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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
As feiras livres, eventos de reconhecida importância urbana, terão sua complexidade cultural analisada a partir de um projeto realizado em dezenas de municípios de Alagoas, abordando suas condições de espacialidade e os papeis dos corpos nestes espaços.

english
The street markets are events recognized by its urban importance. Their cultural complexity will be analyzed from a project carried out on dozens of cities in Alagoas, approaching its spatiality conditions and the role of the bodies in these spaces.

español
Mercados abiertos son eventos de reconocida importancia urbana. Su complejidad cultural se analizará en base a un proyecto realizado en docenas de municipios em Alagoas, abordando sus condiciones espaciales y los roles de los cuerpos en estos espacios.


how to quote

CERQUEIRA, Louise Maria Martins; SILVA, Maria Angélica da. Espacializações da efemeridade. Feiras livres em Alagoas e a dimensão do corpo sensível. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 255.03, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.255/8227>.

Feiras livres: apresentando a temática

Com produtos vindos da roça ou da China, ainda hoje, na maioria dos pequenos municípios do estado de Alagoas, as feiras livres constituem um importante meio de comercialização de produtos. Não muito diferente das inúmeras feiras que ocorrem em todo o Brasil, com frequência usual de um dia e periodicidade semanal, elas transfiguram o espaço urbano em questão de horas – da erma rua ao mais agitado burburinho – trazendo uma rede de saberes e modos de viver do mundo rural para a cidade, congregando gestos e movimentos em eventos cíclicos e intensos. Em feiras, comercializa-se prioritariamente alimentos, mas, sem dificuldades, ela acolhe a roupa, o sapato, o martelo e o brinquedo de plástico. Abriga trabalho, mas também descanso e oferece diversas alternativas de sociabilidade. E para quem a observa um pouco mais, suscita pensar fronteiras do habitar: da efemeridade à permanência, do rural ao urbano, da profusão à escassez. Essas feiras são eventos de tal forma entranhados no cotidiano das populações que acabam sendo pouco contempladas com trabalhos acadêmicos que reflitam sobre seu papel.

Portanto, não foi imediatamente que despontaram como referência cultural em toda sua densidade em um vasto levantamento realizado entre 2015-2016, em um projeto intitulado Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de Alagoas (1). Porém surgiram de forma corrente e como experiência corporal marcante para os pesquisadores. Esse projeto foi proposto dentro de uma iniciativa sem precedentes pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, pois diferente de outros editais, contemplou o levantamento de bens relacionados ao patrimônio imaterial de toda uma unidade federativa do país. O projeto seguiu a aplicação da metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC proposta pelo próprio Iphan e contemplou as 102 municipalidades do estado, gerando um imenso arquivo primário de relatórios, fichas de inventário e acervo audiovisual.

Durante o projeto, a atitude de não colocar a feira inicialmente como foco não significou não se apoiar nela. Na tentativa de, em cada cidade, localizar as principais referências culturais, a feira foi o porto e a porta. Era nela, quando a literatura, os contatos com os artesãos e com as instituições públicas não se efetivavam, que se obtinha respaldo para garantir os primeiros contatos e se iniciar o trabalho de campo. E mesmo quando a lista de contatos e de bens estava à mão, ela servia para ampliá-la e confirmá-la.

No presente artigo, portanto, as feiras serão exploradas como fortes referências culturais, suscitadas pela experiência empírica nos seus espaços. Cabe mencionar também o papel das imagens, selecionadas a partir de um acervo gerado no projeto (e ampliadas posteriormente em visitas pessoais), que correspondem a 38 feiras de 36 municípios do estado (2). Elas se somam ao texto na condição de uma outra narrativa de cunho artístico e informacional.

Mais que observações e reflexões que salientem as feiras livres como espaços de reconhecida complexidade cultural, elas também serão abordadas pelo viés do corpo, aqui entendido para além do corpo ergonômico, com o qual o arquiteto está familiarizado e que o interpreta, muitas vezes, como um objeto parametrizado. Isso implica numa observação que pode colocar a percepção e os sentidos à frente – sentidos esses que, por serem subjetivos, foram durante muito tempo considerados por demais imprecisos para serem tratados academicamente.

“Os saberes do corpo foram considerados demasiado imprecisos para garantir o conhecimento da verdade. [...] A racionalidade moderna produziu um saber fragmentado sobre o corpo, muitas camadas superpostas em forma de discursos variados que tentaram silenciar a sabedoria do corpo e sua linguagem sensível. [...] A vida é um processo cognitivo, desde os níveis mais elementares até as formas mais complexas, como os seres humanos. A cognição emerge da corporeidade, da dinâmica dos processos corporais. A tradição ocidental, de um modo geral, considerou esse saber como irrelevante ou acessório” (3).

E isso também implica em observar os objetos como algo muito próximo do próprio corpo, às vezes mesmo extensão deste. Portanto, serão tomados os objetos e elementos espaciais com seu peso, sua textura, sua temperatura, influindo em percepções, mas também induzindo motricidades: materialidade interpretada a partir dos gestos, dos corpos humanos que carregam e transportam, agacham e levantam, montam e desmontam. Das mãos que debulham e trançam, depenam galinhas e peneiram tapioca.

O leve espaço urbano da feira

As feiras estão em todo lugar. São experiências de comércio e sociabilidade de existência milenar. Forma de troca de produtos, mas também de informações, de motivação de encontros e de prestação de serviços, elas surgem subitamente frente aos olhos dos habitantes de um determinado local quase como num passe de mágica. É no raiar do dia, por vezes ainda na madrugada, que os feirantes chegam e fazem surgir frente aos cidadãos sonolentos o cenário vivo e animado de gente, animais e objetos. Ocupam, em geral, o espaço ao largo de uma rua, ou dando voltas numa praça. Mas sempre em área facilmente acessível e visível. Sua movimentação rapidamente se instala quando começa o perambular dos fregueses por seus corredores de madeira e lona.

Para o visitante desavisado, elas parecem labirínticas. Isso porque criam, dentro das ruas, outras ruas mais estreitas. Mas tal sensação não é compartilhada por seus frequentadores usuais que já aprenderam a sua lógica. Mesmo assim, há sempre novidade. Barracas, ambulantes, carrinhos, gentes e animais se multiplicam, se avolumam em um mesmo espaço. Além disso, por um conjunto de horas, uma rua conhecida em detalhes por todos, some abruptamente. Pois tendas e cobertas escondem as edificações, tirando assim do âmbito visual os marcos que poderiam auxiliar na localização dentro do espaço. Em especial quando ocorre em pequenos lugares, fazendo-se uma cidade dentro da cidade, a feira motiva que os marcos deixem de ser edificados e passem a ser aquela arquitetura de madeira e tecidos. Pois diferente da matéria da cidade que a acolhe, a feira é leve. E ela é um espaço multiplicador de espaços.

Contudo, são muitos os esforços para edificar um evento que dura poucas horas em apenas um dia por semana, como é a maioria dos casos aqui tratados. Arquitetura mais de montagem que de construção, a materialidade das feiras livres se faz e se desfaz em poucas horas. É efemeridade capaz de criar uma metamorfose curta, mas completa, no recorte da paisagem da cidade onde, por um tempo, habita: do silêncio ao burburinho, das ruas mais largas e praças às ruelas criadas pela disposição das barracas, do trânsito modesto de pessoas às pequenas multidões, e então ao silêncio novamente, à normalidade da rua sem feira.

Para versar sobre os suportes arquitetônicos, expressão que pode sumarizar o que são as suas barracas, pode-se, por outro lado, mencionar a existência de “pontos modestos, superfícies de contato para que as trocas se desenvolvessem” (4). Destarte, aqui, o entendimento da feira enquanto arquitetura pode ser reduzido nos apoios que não precisam se entranhar na terra, nas frágeis cobertas que são facilmente dobradas e reutilizadas, como num acampamento. Por outro lado, pode ser largamente ampliada, quando, em casos especiais, elas se valem de galpões. Quando se trata de cidades de médio e maior porte, é comum no Nordeste que as feiras se aliem a estruturas físicas, que se mantêm mesmo quando elas não estão lá. São voltados principalmente para o comércio dos cereais e das carnes.

Mas o espírito da feira está no se constituir das barracas efêmeras, e por vezes remendadas, e até mesmo quando, mais simples ainda, configura-se através da disposição dos caixotes, lonas e do próprio arranjo dos produtos no chão. Em outras palavras, ela é compreendida como tal pela forma como esses elementos são manipulados durante a feira enquanto evento, enquanto ação.

“Percebe-se que o caráter construído, edificado, dos espaços de troca, das barracas, se encontra muitíssimo ampliado ao olharmos as feiras livres. Tudo pode ser arquitetura. E para exercer a função primeira, a comercialização, os atores envolvidos nesse evento se utilizam de pedaços mínimos, espaços mínimos, e, muitas vezes, inexistentes” (5).

Portanto, uma das coisas que fazem a profusão da feira ecoar é a exiguidade de muitas de suas estruturas, de pequenos amontoados que preenchem os espaços entre e para além das barracas, estruturas que demandam intervenção do corpo para se formarem e se transformarem. Caixas e carrinhos-de-mão se tornam suporte-vitrine de montagem, feita para ser desfeita e reconstruída. Um simples guarda-chuva pode servir de coberta, sombreando apenas um único corpo, que se desloca de acordo com os movimentos do sol. O porta-malas de um carro pode se inserir na feira de maneira natural. As lonas, por vezes, caem na altura das cabeças. A multiplicidade de tipos de suportes adita a presença da variedade de produtos e quantidade de pessoas: a feira é feita de somas. Por vezes, o suporte pode se limitar a ser apenas o chão. Sequer mediado por uma lona, ele se orna simplesmente pelos produtos em exposição.

Feira em Traipu
Foto Louise Cerqueira [Acervo Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem]

O abrigo e seus limites: as cobertas e os corpos

Vistas de cima, as feiras podem parecer apenas um mar de lonas. De perto, no nível da rua, contrastam as frestas e o ar livre com as cobertas. Do alto, a predominância é do preto, mas é quando a cor se faz telhado que se transforma a atmosfera debaixo da barraca. Quando raios solares incidem diretamente sobre as lonas coloridas, criam-se ambiências em tons amarelados, azulados, alaranjados, esverdeados, onde já era tudo cor.

Essa vivacidade cromática é própria das feiras, pois se saímos do alto das cobertas e adentramos por seus corredores, de novo, surge a predominância das cores nos produtos. Quanto mais a luz os banha, mais se altera os próprios tons do colorido e mergulha-se em ambiências matizadas, concedendo uma atmosfera circense, cenográfica, lúdica, a um lugar que se encontra entre o pragmatismo da venda e a criatividade que tal tipo de comércio demanda.

Feira de Porto Calvo
Foto Andressa Alves [Acervo Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem]

Feira em Branquinha
Foto Ludmila Mares [Acervo Iphan]

Nelas, vê-se o tempo e o passar do tempo, em contraste com os espaços “da luz” (6). De fato, a luz se comporta de forma diversa se comparamos os espaços da feira com os dos supermercados e das redes de shopping center, por exemplo, cuja iluminação e climatização artificial simulam um tempo sem tempo (7).

Frestas, buracos e espaços fora do alcance das cobertas, tornam as feiras porosas ao sol e à chuva. E assim ambos são experimentados no caminhar através das barracas, no trombar de suores e sombrinhas, nas poças que se formam nas áreas mais baixas da rua e se juntam com tudo que resta da feira.

Feira em Coruripe
Foto Louise Cerqueira [Acervo Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem]

Feira no distrito Piau, Piranhas
Foto Louise Cerqueira [Acervo Iphan]

Motricidades e as faculdades sensoriais

Caminhar, carregar, segurar, mover, suspender, cortar, embrulhar, agradecer. A feira não se faz sem corpos em constante movimento. Este aspecto faz com que a feira traga para a frente, quando se fala de espaço, o tema do corpo. Nela, a listagem dos feitos ergométricos abandona qualquer ordem classificatória. Poucas operações seguem um procedimento linear e pela própria mutabilidade dos seus suportes, tudo pode se alterar. Aos arquitetos e urbanistas, a feira coloca o desafio do improviso e da precariedade do universo das gambiarras. Corpos e objetos se imbricam fortemente. E o corpo é convocado não só na sua dimensão muscular e óssea, mas se dispõe a executar, sem receita, as imensas possiblidades de fazer as coisas existirem.

“O corpo, coisa mental, é a carne e seu entorno, a natureza e as coisas criadas, a voz humana e os movimentos mais inimagináveis. O corpo é o insignificante sujeito cuja existência se sustenta e faz sentido na medida em que se une a outros corpos em infindáveis pas-de-deux, desenhando e desfazendo figuras de bichos e coisas que não existem e que, por isso mesmo, nós brincamos de fazer existir” (8).

As evidências deste proceder saltam aos olhos em qualquer breve caminhada pela feira, em especial numa feira nordestina, como as que acompanhamos em Alagoas. Os corpos encontram-se ali o tempo todo ativos, em especial os dos vendedores. Na relação com os produtos, por exemplo, todas as alturas e distâncias do corpo são acionadas. Dos pés, quando os produtos são expostos diretamente no chão. Neste caso, a todo instante a feira convida os corpos a se abaixarem ou agacharem; ficar de cócoras é uma ação comum. Em outros casos, a altura é ditada pelos joelhos, quando estes são elevados por caixas, ou quando a vitrine são carrinhos-de-mão, exigindo um leve emborcamento da coluna. Mas também podem ser os quadris a ditar o movimento, quando os produtos estão expostos nas barracas, altura que exige o menor esforço. E o movimento não para aí. Continua-se subindo, alcançando finalmente a altura das cabeças ou acima delas, quando as coisas a serem vendidas são penduradas em espécies de varais, geralmente amarrados nas próprias estruturas das barracas. Apenas nesta breve listagem, que acompanha os corpos movendo-se conduzidos pelo eixo vertical, observa-se como são impulsionados a se engajarem em movimentos diversos, transformando a feira numa espécie de bailado.

Para além disto, se agora observamos uma outra dimensão corporal, a criada pelos sentidos, um outro universo aflora. A feira é o império do tato, da audição, do cheiro.

De fato, o corpo estabelece uma relação mais complexa com as coisas chãs do que simplesmente se solicita dos ossos e músculos no ato de expor produtos e de agachar para alcançá-los. Pois nesse caso, o olfato pode estar a comunicar que o piso é abrigo de descartes. Restos o povoam por horas, entulhando o espaço que já é feito de várias outras formas de multidão – de produtos, de objetos, de pessoas. Não raro, é preciso olhar para baixo na ação do andar. Pisa-se no bagaço da cana, nos sacos plásticos, nas palhas de bananeiras, nas vagens desbagoadas, nas escamas do peixe tratado, nas penas das galinhas. Todos estes restos ecoam não só pelos formatos diversos, mas também pelas texturas e cheiros. Coisas se ajuntam e contribuem para uma visão de acúmulos, principalmente porque competem com a própria exposição de produtos na altura dos pés, já que o chão é também vitrine. E eles, por sua vez, disputam espaço com outros corpos viventes – gatos e cachorros – e esses animais domesticados são também, de certa forma, os refugos-vivos das cidades, vivendo à mercê dos restos, dos rejeitos. Neste caso, alcançamos então uma disparidade ainda maior com os espaços dos supermercados e dos shoppings, onde a premissa, supostamente, é a da ordem e a da limpeza.

Na feira, o tempo, por vezes, é o do passado milenar. O que não teme a sujeira, o que desconhece a norma e a visão oitocentista de sanitarismo.

Feira em Jacuípe
Foto Karina de Magalhães [Acervo Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem]

Feira em Matriz do Camaragibe
Foto Flávia Correia [Acervo Iphan]

E o papel dos sentidos continua o seu reinado. Nas estratégias para atrair a atenção dos consumidores, o som é definitivamente convocado. Os vendedores disputam os clientes com apelos sonoros. Em combate entre eles, alguns vendedores chegam a se utilizar de microfone. O instrumento simula o órgão vocal para amplificar seu alcance (9), permitindo um destaque em relação ao contexto em que se insere, normalmente de efervescência sonora – os barulhos de pessoas conversando se misturam ao som de músicas e outros ruídos da feira e dos arredores. Um caso na cidade de Flexeiras foi além, no qual, além do microfone, a bicicleta e a caixa de som vestiam-se de enfeites para chamar mais atenção.

Além da efervescência visual e sonora, o cheiro se faz como marcante na experiência por essas espacialidades. Setorizadas, seria de se aguardar que as feiras criassem corredores com cheiros predominantes: o olor dos peixes em uma parte, das frutas e verduras em outra, o cheiro mais neutro dos tecidos em uma zona diferente... mas elas se fazem sobretudo por uma disputa ferrenha entre odores, onde muitas vezes vence os que pertencem à categoria do desagradável. O peixe, as vísceras, se antecipam pelo cheiro e chegam ao comprador antes de serem vistos. Mas também há o inebriante perfume tropical das frutas, o cheiro do pastel, que não se separa do barulho da cana sendo moída, da sensação do abafado e da fumaça vinda do guisado sendo cozido ali perto. Portanto, não apenas os cheiros, mas todos os sentidos sinestesicamente se associam.

Aliás, a feira, ao se vincular essencialmente ao alimento, é lugar do gustativo: do cheirar, do tocar e do provar antes de negociar. Ela é convidativa para uma relação mais próxima com os alimentos in natura. Com frequência, estes são abertos na hora para serem degustados; pode-se pegar um punhado de farinha e levá-lo para a boca; toca-se o feijão para atestar sua qualidade, degusta-se a jaca antes de decidir leva-la.

Feira em Quebrangulo
Foto Louise Cerqueira [Acervo Iphan]

Mas o tato que apalpa os produtos se intensifica em uma outra direção: no ato de carregar. Transporta-se principalmente as sacolas com as mãos, de maneira usual. Entretanto, há dois modos de carregar que merecem uma atenção. Um modo que, aparentemente, no passado era mais comum, mas que ainda se presencia nas feiras é o de colocar a carga equilibrando-a acima da cabeça. Por vezes, alçando um peso significativo que surpreende quem não possui tal habilidade. De fato, parece que a prática está em ocaso, talvez pelo acesso a outras formas de carregar menos fatigantes. Portanto, em campo, não se registrou a variedade de ocorrências que, por exemplo, décadas atrás, Pierre Verger pôde registrar no seu perambular pelas feiras de Alagoas (10).

Feira em Alagoas
Foto Pierre Verger [Alagoas de Pierre Fatumbi Verger, Caleidoscópio, 2010]

Feira em Alagoas
Foto Pierre Verger [Alagoas de Pierre Fatumbi Verger, Caleidoscópio, 2010]

Feira em Alagoas
Foto Pierre Verger [Alagoas de Pierre Fatumbi Verger, Caleidoscópio, 2010]

Um segundo modo de carregar típico das feiras desvela, porém, uma fragilidade social que ainda se faz presente de maneira bastante frequente. Trata-se de crianças que ali trabalham em busca de algum trocado. Tanto elas comparecem ajudando a família e na montagem das barracas, no transporte dos produtos e nas vendas, como oferecendo seus préstimos para carregar as compras em um carrinho-de-mão. A prática do trabalho infantil, nestes casos, não só se soma à conduta dos contextos pretéritos, como o que coloca em suspensão pressupostos sobre a higiene, mas sobretudo traz à luz o contexto de pobreza onde estas feiras estão inseridas. Tal fato, entretanto, não é capaz de afastar o ar lúdico de algumas situações, principalmente quando as crianças brincam entre si à espera de clientes.

Feira em São José da Laje
Foto Ana Karolina Corado [Acervo Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem]

A feira entre o limiar dos processos de patrimonialização e da pobreza

Toda esta narrativa foi gerada a partir de um trabalho em equipe interdisciplinar, mas que teve presença marcante de arquitetos e urbanistas, que se empenhando no levantamento das referências patrimoniais de Alagoas, para além de suas metas específicas, se depararam com uma série de indagações afeitas ao seu trabalho, como o ato de projetar frente a condições de escassez e o lugar do movimento perante a estaticidade que em geral caracteriza a obra arquitetônica. Ao colocar o corpo como elemento com os quais os espaços se vestem, veio à lembrança uma “estética da ginga” (11) que não habita necessariamente só no morro nem está só nos parangolés. Pois as feiras se fazem quando se considera a questão do fragmento, da fugacidade, do improvisado e do versátil. Portanto, um desafio foi o exigir um entendimento ampliado do que é arquitetura e, consequentemente, a cidade. Exemplificaram acerca de núcleos efêmeros, e foi possível entender porque algumas cidades alegóricas de Calvino (12) se faziam moventes.

Colocou-nos frente ao exercício de pensar a feira como referência cultural, suscitando perguntas: como separar o que é de relevo na feira? Ela é o lugar, os saberes, as celebrações, as práticas? Como agir para o seu registro, considerando não a sua excepcionalidade, como foi o caso da feira de Caruaru, mas justamente ao se destacar a sua “banalidade”, o seu ajuste natural no correr do cotidiano, sem necessariamente um ressalto maior do que a sua própria existência?

A feira é lugar de conflitos, das crianças que conduzem carrinhos-de-mão entre restos, pernas e lama. São a materialização de formas de vida rodeadas por este contexto de trabalho árduo, que extrapola os bastidores da feira e instigam a pensar as suas próprias fronteiras– onde ela começa e onde ela termina? – e reflexões sobre como tornar essas outras presenças visíveis e audíveis quando se pensa a feira como patrimônio.

Pois não só é o lugar do vendedor habitual e do comprador, mas também do pequeno trabalhador rural, que vai comercializar eventualmente um excedente da produção; o lugar de escoamento de produtos como os processados nas casas de farinha, vendidos a um preço baixo diante do árduo trabalho que demanda (13). De fato, por trás de muitos produtos expostos na feira, há embutido uma série de perigos e riscos, calos e cicatrizes, habilidades e destrezas. Ciclos de labuta aos quais estão associados relatos e imagens de acidentes e de franco excesso na exploração dos corpos durante o trabalho. Por detrás dos produtos que levam coco, por exemplo, estão os tiradores que sobem ligeiros abraçados ao coqueiro com a pêa, criando calos nas coxas e enfrentando riscos de acidente com queda; dos produtos que levam açúcar, ecoam as lembranças de um trabalho que no passado era de exploração e onde faltava o mínimo, ecoando a memória da escravidão. Por detrás de cada peixe, os perigos do alto-mar; das carnes vermelhas, os do vaqueiro que corre atrás do gado fugido no mato espinhoso... Por trás de cada objeto de palha, de cipó, de barro, um artesão e seus desafios com a extração e o trabalho com cada material. Cada ofício desse produzindo através dos suores, são corporalidades diversas que não estão visíveis na feira enquanto evento, mas que igualmente a constroem.

Portanto, se agora, retornamos ao mundo oficial, aos gabinetes onde se decide o que deve receber o selo do registro como bem cultural, ou não, depara-se como uma grande distância. Parece difícil que ecoe nestes lugares este mundo da feira, distante temporalmente e espacialmente dos âmbitos oficiais que poderiam lhe aferir o selo patrimonial.

Ao nomear o INRC, hoje o principal instrumento de reconhecimento do patrimônio imaterial, os consultores do Iphan recuperaram a expressão “referências culturais” de experiências frutíferas acumuladas no órgão desde a década de 1970 sob visão de Aloísio Magalhães, evitando ambiguidades e impasses que a dicotomia material/imaterial sugere. Contudo, como este termo é suficiente ou adequado a ambientes onde o que está em pauta é, sobretudo, a sobrevivência?

Ao “focalizar dimensões concretamente apreensíveis da cultura” (14) para identificar a atribuição de valores e sentidos aos bens culturais, o manual reflete uma complexificação da temática. Todavia, esta reflexão iria para além do suporte simbólico do patrimônio?

José Reginaldo Santos Gonçalves propõe pensar “Objetos materiais e técnicas corporais [...] em sua forma e materialidade, como a própria substância dessa vida social e cultural” (15) e aponta para uma visão em que ele é compreendido como patrimônio ativo, “usado não apenas para simbolizar, representar ou comunicar: ele é bom para agir” (16). Dessa forma, a materialidade pode deixar de ser coadjuvante, ponte para categorias analíticas mais abstratas, e passar a abrigar outras potências. Ainda assim, considerar a materialidade e o poder de ação de eventos como a feira livre, é suficiente para abarcar a sua complexidade e as questões sociais, econômicas e culturais que ela francamente expõe? Talvez, mais que isto, a feira, cruzando sem cerimônias as fronteiras da modernidade e da tradição e negligenciando os trâmites da legalidade, do corpo são, da norma, mostre que os pactos humanos se tangenciam de outras maneiras, quando o que está em pauta são as demandas não do conservar, registrar e aferir importância, mas do sobreviver.

notas

1
Este trabalho foi realizado com aportes financeiros do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e da Secretaria de Cultura do Estado de Alagoas. Foi conduzido por três grupos de pesquisa da Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas, dentre eles, o Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, responsável pelo levantamento de 48 municípios.

2
São eles: Atalaia, Belo Monte, Boca da Mata, Branquinha, Cajueiro, Campestre, Campo Alegre (feira do Centro e feira do Distrito Luziápolis), Capela, Chã Preta, Colônia Leopoldina, Coruripe, Delmiro Gouveia, Flexeiras, Igreja Nova, Jacuípe, Japaratinga, Joaquim Gomes, Jundiá, Maragogi, Matriz do Camaragibe, Novo Lino, Passo de Camaragibe, Paulo Jacinto, Penedo, Piranhas (feira do bairro novo e feira do Distrito Piau), Porto Calvo, Porto Real do Colégio, Quebrangulo, Roteiro, São José da Laje, São Luiz do Quitunde, São Miguel dos Milagres, Teotônio Vilela, Traipu, União dos Palmares, Viçosa.

3
NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Uma fenomenologia do corpo. São Paulo, Livraria da Física, 2010, p. 31-34.

4
Cardoso se refere à expressão “superfície de contato” utilizada por Fernand Braudel. CARDOSO, André Luiz Carvalho. Arquitetura nas feiras ao ar livre: paradigmas para construções de mercados populares contemporâneos. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, FAU UFRJ, 2011, p. 119.

5
Idem, ibidem, p.119.

6
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Homens lentos, opacidades e rugosidades. In BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein. Redobra 9, Salvador, Cian Gráfica Editora Ltda, 2012, p. 58-71.

7
É interessante observar como a exposição prolongada a essas duas diferentes espacialidades pode fazer mudar o próprio corpo e sua relação com o espaço urbano. Estudos da área de conforto têm demonstrado alterações com relação à tolerância de estresse térmico com a exposição prolongada a espaços climatizados, o qual pode cair em até dois graus. KRÜGER, E.; DRACH, P. Quantificação dos impactos da climatização artificial na sensação térmica de transeuntes em termos de alterações no microclima. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana (Brazilian Journal of Urban Management), 2017, n. 9, vol. 1, p. 301-312.

8
KEHL, Maria Rita. Trapos de nuvens. In BOGÊA, Inês (org.). Oito ou nove ensaios sobre o Grupo Corpo. São Paulo, Cosac & Naify, 2001, p. 51.

9
“As máquinas são simulações dos órgãos do corpo humano. A alavanca, por exemplo, é um braço prolongado. Potencializa a capacidade que tem o braço de erguer coisas e descarta todas as suas outras funções. É “mais estúpida” que o braço, mas em troca chega mais longe e pode levantar cargas mais pesadas.” FLUSSER, Vilém; CARDOSO, Rafael (org.). O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 46.

10
De fato, é possível que Verger estivesse particularmente interessado em registrar tal ação: de um total de dezesseis fotografias acessadas do fotógrafo que registram as feiras livres, foram encontradas seis ocorrências diferentes da ação em quatro imagens. Em contraponto, de todas as 2.268 imagens do acervo construído em 2015-2016, esse gesto só aparece em duas ocorrências.

11
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.

12
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

13
Ver SILVA, Maria Angélica da; ALCIDES, Melissa M.; CERQUEIRA, Louise Maria M. C. Memórias palatáveis: práticas e saberes na produção da farinha de mandioca em Alagoas, Brasil. Revista Patrimônio e Memória, Dossiê 2-2019: Alimentação: práticas, significados e cultura em perspectivas sociais e históricas, v. 15, n. 1, Assis, jan./ jun. 2019, p. 47-72.

14
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Inventário nacional de referências culturais: manual de aplicação. Rio de Janeiro, Iphan, 2000, p. 30.

15
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como patrimônios. Horizontes antropológicos, v. 11, n. 25, Porto Alegre, jan./jun. 2005, p. 22-23 <https://bit.ly/3jpb49H>.

16
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro, 2007, p. 114.

sobre as autoras

Louise Maria Martins Cerqueira é arquiteta e urbanista (Universidade Federal de Alagoas/2011). Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas, com bolsa Capes.

Maria Angélica da Silva é graduada em arquitetura pela UFMG, doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense/Architectural Association School (1998), pós doutorado na Universidade de Évora (2006) e de Bolonha (2019). Professora titular da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Alagoas. Coordena o Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem. Bolsista CNPq.

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255.03 patrimônio imaterial
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255

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Reflexões sobre o processo de projeto da Casa de Ópera de Sidney

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255.01 morfologia e crescimento urbano

Padrões de crescimento urbano em cidades novas de frentes colonizadoras

Uma abordagem morfológica e historiográfica do tecido urbano de Marechal Cândido Rondon

Mariana Pizzo Diniz and Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima

255.02 direito habitacional

Direito e crise em tempos de pandemia

A emergência do direito à moradia

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255.04 comunidade LGBTQI+

A praça é queer?

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Afinal quem tinha mesmo razão era Luís Saia

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255.07 patrimônio

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