território da arquitetura. 3ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2001, p. 28.
20
TAFURI, Manfredo. Architecture and Utopia, Design and Capitalist development. Cambride, The MIT Press, 1992.
21
VENTURI, Robert [1966]. Complexidade e contradição em arquitetura. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
22
AURELI, Pier Vittorio. The possibility of an absolute architecture. Cambridge, The MIT Press, 2011.
23
Idem, ibidem.
24
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Op. cit.
25
VIRILIO, Paul. Op. cit., p. 79.
26
KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Originalmente publicado em KRAUSS, Rosalind. Sculpture in the Expanded Field. October, v. 8, Cambridge, The MIT Press, spring, 1979, p. 30-44.
27
Híbrido – Quando não se Conhece a Matriz. Jornal Arquitectos, n. 220/221, Lisboa, fev. 2006.
28
VIRILIO, Paul. Op. cit., p. 9-10.
29
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sobre o autor
André Prevedello é Arquiteto e urbanista formado pela Universidade Federal do Paraná em 2006 e Mestre pela mesma instituição em 2014. Especialista em Artes hibridas pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná em 2019. Diretor da AP Arquitetos desde 2010. Atua nos seguintes temas de arquitetura e arte, Artes hibridas e campo ampliado da cultura, cidade e cultura, urbanismo e sociedade.