“As minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis”.
Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo: diário de uma favelada (1).
O presente estudo é um ensaio que tem por objetivo levantar reflexões acerca das formas de apropriação da ideia de branquitude na produção espacial, durante a primeira metade do século 20. Partindo do pressuposto da existência de uma hegemonia da branquitude no exercício das práticas arquitetônicas e urbanísticas modernistas, busco suscitar a análise de como o racismo opera na constituição de tais práticas. Enquanto arquiteta branca, acredito que uma das contribuições que posso acrescentar para a luta antirracista é evidenciar os privilégios raciais presentes nessa área de conhecimento.
O reconhecimento de que não carrego um vocabulário suficiente para abordar as relações entre raça e arquitetura revela o caráter desafiador deste exercício e evoca questionamentos cruciais neste processo de análise, no sentido de que esta ausência enfatiza as dinâmicas de poder que envolvem a construção do espaço. Ao examinar as correlações entre gênero e raça, questionando a regulação da produção espacial, podemos observar as ferramentas discursivas que moldam as práticas arquitetônicas e urbanísticas a partir de valores sociais que ressaltam o caráter patriarcal e racista da sociedade brasileira. Conforme pontuado por Lia Schucman:
“O contexto multirracial brasileiro propicia mediações bastante diferenciadas para a constituição de sujeitos e, portanto, para a subjetividade de brancos e não brancos. A marca dessa diferença e dessa desigualdade perpassa toda a socialização de tais indivíduos, na casa, na escola, na rua, e todos os espaços públicos são marcados pela supervalorização da branquitude e pela preferência do branco em relação ao não branco” (2).
A ideia de neutralidade do conhecimento e da produção espacial pauta que aquilo que constitui tanto a ideia de branquitude, quanto a noção de masculino, são considerados universais e, portanto, permitem que padrões culturais e valorativos atribuídos à população branca e masculina não sejam questionadas. Neste aspecto, “o branco não é apenas favorecido nessa estrutura racializada, mas é também produtor ativo dessa estrutura, através dos mecanismos mais diretos de discriminação” (3).
Os exercícios da arquitetura e do urbanismo podem ser entendidos como práticas moldáveis que materializaram diversos discursos ideológicos e políticos ao longo da história da humanidade. O movimento modernista representa o máximo exemplo de tal afirmação, ao se caracterizar como um ponto de ruptura com as vanguardas anteriores e uma resposta ao momento socioeconômico e político vivenciado naquele contexto. Mabel Wilson sublinha que "o discurso do modernismo deu origem à arquitetura modernista, e a arquitetura fez muito pouco para abordar como raça, representação racial e pensamento racial moldaram suas próprias práticas e discurso” (4). Fica evidente na fala da autora que as formas pelas quais a arquitetura modernista foi calcada simbolizam conceitos e percepções que correspondem à noção de branquitude. Lendo raça e gênero como narrativas, esta ausência crucial fornece as bases de entendimento que reforçam a subordinação e marginalização da população negra, sobretudo das mulheres negras.
No tocante da condição da população negra, antes de prosseguir com as análises da produção espacial, se faz necessário compreender os significados que envolvem a complexa experiência de ser mulher negra, realidade interseccional que não se confunde com a de ser mulher, tampouco com a de ser negro (5). É vital enfatizar que as discriminações de raça e de gênero, bem como as de sexualidade, de geração e de classe, compõem um cenário heterogêneo, no qual as diversas formas de subordinação interagem entre si, ou como colocado por Ina Kerner (6):
“Podemos então dizer que as intersecções entre racismo e sexismo não constituem algo unitário, mas têm significados distintos dependendo da dimensão específica. E o que difere aqui é sobretudo a forma, a configuração das relações de intersecção.
Desse modo, esses diversos sistemas de subordinação não se manifestam apenas de maneira isolada ou paralelamente uns aos outros, mas sim se entrecruzam, ou se interseccionam, de forma que os vários eixos de poder [...] constituem as avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos" (7).
As mulheres racializadas frequentemente estão posicionadas em um espaço onde o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por consequência, estão sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias. As mulheres racializadas e outros grupos marcados por múltiplas opressões, posicionados nessas intersecções em virtude de suas identidades específicas, devem negociar o tráfego que flui através dos cruzamentos. Esta se torna uma tarefa bastante perigosa quando o fluxo vem simultaneamente de várias direções. Por vezes, os danos são causados quando o impacto vindo de uma direção lança vítimas no caminho de outro fluxo contrário; em outras situações os danos resultam de colisões simultâneas (8).
Para Patricia Collins, não é dado à mulher negra escolher contra qual das opressões ela deve lutar, pois elas são imbricadas. A autora afirma que comparar e hierarquizar as opressões leva a uma perigosa competição por atenção, recursos e supremacia teórica, que é prejudicial para o enfrentamento de opressões interseccionais. "Precisamos de novas visões sobre o que é a opressão. Precisamos de novas categorias de análise que incluam raça, classe e gênero como estruturas de opressão distintas, mas imbricadas" (9). No que tange essa inseparabilidade das dimensões de gênero e raça, Luiza Bairros (10) afirma que discutir se deve o movimento de mulheres negras priorizar a luta contra o racismo ou contra o sexismo é infrutífero, uma vez que essas duas dimensões não podem ser dissociadas.
Posto essas premissas acerca da condição interseccional das mulheres negras e a não-neutralidade na produção do ambiente construído, denunciando sua característica racista e patriarcal, é latente a existência de um modelo impositivo de organização e reprodução espacial, pautado nas premissas do movimento modernista eurocêntrico. Com a adoção desse modelo de urbanismo e arquitetura, as cidades brasileiras foram configuradas de acordo com políticas de silenciamento e invisibilidade das populações pobres e negras, através de um aparato científico/ideológico que correspondem aos discursos higienistas e sanitaristas.
Neste aspecto a figura de Carolina Maria de Jesus é essencial na discussão sobre invisibilidade e vivência da cidade. Sua narrativa, que aborda o cotidiano periférico a partir do olhar sobre sua existência e sobre sua interação no espaço urbano, desmascara as falácias de superação das opressões de classe que a arquitetura modernista pregava, enquanto discurso. No livro Quarto de despejo (11), sobre o qual este trabalho irá se debruçar, os principais temas que Jesus aborda são os pensamentos acerca da rotina na favela enquanto mãe e chefe de família, a de trabalhadora informal na cidade, como catadora de papelão, além das dinâmicas de convivência com os outros moradores da favela do Canindé e as demandas trazidas pelos filhos.
Considerando a recorrência com que autora afirma o seu não-pertencimento à favela, durante a escrita do seu diário, a designação de “escritora favelada” não condiz com a sua construção literária, pois restringe seu campo discursivo ao universo do qual ela própria buscou afastar-se (12).
Modernismo e a produção dos espaços pautados pela branquitude
As premissas da arquitetura modernista são advindas dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna — Ciam e partem do pressuposto de que a estrutura urbana das cidades deveria submeter-se a um planejamento global em prol do interesse coletivo, sem distinções entre as esferas pública e privada. A prática arquitetônica, portanto, passa a ser entendida como um poderoso instrumento de transformação social, sobretudo nos aspectos ligados ao déficit habitacional enfrentados pelas cidades industrializadas, de modo que, alteradas as condições de vida na cidade, também se modificariam as relações sociais.
O racionalismo, característica essencial da arquitetura modernista, pautava-se profundamente na ideia de funcionalidade, na qual o modus operandi do pensamento projetual seguia a lógica do zoneamento funcional. As cidades modernas, entendidas como unidades divisíveis, deveriam ser repartidas em zonas distintas com funções específicas que atenderiam as necessidades de toda a população, regidas por normativas de ocupação espacial particulares quanto as seguintes funções: habitação, trabalho, lazer e circulação.
Entretanto, apesar do discurso inicial de modificação social, a cidade funcionalista define e segrega espaços, neutralizando as “forças anárquicas e explosivas que deram origem à própria modernização” (13). Ademais, tal racionalismo, associado aos modelos de governo desenvolvimentista encontrados nos países latino-americanos, atribuem à prática arquitetônica a capacidade de acentuar as distinções de gênero, raça e classe social, reiterando a estreita ligação entre capital econômico e direito à cidade.
“A segregação hierarquiza os grupos e classes sociais e desfaz as formas tradicionais de sociabilidade espontânea. É, neste sentido, uma força no desenraizamento, na dissociação de vínculos, além de retirar parcelas da população da arena das decisões coletivas e excluí-las dos bens socialmente produzidos na cidade” (14).
A partir da ideia de Dolores Hayden (15) de que o ambiente construído não é um espaço neutro, mas um artefato cultural, moldado pelas intenções e intervenções humanas, podemos extrair as prioridades, valores e crenças dos tomadores de decisão em nossa sociedade. Ao longo das décadas vivenciamos uma cidade planejada por homens que criaram um ambiente construído em sua própria imagem, ignorando a presença e necessidades femininas, geracionais, étnicas e raciais. Deste modo, tanto o planejamento urbano modernista, quanto a prática arquitetônica, reforçam a ideologia patriarcal, classista e racista, ao assumir que domina todos os esquemas conceituais necessários para “‘reger’ os outros” (16). Este tipo de abordagem totalizadora, que coloca o conhecimento científico acimas das experiências individuais, demonstrou-se extremamente ineficiente justamente pela pretensão generalista que não abarca todas as especificidades de grupos minoritários.
Conforme pontuado por Késia Conceição (17) a produção e manutenção de ambientes construídos segregados orientam-se por estruturas de manutenção de poder e hierarquias que regulam a organização e reprodução do espaço urbano ao seguir uma lógica patriarcal, racista e classista. Neste aspecto, a categoria raça, ao associar-se às dinâmicas urbanas, não se caracteriza enquanto elemento monolítico. “O espaço urbano traz o envolvimento de relações complexas, entre estas, as diversas problemáticas que as dinâmicas urbanas impuseram e impõem a população negra” (18).
No tocante sobre as dinâmicas urbanas no Brasil, podemos observar a naturalização da racialização do espaço, no qual é considerado comum e, portanto, não questionado, o fato de pessoas brancas constituírem a maior parte dos residentes dos bairros centrais, ao passo que as periferias urbanas são ocupadas majoritariamente pela população negra. Podemos inferir, portanto, que as noções de branquitude perpassam pela ideia de privilégios.
Na análise dos conceitos de branquitude, Ruth Frankenberg (19), propõe que, no processo de investigação da categoria, atentemo-nos ao seu caráter flexível, de modo que se faz necessário levar em consideração a variação de acordo com a localização nas sociedades, mesmo que se refira a uma situação de privilégios branco. A autora elenca e define o conceito de branquitude em oito pontos essenciais:
1. A branquitude é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial;
2. A branquitude é um “ponto de vista”, um lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros e as ordens nacionais e globais;
3. A branquitude é um lócus de elaboração de uma gama de práticas e identidades culturais, muitas vezes não marcadas e não denominadas, ou denominadas como nacionais ou “normativas” em vez de especificamente raciais;
4. A branquitude é comumente redenominada ou deslocada dentro das denominações étnicas ou de classe.
5. Muitas vezes a inclusão na categoria branco é uma questão controvertida e, em diferentes épocas e lugares, alguns tipos de branquitude são marcadores de fronteira da própria categoria.
6. Como lugar de privilégio, a branquitude não é absoluta, mas atravessada por uma gama de outros eixos de privilégio ou subordinação relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial, mas o modulam ou modificam.
7. A branquitude é produto da história e é uma categoria relacional. Como outras localizações raciais, não tem significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos. Nessas condições, os significados da branquitude têm camadas complexas e variam localmente e entre os locais; além disso, seus significados podem parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis.
8. O caráter relacional e socialmente construído da branquitude não significa, convém enfatizar, que esse e outros lugares raciais sejam irreais em seus efeitos materiais e discursivos (20).
Partindo das definições de Frankenberg, podemos assumir o caráter universal e neutro da branquitude que invisibiliza e silencia no exercício de organização social e regulação espacial, resultando em uma distribuição desigual de poder e privilégios pautados pela raça. Nesta discussão, é vital enfatizar a flexibilidade que a branquitude adquire ao produzir limites e fronteiras espaciais que se encontram em constantes mudanças. No que tange às análises do espaço urbano em países latino-americanos associadas à vieses raciais, Conceição aponta a necessidade de uma perspectiva que não restrinja a observação das periferias à ideia de “bolsões de pobreza”, mas que identifique nesses locais habitados, majoritariamente, pela população negra, espaços de “resistência no interior da sociedade” (21).
Projetos de silenciamento e a narrativa do Quarto de Despejo
A produção do espaço urbano perpassa pela noção de vivência da cidade que é construída e afetada pelas relações dos diversos sujeitos urbanos. Neste sentido, as práticas arquitetônicas e urbanísticas modernistas instauraram nas cidades brasileiras, durante a primeira metade do século 20, um modelo homogeneizador de controle higienista que, sob a égide do progresso, silenciou e invisibilizou as camadas populares da sociedade, sobretudo as populações negras. Eni Orlandi afirma que
“A cidade é um espaço real de significação sujeito a transformação que, pela imposição do urbano (excessivo), tal como ele é pensado, é abafado, silenciado. A materialidade simbólica da cidade é contida na/pela urbanização. Há, assim, uma redução significativa da cidade e do social ao urbanizado” (22).
A cidade modernista, portanto, ao invés de materializar uma sociedade regida por padrões econômicos igualitários (como almejado em seu discurso ideológico), reforça e objetifica a promessa de ascensão social. Desta maneira, a produção espacial urbana no Brasil, ao ser duplamente atravessada pelas dinâmicas de classe e pelos conflitos raciais, introduz lógicas de ocupação de negação, como a periferização (23). Tais táticas de regulação da construção do espaço urbano revelam a tendência de vulnerabilidade, a qual é constantemente exposta à reprodução da vida negra, sobretudo a vida das mulheres negras
“A condição de favelado representa uma vulnerabilidade que não o atinge apenas enquanto morador: atinge-o também no cerne dos direitos civis, pois mais fácil e frequentemente pode ser confundido com “malandros” ou “maloqueiros” que constituem o objeto especial da ação policial e muitos são confundidos, o que faz com que, mesmo aqueles que não tenham passado pela experiência, interiorizem a iminência do perigo. Foco de batidas policiais, a favela é também estigmatizada pelos habitantes “bem comportados” como antro de desordem que destoa da paisagem dos bairros melhor providos, precisando ser removida para a que a tranquilidade volte a reinar no quotidiano das famílias que se sentem contaminadas pelo perigo da proximidade dos barracos” (24).
Posto a condição da cidade, enquanto espaço de poder e palco de privilégios na sociedade brasileira, é possível alcançar na escrita da Jesus (25) a sua perspectiva urbana, constituída tanto pelas imagens propagadas pela vivência da cidade, quanto pelo ideário vulnerável de periférica, que apresenta um forte simbolismo de resistência e insubordinação. Neste aspecto, para abordar a condição de escrita de autoras negras, Conceição Evaristo afirma que:
“O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e quando muito, semialfabetizados, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita? Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção de vida. [...] Em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura dominante, escrever adquire um sentido de insubordinação” (26).
É através do olhar sobre sua experiência na cidade de São Paulo, que conseguimos observar as várias camadas dos processos que envolvem as políticas de silenciamento, negação e invisibilidade urbanos que a cercam:
“19 de maio de 1958: Deixei o leito as 5 horas. Os pardais já estão iniciando a sua sinfonia matinal. As aves deve ser mais feliz que nós. Talvez entre elas reina a amizade e igualdade. [...] O mundo das aves deve ser melhor que o dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer.
... O que o senhor Juscelino tem de aproveitavel é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos ouvidos. E agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catête. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome.
... Deixei de meditar quando ouvi a voz do padeiro:
– Olha o pão doce, que está na hora do café!
Mal sabe êle que na favela é a minoria quem toma café. Os favelados comem quando arranjam o que comer. Todas as familias que residem na favela tem filhos. Aqui residia uma espanhola Dona Maria Puerta. Ela comprou um terreno e começou a economisar para fazer a casa. Quando terminou a construção da casa os filhos estavam fracos do pulmão. E são oito crianças.
... Havia pessoas que nos visitava e dizia:
– Credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo.
... Eu estou começando a perder o interesse pela existência. Começo a revoltar. E a minha revolta é justa.
... Lavei o assoalho porque estou esperando a visita de um futuro deputado e êle quer que eu faça uns discursos para êle. Êle disse que pretende conhecer a favela, que se for eleito há de abolir as favelas.
... Contemplava extasiada o céu côr de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adorava o meu Brasil. O meu olhar pousou nos arvorêdos que existe no inicio da rua Pedro Vicente. As folhas movia-se. Pensei: elas estão aplaudindo este meu gesto de amor a minha Patria. [...] Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu pensei no Casimiro de Abreu, que disse; ‘Ria criança. A vida é bela’. Só se a vida era boa naquele tempo. Porque agora a época está apropriada para dizer: ‘Chora criança. A vida é amarga’” (27).
No trecho supracitado de Jesus constata-se a complexidade das dinâmicas espaciais que edificam as cidades brasileiras, ao estabelecer muros invisíveis que delimitam as localidades em função de uma lógica de zoneamento racializado, sob a qual, para cada indivíduo, são definidas fronteiras de acessibilidade, trânsito e vivência distintas. A produção destes espaços marginalizados não necessariamente corresponde a um estado de exclusão, mas às possibilidades periféricas de apropriação dos recursos e bens urbanos. Diferentemente de outras localidades, as favelas na cidade de São Paulo estavam em processo de surgimento e formação durante a escrita de Quarto de Despejo, a exemplo da própria favela do Canindé. Sua origem que está atrelada aos ideais desenvolvimentistas de cidade moderna e à construção do Parque Ibirapuera, dispunha de estímulos da própria Prefeitura da cidade para sua consolidação. Conforme pontuado por Marta Godinho, a Favela do Canindé
“Começou em 1948 junto à Rua Antônio de Barros, num terreno dos irmãos X, formou-se uma favela à revelia dos proprietários que, tão logo tiveram conhecimento, requereram despejo policial. Aquelas pessoas então desalojadas foram reclamar no Gabinete do Prefeito [Paulo Lauro], onde receberam um memorando para usarem o terreno da Prefeitura, no Canindé. Para alguns, a Prefeitura forneceu também caminhão para o transporte do barraco (28).
Situada às margens do rio Tietê, a favela do Canindé representava um espaço de transitoriedade não apenas nos escritos de Jesus, mas também na visão do poder público que havia deliberado para a área planos de reestruturação urbana que previam a construção de uma das principais vias da cidade de São Paulo, a Marginal Tietê.
No exercício do recolhimento dos materiais que garantiam sua sobrevivência, o que significava percorrer longas distâncias nos trajetos entre o centro de São Paulo e a favela do Canindé, Carolina Maria de Jesus seguia atenta às contradições que encontrava pelo caminho. Ao vivenciar a cidade modernista planejada e os espaços “espontâneos” periféricos, “o olhar panóptico da narradora não se circunscreve apenas à favela, o que torna sua narração ainda mais interessante, pois se volta aos dois lados da cidade, buscando apreendê-la em sua totalidade” (29).
“As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”.
A denúncia das práticas segregadoras, racistas e sexistas presentes no primeiro momento do movimento modernista, ápice de atuação do modelo desenvolvimentista no Brasil, revelam a produção de uma cidade genocida e desmascara a falácia dos “anos dourados”. Nesta perspectiva, a narrativa de Jesus (31) aponta a necessidade vital de construção de novas abordagens de análise do espaço modernista que incluam nos pilares de observação as dinâmicas de urbanização informal, forjadas em estruturas racistas, uma vez que a produção espacial representa um local de atuação e manutenção de poder e privilégios.
Considerações finais
Dentro do cenário brasileiro, o uso desse arcabouço teórico buscou levantar reflexões sobre os imbricamentos das dinâmicas de gênero, raça e classe social nas relações de produção espacial modernista. Percebe-se que a construção deste espaço urbano foi calcada em mecanismos que atuaram como forma de controle social, no que se refere às experiências na cidade, que se mantiveram inalteradas até os dias atuais. Desse modo, a reprodução de privilégios, vulnerabilidades e desigualdades encontra-se associada aos projetos de silenciamento e invisibilidade das diversas minorias representativas. É urgente, neste sentido, a compreensão da cidade não somente como uma denominação, mas sobretudo, uma organização do espaço geográfico, cultural e social.
A narrativa de Carolina Maria de Jesus nesse processo de compreensão é de suma importância, por configurar uma denúncia ao ideário de utopias igualitárias modernista no cenário urbano. A complexidade que cerca a produção espacial em contextos sócio-históricos de modernidade excludente, como é o caso do Brasil, é evidenciada nos seus relatos cotidianos, através dos sentimentos de não pertencimento e de marginalização urbana/social. Faz-se necessário, portanto, verificar as especificidades das populações negras, sobretudo das mulheres negras, durante o exercício de produção espacial e análise crítica desta produção, no sentido de observar que as dinâmicas urbanas são construídas em pilares que corroboram na manutenção das desigualdades econômicas, sociais e de políticas racializadas.
notas
1
JESUS, Carolina Maria de [1960]. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10ª edição. São Paulo, Ática, 2014, p. 43.
2
SCHUCHMAN, Lia. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese de doutorado. São Paulo, IP USP, 2012, p. 14.
3
Idem, ibidem, p. 22.
4
WILSON, Mabel. Architecture and Race. Critical Dialogues on Race and Modern Architecture, at Columbia GSAPP. YouTube, San Bruno, 2 mar. 2016 <https://bit.ly/3Bt5ESA>.
5
Termo utilizado no gênero masculino para ratificar o não lugar onde se encontra a mulher negra dentro dos movimentos sociais feministas e negros tradicionais, uma vez que contemplam, respectivamente, as demandas das mulheres brancas e dos homens negros.
6
KERNER, Ina. Tudo é interseccional? Sobre a relação entre racismo e sexismo. Novos Estudos Cebrap, n. 93, 2012, p. 58.
7
CRENSHAW, Kimberlé Williams. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, 2002, p. 177.
8
Idem, ibidem.
9
COLLINS, Patricia. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. Reflexões e práticas de transformação feminista. São Paulo, SOF, 2015, p. 14.
10
BAIRROS, Luiza. Nossos Feminismos Revisitados. Estudos Feministas, v. 3, n. 2, 1995.
11
JESUS, Carolina Maria de [1960]. Op. cit.
12
MIRANDA, Fernanda Rodrigues de. Os caminhos literários de Carolina Maria de Jesus: Experiência marginal e construção estética. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH USP, 2013.
13
LEFEBVRE, Henry [1970]. A Revolução Urbana. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008, p. 122.
14
Idem, ibidem, p. 127.
15
HAYDEN, Dolores. The Grand Doméstic Revolution: A History of Feminist Designs for American Homes, Neighborhoods, and Cities. Cambridge, The MIT Press, 1982.
16
VIEIRA, Claudia Andrade; COSTA, Ana Alice. Fronteiras de gênero no urbanismo moderno. Revista Feminismos, v. 2, n. 1, jan./abr. 2014, p. 7-17.
17
CONCEIÇÃO, Késia. Experiência Urbana Negra: Apontamentos da Necropolítica Racial no Espaço Urbano. Anais V Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Salvador, UFBA, 2018.
18
Idem, ibidem, p. 222.
19
FRANKENBERG, Ruth. Apud SCHUCHMAN, Lia. Op. cit., p. 30.
20
Idem, ibidem, p. 30.
21
CONCEIÇÃO, Késia. Op. cit., p. 225.
22
ORLANDI, Eni. Cidade dos sentidos. Campinas, Pontes, 2004, p. 64.
23
Lógica típica das grandes metrópoles, a exemplo do Distrito Federal, na qual tem-se o aparecimento de cidade “clandestinas”, num período bastante estreito, que ocupam áreas não disputadas pelo mercado imobiliário. Para mais informações sobre periferização ver: NUNES. Brasilmar Ferreira; KOHLSDORF, Nara. Sociologia do Espaço Social de Brasília: ou Descontrole Planejado. In NUNES. Brasilmar Ferreira; KOHLSDORF, Nara. Brasília: a construção do cotidiano. Série Sociológica n. 174, Brasília, 1999.
24
KOWARICK, Lúcio. A espoliação Urbana. São Paulo, Paz e Terra, 1979, p. 92
25
JESUS, Carolina Maria de [1960]. Op. cit.
26
EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte, Mazza, 2007.
27
JESUS, Carolina Maria de [1960]. Op. cit., p. 35-36.
28
GODINHO, Marta [1955]. Apud PAULINO, Jorge. O pensamento sobre a favela em São Paulo: uma história concisa das favelas paulistanas. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2007, p. 80-81.
29
MIRANDA, Fernanda Rodrigues de. Op. cit., p. 86.
30
JESUS, Carolina Maria de [1960]. Op. cit., p. 35.
31
Idem, ibidem.
sobre a autora
Larissa Nunes Sena Gomes é arquiteta e urbanista pela Universidade Católica de Pernambuco (2018) e atualmente, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia.