Erguidas na parte mais elevada do terreno, as três casas de pedra parecem corpos sólidos e inabalados. Edificados em pedra bruta, dois volumes acomodam-se mais abaixo e outro mais acima, formando um conjunto que gentilmente compõe e se integra à paisagem. Vistas mais de perto, a aparente solidez do conjunto se revela, agora, num grande mosaico de pedras, constituído das mais variadas formas e tamanhos. E, nesse engenhoso encaixe de múltiplos blocos, as paredes das casas se levantam e se conformam. Situado numa localidade conhecida como Caravaggio, na cidade de Nova Veneza, em Santa Catarina, o conjunto edificado das casas de pedra da família Bratti é um bem resguardado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan e integrante do Roteiro Nacional de Imigração (1). De acordo com os relatos da família, o casal Bratti e seus quatro filhos (2) emigraram da Itália para o Brasil por volta de 1891 e se instalaram num lote de mais ou menos vinte e cinco hectares na Colônia Nova Veneza (3). As pedras utilizadas nas casas foram retiradas do próprio lote e as edificações teriam sido propostas por um dos filhos do casal, o jovem Luiz Bratti, que já havia trabalhado como pedreiro, auxiliando seu pai, Pietro Bratti, antes de emigrarem da Itália (4).
O conjunto das edificações foi finalizado no início do século 20 e, segundo os relatos, demorou mais de dez anos para ser concluído (5). A primeira edificação que se avista é o celeiro, que também era utilizado como estrebaria. É formado por dois cômodos na parte de baixo, onde se acomodavam os animais leiteiros, e por um grande sótão na parte de cima, onde se guardavam os grãos. As largas paredes, que se anunciam pelas aberturas das portas e janelas, revelam a engenhosidade do artífice construtor. As pedras maiores e mais largas foram utilizadas na fundação da base e nos encontros das paredes, e as pedras médias e menores foram utilizadas no preenchimento dos tramos. Exceto pela estrutura do telhado e pela escada que dá acesso ao sótão, ambas feitas em madeira, ao entrarmos na edificação, o aglomerado de pedras brutas parece governar ainda mais absoluto, já que as paredes internas e o piso não foram revestidos. A edificação, em linhas simples e justas e sem requintes formais, revela, em sua materialidade, a sinceridade executiva do artífice, além do seu conhecimento técnico. A verdade construtiva de seu trabalho é demonstrada, sobretudo, nas irregularidades de sua superfície, na desigualdade dos contornos e na não uniformidade dos encaixes das pedras. Embora a rusticidade da edificação possa ser justificada, em parte, pelas circunstâncias da época de sua construção, ela também revela as escolhas do artífice construtor: a necessidade de uma construção de forma autônoma — baseada nos saberes e práticas resguardados pelos costumes —, o conhecimento construtivo aplicado na construção de sua moradia — incorporado a novos hábitos e aliado ao material disponível — e, principalmente, a materialidade de seu pensamento.
As diversas contribuições do trabalho do imigrante, sobretudo dos artífices, ajudaram a dar forma à arquitetura rural catarinense. A maior parte dos imigrantes europeus chegou em terras catarinenses na segunda metade do século 19, formando colônias principalmente de alemães e de italianos. O forte impulso industrial que começou a se instalar na Europa já no final do século 18 promoveu novos arranjos na produção fabril e facilitou a fabricação de produtos de uso cotidiano, que anteriormente eram manufaturados nas oficinas de artesãos. O sistema das corporações de ofícios, que regulava a manufatura e as relações de trabalho fora abolido e dera lugar, principalmente, à liberdade das relações econômicas. Sem condições de concorrer com os produtos fabricados pela indústria e, ao mesmo tempo, por não quererem se tornar proletários, muitos artífices e camponeses imigraram ao Brasil motivados, sobretudo, pela possibilidade de se tornarem proprietários de terras (6).
A produção industrial do século 19, principalmente a falta de qualidade artística dos produtos oriundos da maquinaria moderna, provocou uma série de discussões acerca das práticas artísticas e das novas formas do fazer fabril. Os debates a respeito da natureza da arte e suas relações com a sociedade industrial que tomava corpo, acabaram por evidenciar novas formas de se perceber a arte e a arquitetura. Em meio a tais discussões, John Ruskin (1819-1900), um dos mais importantes pensadores do oitocentos, iniciava em As Sete Lâmpadas da Arquitetura (7), publicada em 1849, suas primeiras reflexões sobre as práticas artísticas e o trabalho humano na arquitetura. As concepções críticas de Ruskin sobre o fazer arquitetônico reclamavam pela presença viva do trabalhador, algo que somente poderia ser alcançado, segundo ele, pela comunhão entre o trabalho e o pensamento do trabalhador na fatura de seu ofício. Tal comunhão, alimentada por uma certa liberdade de pensamento, revelaria o prazer executivo do trabalhador no exercício de seu trabalho, principalmente aquele realizado na arquitetura. O trabalho na arquitetura deveria evidenciar, em sua materialidade, a felicidade do trabalhador que contribuiu de alguma forma para a edificação da obra, entregando não somente o seu corpo e o seu trabalho, mas o seu espírito e a sua inventividade. Entretanto, a sociedade moderna e industrial caminhava na contramão dessa comunhão, colaborando para a corrupção do trabalho expressivo, sobretudo aquele realizado pelo homem comum, na medida em que buscava separar trabalho e pensamento em sua produção fabril. Para Ruskin, a “grande invenção civilizada da divisão do trabalho” (8), ao fragmentar o trabalho humano numa linha de produção, fragmentaria o próprio homem e, assim fragmentado, não lhe restaria a menor porção de vida e inventividade na execução de seu ofício. A indústria moderna era capaz de produzir tudo exceto “refinar e dar forma a um único espírito vivente” (9), porque ignorava a presença viva do trabalhador. Somente a comunhão entre trabalho e pensamento poderia reanimar o gesto dos trabalhadores, uma vez que, segundo o autor, seria “somente pelo trabalho que o pensamento pode[ria] se tornar saudável e somente pelo pensamento que o trabalho pode[ria] tornar-se feliz” (10) e os dois não poderiam ser separados sem corromper a pulsão de vida que alimenta o trabalhador. Para o autor, a riqueza essencial e a efetiva prosperidade de uma nação não dependeria da quantidade de mercadoria produzida, mas da quantidade de vida produzida por meio do seu trabalho (11).
Amante da arquitetura gótica e do trabalho vivo de seus artesãos, Ruskin teceu uma vigorosa crítica tanto em relação às práticas artísticas renascentistas (12), principalmente em sua arquitetura, quanto em relação ao trabalho expressivo realizado na sociedade vitoriana no século 19. Ambos, cada um a seu modo, evidenciavam a separação entre trabalho e pensamento no ofício do trabalhador comum. Essa ideia baseava-se, segundo o autor, em duas suposições equivocadas: “a primeira, que os pensamentos de um homem podem ser, ou devem ser executados pelas mãos de outro homem; a segunda, que o trabalho manual é uma degradação quando governado pelo intelecto” (13). E “um dos piores sintomas da sociedade moderna” seria, justamente, a concepção de que as “atividades oficinais” são de “caráter inferior ou pouco nobre” (14). A decadência do trabalho material manifestada no oitocentos se fundamentaria na fragmentação da produção, na precisão maquinal e na corrupção do trabalhador — ao considerar apenas a porção executiva de sua força braçal, desprezando o trabalho de seu intelecto. Esta forma de considerar o trabalhador apenas em sua força executiva era, para Ruskin, completamente imoral. A regressão de toda a indústria humana no século 19 seria resultante dessa fragmentação, da ausência de energia pulsante no trabalho humano, uma vez que a falta de vida no trabalho e o gesto inanimado do trabalhador é o que tornaria a coisa produzida vulgar e sem valor. E mesmo que a perfeição aparente da coisa edificada pudesse nos emocionar de alguma maneira, o verdadeiro espírito da beleza teria se corrompido, porque somente o trabalho realizado por um trabalhador domesticado estaria presente, enquanto que sua engenhosidade, sua alma e sua vitalidade já teriam se perdido por inteiro. Para além das questões em relação à qualidade artística dos produtos fabricados pela maquinaria moderna e do uso da máquina no processo produtivo, a crítica estética no pensamento ruskiniano repousa numa intensa crítica social, principalmente no que refere-se à natureza das relações de trabalho no sistema capitalista, uma vez que, para o autor, somente uma sociedade saudável — socialmente, moralmente e economicamente —, sobretudo em suas relações de trabalho, poderia produzir boa arte.
A natureza da arquitetura Gótica era evidenciada por Ruskin porque confessava a comunhão entre a mente inventiva e a mão executiva daqueles que a fizeram, tomando o trabalhador em sua totalidade e aceitando tanto suas habilidades quanto suas incapacidades. Este seria um dos principais elementos de poder na natureza da arquitetura gótica: ao tomar as habilidades e incapacidades do homem comum, a arquitetura gótica reconhecia o “valor individual de cada alma” e aceitava a energia inculta e rude do trabalhador, que somente poderia ser manifestada rudemente (15). Para Ruskin, a arquitetura era a expressão do temperamento moral de uma sociedade, tanto daqueles que edificaram a obra quanto daqueles que usufruem de sua materialidade. E, dessa maneira, a materialidade da arquitetura carregaria em seu corpo as relações entre a vida do trabalhador e o seu trabalho, revelando a moralidade ou a imoralidade de seu sistema produtivo. Em seu discurso, Ruskin buscava recuperar a capacidade do trabalhador no exercício de seu ofício, reunindo, novamente, arte e vida, matéria e espírito, trabalho e pensamento, exaltando a inseparável ligação entre as formas externas e a energia que animava os artesãos góticos em suas práticas artísticas.
Retomando a materialidade das casas de pedra da família Bratti, o trabalho do artífice também se manifesta nos outros dois volumes que compõem o conjunto edificado. O espaço da casa divide-se em dois edifícios: um que abrigava a cozinha, a sala e a cantina e outro que abrigava os quartos. A mesma estrutura construtiva utilizada no celeiro foi empregada nesses volumes: com pedras maiores assentadas na base e nos cantos das paredes. A edificação da cozinha é um pouco menor, se comparada ao celeiro e ao sobrado, e tem apenas um pavimento. Na fachada principal, uma porta deslocada para o lado e uma sequência de três janelas assumem considerável importância em sua aparência formal. Feitas em madeira bruta e no formato de duas folhas, as aberturas guardam a cor natural da madeira. Diferentemente do celeiro, as paredes internas e o piso foram revestidos. Na fachada oposta, nos fundos da edificação, se localizava a cantina. A parede externa dos fundos da cantina parece ter uma escala reduzida em razão tanto da declividade do telhado assimétrico em duas águas quanto da pequena elevação do terreno na parte de trás.
A edificação ao lado da cozinha, o sobrado, é a maior do conjunto construído. Formada por dois pavimentos e pelo sótão, tem a estrutura do telhado feita em três águas. De acordo com os relatos da família, a entrada principal dava-se pelo lado oposto ao que se mantém hoje e, dentre os três volumes edificados, o primeiro edifício que se mostrava seria o sobrado, seguido da cozinha e do celeiro. Da mesma forma que na edificação da cozinha, as aberturas foram feitas em madeira, sendo as janelas em formato de duas folhas. A materialidade bruta das pedras (16) e da madeira formam uma harmoniosa composição. As várias tonalidades das pedras, desde uma coloração amarelo ocre intensa até uma tonalidade mais acinzentada, ressaltam e parecem refletir as nuances da madeira. Quando o sol invade o corpo das edificações, as imperfeições de sua arquitetura são ainda mais reveladas pelo contrate das sombras provocado pela luz. Segundo Ruskin, o arquiteto não deveria se atentar somente às linhas puras de seu desenho, mas pensar em suas sombras e imaginar como o corpo do edifício se comportaria quando a luz matinal o invadisse ou a luz do entardecer o deixasse. Dessa forma, a “sombra positiva” seria mais importante na arquitetura do que na pintura, porque o pintor poderia fazer uso de diversas cores para alcançá-la enquanto que o arquiteto dependeria somente dos avanços e dos recuos de seus volumes. A arquitetura, “essa arte magnificamente humana” e que, para o autor, exerceria maior influência na vida do homem comum, deveria, necessariamente, expressar algum “tipo de simpatia humana”, demonstrada em sua materialidade, por meio das massas de “sombra viva” (17). No conjunto das casas de pedras, a “sombra positiva” no corpo edificado, ressalta as irregularidades das pedras engenhosamente colocadas pelo artífice ao mesmo tempo em que demonstra o seu pensamento construtivo. Tais irregularidades resguardam na presença viva do gesto do artesão, o prazer da arquitetura, o gosto em executar a edificação de sua moradia, em fabricá-la sob arranjos construtivos simples, resistentes e úteis, em simplesmente planejar a sua casa — um dos mais belos prazeres do homem.
Além do trabalho do artífice com pedras brutas, demonstrado nas casas de pedra da família Bratti, podemos destacar o trabalho dos artífices pedreiros, que cortam e assentam pedras extraídas da pedreira. Os irmãos Nicanor, Antenor e Nilton Zavarise (18) são de uma família tradicional de pedreiros da cidade de Urussanga, na região sul do estado de Santa Catarina, que ainda resguardam um saber-fazer geracional. De acordo com os relatos, são três gerações de pedreiros em que o conhecimento e a prática do ofício foi sendo transmitida de pai para filho. Todos começaram o convívio com o ofício desde criança, frequentando a pedreira em que o pai trabalhava, como uma forma de brincadeira. O aprendizado com a pedra, segundo eles, deveria começar desde pequeno, convivendo e observado o cotidiano do trabalho do pai, na extração e no corte das pedras. A passagem do conhecimento se dava de forma oral, baseada na observação e na repetição dos gestos do artesão. E, por volta dos quinze anos, o pedreiro iniciava a sua prática oficinal, embora trabalhasse ainda acompanhado do pai ou dos irmãos mais velhos.
O trabalho com a pedra é um trabalho demorado que requer do artesão muita paciência e obediência, pois existe um processo que precisa ser seguido e que não pode ser acelerado. Para os pedreiros, a paciência deveria ser a sua melhor companhia, uma vez que sem ela o ofício com a pedra simplesmente não poderia ser feito. O trabalho desses artífices começa com a escolha do matacão de pedra. O material por eles utilizados é a pedra granito em suas várias tonalidades e em duas opções de massa — numa granulagem fina ou numa granulagem mais grossa. Segundo Nicanor Zavarise, se escolhe a pedra pela casca, observando o tipo de massa do granito, uma vez que a escolha do grão da massa influenciaria no trabalho a ser executado. A partir da escolha do matacão se estabelece uma relação muito próxima entre o artífice e a pedra, que aumentará a cada toque, a cada corte. Essa ligação constitui a arte mesma do pedreiro em lidar com a materialidade da pedra, uma vez que a sua habilidade executiva e inventiva dependeria, em maior ou menor grau, dessa relação particular com o material. Sennet chama isso de “consciência material” (19), algo que seria próprio do artífice, a familiaridade com a matéria, uma certa curiosidade em aprender suas características, em tornar-se próximo dessa materialidade. Além disso, pela observação do matacão, era possível encontrar o “veio da pedra”, que determinaria o sentido do corte. De acordo com Antenor Zavarise, se o trabalho fosse feito fora do veio da pedra, o corte começaria errado e a pedra ficaria retorcida ao final, numa tentativa de reencontrar o veio perdido. Além disso, se o veio não fosse respeitado, a pedra rachava ao invés de cortar. E, para esses pedreiros, existiria uma diferença muito grande entre a materialidade de uma pedra rachada e de uma pedra cortada, já que a pedra rachada iria contra à natureza do material. Vale ressaltar, também, a obediência desses pedreiros em relação às particularidades da pedra. Todos os artífices descreveram a soberania da pedra em relação ao homem, principalmente nos primeiros cortes na pedreira. Era preciso obedecer a pedra pois ela conduziria o seu trabalho. Tal obediência revelaria tanto a proximidade do artífice com a pedra quanto confessaria o respeito absoluto do pedreiro em relação à pedra e à sua natureza material.
Considerando o caráter da boa arquitetura, Ruskin declarava que um dos princípios que deveria reger a existência humana e todas as suas ações, incluindo a arquitetura, deveria ser o princípio da obediência, uma vez que a obediência, para o autor, estaria presente, em maior ou menor nível, em todas as coisas da Terra. Em seu pensamento, o grau de obediência em relação à Lei maior é o que definiria a majestade da coisa criada: quanto maior fosse a obediência da coisa em relação à Lei, maior seria a sua grandeza enquanto criação; ao passo que quanto menor fosse o grau de obediência da coisa criada, menor a sua majestade e maior a sua inferioridade. Em suas palavras:
“Exatamente na proporção da majestade das coisas na escala do ser, está a plenitude de sua obediência às leis que estão postas sobre elas. A gravitação, é menos calmamente, menos instantaneamente obedecida por um grão de poeira do que é pelo sol e pela lua” (20).
A questão colocada por Ruskin, na qual o nível de obediência evidenciaria a majestade da coisa criada, parece abrigar uma crítica à baixa gravitação dos tempos modernos, principalmente na arquitetura. Segundo o autor, essa arte, que deveria exigir “para a sua prática, a cooperação dos corpos dos homens e, para a sua perfeição, a perseverança de sucessivas gerações” (21), parecia basear-se cada vez mais na originalidade do indivíduo e no desejo de mudança das leis comuns. O arquiteto moderno buscava cada vez mais se distinguir do campo comum da arquitetura, esquecendo-se que os “acréscimos ou alterações” dessa arte eram muito mais “o trabalho do tempo e de multidões do que de inventores individuais”. A boa arquitetura, assim como as demais artes, deveriam expressar os princípios da Obediência, Unidade Comunhão e Ordem.
Depois de escolhido o matacão, o trabalho com a pedra começava com o primeiro corte, feito por meio de uma explosão, processo que os pedreiros chamam de “dar fogo”. Para tanto, era necessário furar a pedra. O furo era feito manualmente por meio de uma broca e necessitava do trabalho sincronizado de dois pedreiros: um segurando e outro martelando a broca. A cada batida virava-se um pouco a broca e, assim, o furo ia se formando lentamente e poderia chegar a um metro e meio de comprimento, dependendo do tamanho do matacão. Hoje este processo é feito por meio de um martelete e, segundo Nilton Zavarise, o trabalho que antes demorava quase um dia inteiro para ser feito, agora é realizado em menos de uma hora. Após feito o furo, colocava-se o explosivo para fazer a detonação. Dependendo do tamanho do matacão seria necessário mais de uma explosão, até que fosse possível prosseguir o corte com o uso somente dos ponteiros.
Após o processo de explosão do matacão, o pedreiro seguia o seu trabalho somente com o uso de ferramentas manuais, dentre elas, os ponteiros, a marreta e os “ponchotes”. Com o ponteiro, o pedreiro marcava a linha de corte na pedra e, em seguida, começava a fazer as cunhas — pequenos buracos pontiagudos desenhados na pedra e feitos também a partir dos ponteiros. Em seguida, colocava um “ponchote” em cada cunha e, num movimento ritmado, ia martelando uma vez em cada “ponchote” até a pedra se abrir e cortar. Esse processo se repetia até a pedra atingir o tamanho necessário (22). As cunhas, atualmente, também podem ser feitas com o uso de ferramentas elétricas, o que economizaria tempo e esforço do artesão. Contudo, para esses pedreiros, o uso de ferramentas elétricas parece corromper a genuína relação entre o artífice e a pedra. Embora tais ferramentas colaborem para acelerar o processo de execução do trabalho, para esses pedreiros, a beleza de seu ofício repousaria na artesania feita de forma manual. Honório Candiotto (23), um artífice de Cocal do Sul, cidade também localizada no sul do estado catarinense, destaca que a perfeição do trabalho com a pedra estaria totalmente vinculada ao trabalho artesanal, “aquele que ofende menos a pedra”, uma vez que tanto o corte maquinal quanto o corte manual deixariam marcas aparentes na pedra — vestígios que demonstrariam a forma como foi realizado. Se o trabalho fosse feito manualmente, as irregularidades naturais da pedra eram respeitadas e preservadas, ao passo que se feito pela máquina, a superfície da pedra tornava-se uniformizada e lisa, desconsiderando as singularidades da natureza de cada pedra. As marcas manuais, facilmente identificadas pelos pedreiros nas pedras assentadas, além de serem fontes de beleza atestariam, portanto, a sua forma de execução, evidenciando a qualidade da artesania do trabalho manual em relação ao maquinal. Vale ressaltar que para esses pedreiros a qualidade do trabalho manual parece, também, estar intimamente vinculada tanto a uma certa dificuldade em sua fatura — que requer uma dose de engenhosidade do artífice no exercício de sua artesania — quanto ao tempo lento do artesão em sua prática oficinal — que demonstraria um trabalho zeloso e bem feito. De acordo com Sennet, a lentidão do trabalho artesanal seria, ao mesmo tempo, uma fonte de satisfação para o artífice quanto o permitiria tomar posse, aos poucos, da habilidade necessária para a execução de seu ofício (24).
O processo manual do trabalho dos pedreiros estende-se na confecção de parte de suas próprias ferramentas, sobretudo os ponteiros, que gastam com mais facilidade. Neste momento, o ofício do pedreiro parece misturar-se ao do ferreiro. O ponteiro é uma das ferramentas principais no trabalho com a pedra e cada artesão fabricava os seus em vários tamanhos, utilizando como matéria-prima principal as molas de trem. Para alcançar a forma desejada, os ponteiros precisavam ser forjados — aquecidos numa fornalha e malhados numa bigorna. Depois de forjada, a ferramenta passava por um processo que os pedreiros chamam de “dar têmpera” ao metal. O método consiste em aquecer a ponta do ponteiro novamente, malhar numa bigorna até atingir a forma desejada e resfriá-la em água ou óleo. Este processo conferia ao metal a necessária resistência e maciez, uma vez que a ponta do ponteiro precisava ser rígida o bastante para furar a pedra, mas não poderia ser dura demais e quebrar nas primeiras marteladas ou ser mole demais e não servir para o corte. O processo da têmpera era feito quando se fabricava uma nova ferramenta e, principalmente, na afiação diária dos ponteiros, uma vez que tais utensílios precisavam ser amolados ao final de um dia de trabalho. Ainda considerando as ferramentas manuais dos pedreiros, podemos observar uma certa rusticidade em suas formas, que revela a simplicidade mesma do gesto do artesão. A precariedade manifestada em suas ferramentas revelaria a rudimentariedade do ofício do pedreiro que requer, nessa relação particular entre o homem e a pedra, antes uma ferramenta útil do que uma ferramenta refinada e polida em suas formas. É importante evidenciar, também, que não se deseja aqui estabelecer um conflito ou um juízo de valor, já há tempos superado, entre o trabalho manual e o trabalho maquinal. O que se pretende seria antes perceber a importância fundamental da ferramenta manual na constituição do trabalho desses pedreiros.
O trabalho do artesão da pedra que se prolonga na fatura de suas próprias ferramentas parece revelar o absoluto domínio do artífice sobre o seu ofício, legitimando a comunhão entre corpo e mente, trabalho e pensamento, confessados na artesania cotidiana desses pedreiros. Seja no trabalho do artífice que ergueu a sua moradia com pedras brutas, seja no ofício resguardado pelos artesãos que cortam e assentam a pedra por eles extraída da pedreira, percebe-se a necessidade e a exigência de um homem inteiro, completo, no exercício do seu trabalho. Essa completude, tão reclamada por Ruskin, parece, aqui, constituir a essência mesma do trabalho desses artesãos. A engenhosidade do artífice da pedra, que conjuga o seu corpo e o seu pensamento na execução de um ofício resguardado por gerações, revela a presença viva do artífice na materialidade por ele produzida. Ruskin dizia que somente uma matéria feita por um homem bom e por um homem feliz, inteiramente envolvido em sua execução, educaria plenamente porque ele acreditava que as virtudes presentes no artista ou no artífice, assim como a moralidade ou imoralidade do processo produtivo necessário à sua fatura, estariam presentes na coisa produzida. E, dessa maneira, a matéria assim criada, teria o poder de ascender naquele que fosse fruir de tal materialidade, as mesmas virtudes. A arquitetura, esta arte fundamentalmente humana, era para o autor, um encontro entre homens — entre aqueles que entregaram trabalho e pensamento em sua execução e aqueles que desfrutam de sua materialidade. Perceber a presença do artesão da pedra em seu ofício construtivo pelas concepções ruskinianas em relação ao trabalho na arquitetura pode nos ajudar a compreender melhor o trabalho e o pensamento presentes tanto na simplicidade das edificações rurais quanto nos modos de um saber-fazer ainda resguardado por gerações. Distante de um eventual saudosismo que possa invadir tal análise, a aproximação do pensamento ruskiniano poderia servir para lançarmos outros olhares sobre o patrimônio material e imaterial realizado pelo homem comum, buscando reconhecer a presença viva do gesto de seus artífices, a partir da materialidade resultante de seu trabalho.
notas
NE — Este texto resulta da pesquisa de mestrado orientada pelo professor doutor Rodrigo Bastos, na linha de Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade, do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina. LIMA, Eliane Baader de. O fantástico paradoxo no pensamento estético de John Ruskin e a presença do artífice na arquitetura rural de Santa Catarina. Florianópolis, PosArq UFSC, 2017.
1
O processo de tombamento das casas de pedra teve início em 2007. Atualmente o bem está inscrito nos Livros do Tombo Histórico, Belas Artes, Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Cf. Lista de Bens — Tombamentos Federais — Iphan SC; e Iphan. Roteiros nacionais de imigração Santa Catarina — Dossiê de Tombamento: síntese tombamentos federais. VIEIRA FILHO, Dalmo; WEISSHEIMER, Regina M. (org.), v. II. Florianópolis, 11ª Superintendência Regional Iphan Santa Catarina, s.d.
2
O casal Pietro Bratti e Lúcia Anzollut teve cinco filhos. Oswaldo, o filho mais velho, estava à serviço do exército e não imigrou para o Brasil naquela ocasião. SACHET, Irmãos. Seis Imigrantes, três casas de pedra, duas famílias, 2016, p. 31. Os irmãos Sachet, descendentes da família Bratti, fizeram uma revista em comemoração aos 125 da imigração italiana em Nova Veneza. A revista traz informações sobre a história de suas famílias e sobre as casas de pedra.
3
O governo provisório de Marechal Deodoro da Fonseca editou o Decreto n. 528 de 28 de junho de 1890, conhecido como Lei de Glicério, que possibilitava às empresas privadas o direito de introduzir imigrantes no país. A história de Nova Veneza teria começado a partir deste decreto, como a primeira Colônia do Brasil republicano. Neste mesmo ano, a União firmou um contrato com a empresa Angelo Fiorita & Cia, que se comprometia a formar vinte povoações agrícolas, introduzindo uma grande quantidade de imigrantes europeus no país. No início do ano seguinte, em 1891, começaram os trabalhos de medição de lotes e aberturas de estradas para a instalação dos imigrantes. Neste mesmo ano, a Companhia Angelo Fiorita fez a cessão de todos os direitos e deveres do contrato realizado com a União para a Companhia Metropolitana, que manteve Miguel Napoli à frente do empreendimento em Santa Catarina, como diretor e administrador da Colônia por alguns anos. Antes da formação da Colônia Nova Veneza, já haviam sido fundadas as Colônias Azambuja (1877), Urussanga (1878), Criciúma (1880) e Cocal do Sul (1885). No início de 1912 foi criado o Distrito de Paz de Nova Veneza; em 1913, Nova Veneza adquiriu a categoria de Vila; em 1925 foi criado o município de Criciúma e Nova Veneza tornou-se seu Distrito; e, em 1958, Nova Veneza emancipa-se de Criciúma e torna-se um município. BORTOLOTTO Zulmar. História de Nova Veneza. Nova Veneza, Prefeitura Municipal, 1992.
4
A primeira casa construída no lote não integra mais o conjunto. Segundo Celestino Sachet, neto de Luiz Bratti, que morou nas casas de pedra e conheceu a primeira edificação, ela teria sido finalizada ainda no final do século 19. Segundo as narrativas da família, Luiz Bratti considerou esta primeira casa muito pequena e decidiu construir a sua própria casa, um pouco mais acima, enquanto Pietro Bratti continuou a morar na edificação. Filho de Madalena Bratti e Antônio Sachet, Celestino nasceu em 1930 e morou com o avô por dez anos nas casas de pedra. Saiu de Nova Veneza para estudar em Urussanga e depois no Colégio Catarinense, na Capital. Fez graduação em Letras e mestrado em Literatura. Doutorou-se em Literatura e em Filosofia da Educação. Tornou-se professor e crítico literário e alcançou a Livre-Docência em 1974, pela Universidade Federal de Santa Catarina. É membro da Academia Catarinense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. SACHET, Celestino. Depoimento à autora, 16 mar. 2017.
5
De acordo com os relatos da família, Luiz Bratti esteve à frente da construção das casas de pedras e o longo tempo se deve ao fato do artífice se dedicar a sua construção somente nos dias em que não estava trabalhando como pedreiro. Além das casas de pedra, ele teria feito algumas fundações para pequenas pontes, na região, utilizando-se da mesma técnica construtiva. Além disso, Luiz tornou-se um pedreiro na construção civil, trabalhando com assentamento de tijolos. Como operário, trabalhou em várias edificações, tanto em Nova Veneza quanto em outras cidades e era um pedreiro reconhecido na região. Ainda no final do século 19, Luiz Bratti casou-se com Joana Cechetto e teve dez filhos: Antônio, Pedro, Ernesto, Atílio, Pierina, Bonifácio, Madalena, Amélia, Lúcia e Maria.
6
SEYFERTH, Giralda. A Colonização Alemã no Vale do Itajaí-Mirim. 2° edição. Porto Alegre, Movimento, 1999; WEIMER, Günter. Arquitetura Popular Brasileira. 2° edição. São Paulo, Martins Fontes, 2012.
7
As reflexões ruskinianas sobre a arquitetura apresentam-se, também, nos três volumes de As pedras de Veneza. Tais análises levaram Ruskin a refletir mais intensamente sobre as questões sociais, quando o autor dedica-se, então, aos escritos sobre a economia política da arte. É importante ressaltar que seu pensamento perpassa por vários temas, como pintura, arquitetura e economia política e, neste caminho, o autor vai tecendo certos vínculos entre eles. Dessa forma, seu discurso não se encerra em uma publicação: suas considerações sobre pintura alimentam suas ideias sobre arquitetura; suas análises sobre o trabalho na arquitetura alimentam suas reflexões sobre a economia política e as questões sociais do século 19.
8
RUSKIN, John. The Stones of Venice. London, Library Edition, v. II, Works v. X, 1904, p. 196. Tradução da autora.
9
Idem, ibidem, p. 196. Tradução da autora.
10
Idem, ibidem, p. 201. Tradução da autora.
11
RUSKIN, John. Unto this Last. London, Library Edition, part. I, Work, v. XVII, 1905.
12
A crítica de Ruskin em relação ao Renascimento não se refere aos preceitos que regulam tal escola, mas quando tais preceitos sobrepõem à natureza da alma humana. Para Ruskin, o principal elemento de fraqueza na natureza do Renascimento em comparação à natureza do Gótico, teria sido o “orgulho do conhecimento”, na busca pela perfeição executiva em suas práticas artísticas. A qualidade artística dos grandes mestres renascentistas nos colocou uma perfeição executiva de primeira ordem, seja na pintura, escultura ou na arquitetura. A perfeição requerida na pintura e na escultura não teria sido tão danosa, segundo Ruskin, porque o trabalho é feito, normalmente, por um artista nato. Mas a arquitetura é uma arte de natureza partilhada, que depende do trabalho de homens comuns. E exigir a perfeição executiva de simples operários, separando trabalho e pensamento em seu ofício, teria sido, para Ruskin, um dos maiores erros da escola renascentista. Reivindicar a perfeição no trabalho executivo sem permitir uma certa liberdade de pensamento seria, para o autor, um trabalho escravo. Vale ressaltar, entretanto, que a capacidade executiva evidenciada nas melhores obras renascentistas não eram desprezadas por Ruskin, porque manifestavam a expressão da natureza humana, conjugando trabalho e pensamento em sua materialidade.
13
RUSKIN, John. Unto this Last (op. cit.), p. 200. Tradução da autora. Embora Ruskin reclame pela não separação entre trabalho e pensamento, existiriam certos trabalhos que o autor considerava necessário certo grau de separação, especialmente aqueles ligados à precisão milimétrica. Da mesma forma, o vínculo entre trabalho e pensamento não garantiria a fatura de um bom trabalho como, por exemplo, o pintor de paredes que imita o mármore. Embora trabalho e pensamento estejam vinculados na execução de seu ofício, o trabalho resultante seria vulgar e sem valor porque evidenciaria a falsidade de um material. RUSKIN, John. As pedras de Veneza. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 125.
14
RUSKIN, John. A economia política da arte. Rio de Janeiro, Record, 2004, p. 106.
15
RUSKIN, John. A economia política da arte (op. cit.), v. I e v. II.
16
Segundo Luíza Bortolotto, neta de Luiz Bratti, houve uma tentativa de revestir as paredes externas das casas de pedra que, felizmente, foi contida a tempo. Isto teria acontecido no período em que as casas de pedra deixaram de estar em posse da família. Hoje o conjunto edificado está novamente sob guarda da família Bratti, que transformou-o num pequeno museu de visitação pública, uma vez que a família não mora mais nas casas. BORTOLOTTO, Luiza. Depoimento à autora, 12 mar. 2017.
17
RUSKIN, John. The Seven Lamps of Architecture. London, Library Edition, 1903, Works, v. VIII.
18
A família Zavarise é reconhecida como de excelentes mestres pedreiros e canteiros. O bisavô dos irmãos entrevistados, Luigi Zavarise, veio da Itália e se estabeleceu na região, mas não se sabe, ao certo, se ele praticava o ofício de pedreiro. O avô, Andrea Zavarise, filho de Luigi, foi pedreiro durante toda a sua vida. Plácido Zavarise, filho de Andrea, e pai dos irmãos entrevistados, foi pedreiro e canteiro e teria seguido o ofício por causa da prática de seu pai. Dos sete filhos de Plácido, os cinco mais velhos seguiram a profissão do pai. ZAVARISE, Irmãos. Depoimento à autora, 21, 22 e 23 fev. 2017. Os irmãos Zavarise, assim como outros artífices de Santa Catarina, integram o inventário feito pelo Iphan, que catalogou todos os artífices que guardam um saber-fazer construtivo geracional. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Mestres artífices Santa Catarina: cadernos de memória. PIMENTA, Margareth de Castro Afeche (org.). Brasília, Iphan, 2012.
19
SENNET, Richard. O Artífice. Record, Rio de Janeiro, 2013.
20
RUSKIN, John. The Seven Lamps of Architecture (op. cit.), p. 250. Tradução da autora.
21
Idem, ibidem, p. 250-253. Tradução da autora.
22
Os pedreiros entrevistados trabalhavam cortando pedras que seriam utilizadas principalmente para calçamentos e muros, e hoje se dedicam à cantaria.
23
Honório Silvestro Candiotto trabalha há mais de cinquenta anos com a pedra, ofício que aprendeu com seu pai. Seu bisavô emigrou da Itália e aqui tornou-se lavrador. Seu avô também seguiu o trabalho na lavoura. Foi o pai de Honório que, mesmo sendo lavrador, começou a se interessar pelo trabalho com a pedra. Como filho mais velho, Silvestro aprendeu o ofício e ensinou aos seus irmãos. CANDIOTTO, Honório Silvestro. Depoimento à autora, 22 fev. 2017.
24
SENNET, Richard. Op. cit.
sobre a autora
Eliane Baader de Lima é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina, e graduada em Artes Visuais pela Universidade Regional de Blumenau.