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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Icônicas estruturas para uso cultural podem causar impactos na paisagem urbana e podem ou não ser apropriadas pelos usuários, como indica Certeau. Este artigo investiga impactos da Ópera Bastille, da Casa da Música, e da Cidade das Artes.

english
Iconic structures for cultural use can cause impacts on the urban landscape and may or may not be appropriated by users, as Certeau points out. This article examines the impact of the Opera Bastille, the Casa da Música, and the Cidade das Artes.

español
Icónicas estructuras para uso cultural pueden causar impactos en el paisaje urbano y pueden o no ser apropiadas por los usuarios, como indica Certeau. Este artículo investiga impactos de la Ópera Bastille, de la Casa da Música, y de la Cidade das Artes.


how to quote

LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espaços teatrais em megaempreendimentos. Impactos e polêmicas nas cidades. Parte 2. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 261.05, Vitruvius, fev. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.261/8399>.

Dando continuidade à parte 1 do artigo “Espaços teatrais em megaempreendimentos. Impactos e polêmicas nas cidades”, procede-se à análise dos impactos do segundo e do terceiro empreendimento cultural tal como previsto na introdução da parte 1, ou seja, abordando os impactos 1. urbanísticos; 2. arquiteturais e 3. sociais que causaram nos bairros em que foram edificados. Ressalta-se que as edificações culturais foram erguidas em diferentes temporalidades, sendo a Ópera Bastille de 1989, a Casa da Música de 2005 e a Cidade das Artes de 2013.

A Casa da Música do Porto: Rem Koolhaas e um poliedro adjacente à Rotunda (1)

Quando a cidade do Porto foi eleita a Capital da Cultura Europeia para 2001 já existia a ideia da construção de um teatro lírico para abrigar a Orquestra Nacional do Porto. Cinco escritórios internacionais de arquitetura, entre os quais o OMA, foram convidados a participar do concurso restrito para uma nova sala de concertos na Rotunda da Boavista, e o projeto de Rem Koolhaas (2) venceu os projetos de Norman Foster, Peter Zumthor, Dominique Perrault e Rafael Moneo (3).

Como comprovam os periódicos consultados, toda a construção foi pautada por controvérsias acerca dos orçamentos, atrasos, funcionalidades, localização e até descontextualização, episódios que também ocorreram tanto na Cidade das Artes do Rio de Janeiro, quanto na Ópera Bastille. Entre as polêmicas, a não contextualização do volume do edifício em relação às demais tipologias da área, os altos custos das obras e o fato de a Casa da Música abrigar uma sala unicamente destinada a concertos e não uma sala de espetáculos. As fundações começaram em 1999 e a Casa foi inaugurada não em 2001, conforme previsto, mas em abril de 2005 (4).

A pertinência da localização

Tal como na Ópera Bastille, para dar lugar à Casa da Música foi demolida uma estrutura ferroviária destinada abrigo de bondes da cidade, localizada em amplo terreno com testada para a Rotunda da Boa Vista (5). A rua ao redor da rotatória de 200 metros de diâmetro não é uma larga avenida, permitindo circulação segura para os pedestres, cercada por edificações de diferentes épocas que acompanham as testadas voltadas para a Praça circular, ficando apenas o volume facetado da Casa da Música não paralelo ao meio-fio do logradouro. Mas concorda-se com o pesquisador Igor Guatelli que fugir da contextualização pode ser “a condição para o sim ao estrangeiro, o sim ao porvir, ao estranho”, além de ser uma oportunidade para criar novas memórias (6). Em texto de 1988, Koolhaas afirma que na cidade contemporânea nota-se um forte desejo de libertação de dogmas impostos e “uma nova sensibilidade para as qualidades do ambiente circundante”, antecipando suas obras do século 21 (7).

Casa da Música, implantação, Porto PT, 2005; Arquiteto Rem Koolhaas
Imagem divulgação [Office for Metropolitan Architecture (OMA)]

Conformando um nó urbano, a Rotunda da Boavista integra a zona nobre da cidade e representa a intersecção entre a parte antiga e nova do Porto, pela Avenida da Boavista ligando a rotatória até o mar. A Casa da Música é atendida por estação de metrô, entre outras possibilidades de transportes públicos e da existência de um estacionamento com capacidade para 644 carros e, conforme constatamos em 2 dias de amostragem in loco (8) cujo relatório foi ratificado pelos usuários entrevistados, não gerou impactos no trânsito da área.

Impactos da arquitetura do edifício quanto à inserção na paisagem urbana

Externamente, o projeto de Rem Koolhaas e Ellen van Loon apresenta-se como um poliedro facetado construído em concreto branco, que se destaca na paisagem por sua forma inusitada ao lado de arquiteturas de outras temporalidades. Como os arquitetos utilizaram uma linguagem moderna, abstrata e geométrica, problematizaram a concepção da forma arquitetônica e enfatizaram a desarticulação do edifício com o entorno.

Não se aprofunda neste texto uma análise formal e simbólica da edificação, contudo, cabe ressaltar que no próprio terreno da Casa da Música foram projetados relevos ondulados que se transformam em pistas para skates, bicicletas e patins, bem articulados com a arquitetura poliédrica do prédio, garantindo o uso permanente da área. Além deste uso constante, o convite ao convívio dos usuários ocorre pelo contato visual com o interior da edificação pelas grandes “janelas” de vidro, e também graças a um café situado no pavimento térreo, com mesas, cadeiras e wifi disponíveis, atraindo grande público a qualquer hora do dia. Como afirma De Certeau, se a cidade serve de “baliza ou marco totalizador e quase mítico para as estratégias socioeconômicas e políticas, a vida urbana deixa sempre mais remontar aquilo que o projeto urbanístico dela excluía”, ou seja, há possibilidades da apropriação dos novos espaços impostos pelo poder público, por meio das táticas dos usuários (9).

No interior, o Grande Auditório (Sala Suggia) com 1300 poltronas foi projetado como um retângulo tradicional, único compartimento ortogonal que funciona como gerador da forma do edifício poliédrico. Ao fundo do palco e da plateia, paredes de vidro duplo que medem aproximadamente 22 metros de comprimento por 13 metros de altura criam um contato visual com o exterior do teatro, muitas vezes vedado pelo uso de cortinas pretas. As paredes desta grande sala funcionam como diafragmas internos que amarram o volume externo na direção longitudinal e as fachadas com vidro ondulado em cada extremidade da Sala Suggia e permitem perfeita integração com a paisagem da cidade, quando a programação e os horários são adequados.

Casa da Música, planta nível três, Porto PT, 2005; Arquiteto Rem Koolhaas
Imagem divulgação [Office for Metropolitan Architecture (OMA)]

Casa da Música, planta nível três, Porto PT, 2005; Arquiteto Rem Koolhaas
Foto Evelyn Furquim Werneck Lima, 2017

A edificação também dispõe de um espaço menor para performances — mais flexível e sem assentos fixos, dez salas de ensaio, uma praça-lounge na cobertura, estúdios de gravação, uma área educacional, um restaurante, esplanada, bares, uma sala VIP, áreas de administração e um estacionamento subterrâneo (10).

Rem Koolhaas utilizou-se de um partido arquitetônico que se baseia numa ideia de uso democrático da casa, de uma “casa aberta” e um dos fatores que mais evidenciam essa proposta são as próprias paredes de vidro que separam as salas e possibilitam visualizar montagens de cenários e ensaios. Cabe ressaltar que na visita técnica de fevereiro de 2019 constatou-se que, com exceção das duas salas de concerto, alguns dos espaços projetados inicialmente por Koolhaas tiveram que ser readaptados para possibilitar melhor gestão do empreendimento cultural (11).

Impactos econômicos, sociais e ambientais

A pesquisa de campo comprovou até 2019 não havia ocorrido gentrificação da área ou uma valorização expressiva dos imóveis no entorno da Casa da Música e as imobiliárias consultadas alegaram que aquela região já era em si valorizada pela localização, antes da construção do edifício (12). Segundo depoimentos de usuários, a construção da Casa da Música ampliou bastante a frequência da Rotunda da Boavista, mas também de outros locais da cidade devido aos altos investimentos da União Européia no Porto em 2001. Adjacente ao edifício, há um extenso terreno parcialmente vazio ainda contendo habitações de valor cultural que possivelmente, em futuro próximo, serão atingidas por um empreendimento imobiliário de vulto, conforme antecipado em entrevista pelo diretor técnico da Casa da Música (13). Mas, até o momento, o comércio local e os prédios residenciais pré-existentes permaneceram, ocupados pelos mesmos usuários de diferentes níveis de renda.

O auditório principal apresenta acústica de excelência, visto que os materiais de revestimento foram escolhidos com essa preocupação: contraplacado de pinho nórdico para paredes e teto; vidro curvo para compensação e divergência de ondas sonoras; e um tecido para as cadeiras que imita a presença humana até 70% de ocupação da sala. Quanto à poluição sonora, os dez usuários consultados nos arredores alegam que não existe passagem do som para a cidade, considerando os tratamentos acústicos adequados das salas de concerto.

Quanto aos impactos positivos sobre a sociedade, além das programações de gala são constantemente oferecidas atividades integradoras e educativas destinadas a uma população heterogênea a custos populares e a pesquisa de campo e as entrevistas demonstraram que, apesar das polêmicas decorrentes dos problemas durante a execução da obra, a população em geral mostrou-se satisfeita com o resultado da implantação da Casa da Música naquele local da cidade (14).

A Cidade das Artes: um projeto de Christian de Portzamparc para a Prefeitura do Rio de Janeiro

A pesquisa sobre a Cidade das Artes projetada por Christian de Portzamparc (2013) também detectou que o teatro construído por determinação da municipalidade, sem qualquer concurso, foi e ainda é objeto de numerosas críticas (15). Projetar edifícios que fazem interagir linhas retas e curvas foi a proposta de Oscar Niemeyer para os conjuntos da Pampulha, ainda nos anos 1940, para sua própria residência na Estrada das Canoas e para outras obras posteriores. Para justificar o partido arquitetural, Portzamparc fundamenta-se no princípio de que a proposta se assemelha à arquitetura carioca no início do Movimento Moderno.

Ao contrário do concurso público que escolheu o projeto da Ópera Bastille e do concurso restrito do Porto, no Rio de Janeiro o convite foi feito diretamente ao arquiteto franco-marroquino, que na ocasião já tinha reconhecimento mundial, já havia recebido o Pritzker (1994) e havia projetado a Cité de la Musique em Paris inaugurada em 1995 (16).

A pertinência da localização

Situada na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro, a edificação é inserida entre duas extensas lajes de concreto, com 200 metros de comprimento por 20 metros de largura, sendo a mais baixa a 10 metros do solo, sustentada por altos pilares, como se flutuasse, e foi implantada numa rotatória de alto índice de tráfego urbano. A ocupação do bairro data dos anos 1970 e foi idealizada por Lúcio Costa. Exatamente no local no qual hoje existe a Cidade das Artes, Costa havia proposto um trevo viário não realizado, que interligaria a Barra a Jacarepaguá e ao Recreio, com acesso à praia. Mais tarde, por necessidades do novo bairro e de sua crescente população, aquele terreno seria destinado a uma estação de Metrô articulada com outros modais.

Cidade das Artes, terreno selecionado no cruzamento de duas grandes avenidas, Rio de Janeiro RJ, 2013. Arquiteto Christian de Portzamparc
Intervenção sobre mapa do Google Earth, 2015

Impactos da arquitetura do edifício quanto à inserção na paisagem urbana

Embora destinada inicialmente a concertos, a Grande Sala permite a modificação ocasional para atender a espetáculos de ópera e a peças dramáticas. São 800 lugares em configuração filarmônica, com precisão acústica resultante do esquema shoe-box, e 1.300 lugares para ópera. Segundo Portzamparc, para transformar o palco shakespeariano em palco de ópera, as dez torres autônomas projetadas para os camarotes próximas ao palco poderiam ser deslocadas mecanicamente, deixando livres as laterais e o fundo. Uma parte da plateia cederia lugar ao fosso da orquestra e as quatro torres ao fundo do palco da orquestra poderiam ser suprimidas, pois são dotadas de pontes rolantes para serem deslocadas e ordenadas conforme necessidade. Cada torre abriga vários andares escalonados de camarotes protegidos por parapeitos baixos, em aço e vidro. Entretanto, com o passar dos anos, pelas dificuldades de operação mecânica destes camarotes, a configuração do palco à italiana tem sido habitualmente a adotada de forma fixa. Além da Grande Sala, foram projetadas salas menores, serviços administrativos e uma midiateca, que deverão ocupar um dos lados do edifício, e, do outro, já estão funcionando a sala de música de câmara e alguns outros espaços.

Cidade das Artes, plantas e cortes da sala de espetáculo, Rio de Janeiro RJ, 2013. Arquiteto Christian de Portzamparc
Redesenho Niuxa Drago / imagem divulgação, 2010 [Atelier Portzamparc]

A caixa cênica possibilita o palco de ópera com paredes corrediças e uma cortina, o que demonstra a persistência do palco italiano ainda no século 21. O próprio Portzamparc assim descreveu o edifício em 2005:

“Concebida para apresentar concertos de alta qualidade e óperas, a sala tem características do teatro shakespeariano, com as paredes laterais cobertas de camarotes instalados em pequenos edifícios, o que possibilita que público e orquestra tenham uma excepcional relação espacial. Cada espectador deve notar a presença da plateia, mas, ao mesmo tempo, se sentirá sozinho, vendo, ouvindo e vivendo o importante momento musical. As pequenas torres tiram a impressão de que o espaço é uma caixa fechada, o clássico volume paralelepípedo” (17).

Uma análise acurada permite perceber na obra de Portzamparc um sincretismo entre o palco múltiplo do não construído do Teatro Total de Gropius e a tradicional sala de ópera de palco italiano. Na Cidade das Artes, Portzamparc, como sensível arquiteto que é, demonstra grande preocupação com a imagem poética, criando uma arquitetura em laje elevada sobre o exuberante jardim tropical de Fernando Chacel. Os acessos ao edifício, para aqueles que já se encontram no terreno, ocorrem por elevadores, escadas rolantes ou em rampas curvas muito longas, lembrado as promenades architecturales corbusianas. Entretanto, as grandes alturas e os múltiplos espaços dispersos evidenciam que o arquiteto privilegiou muito mais a forma desconstrutivista do que a função, explorando uma liberdade formal ilimitada (18).

Cidade das Artes, vista da fachada Leste, Rio de Janeiro RJ, 2013. Arquiteto Christian de Portzamparc
Foto Evelyn Furquim Werneck Lima, 2010

Cidade das Artes, vista da fachada Sul, Rio de Janeiro RJ, 2013. Cidade das Artes, vista da fachada Sul, Rio de Janeiro RJ, 2013. Arquiteto Christian de Portzamparc
Foto Evelyn Furquim Werneck Lima, 2010

Em que pesem as qualidades estéticas, completamente desintegrado da circulação de transeuntes, o complexo cultural apresenta um pavimento térreo de difícil acesso aos pedestres, acessível apenas pelo subsolo, por um longo túnel interligado à Estação de ônibus articulados. Não convida o pedestre a descobrir seus espaços interiores, visto que não há acessos fáceis no nível da rua. Como foi erguido em um entroncamento de pistas de alta velocidade e de intensa circulação de veículos, contrariando o Plano Lúcio Costa e os projetos posteriores para uma estação de encontro de diversos modais, a municipalidade construiu três mergulhões onerosos e mal projetados para possibilitar o fluxo de veículos entre as avenidas que ligam bairros populosos. Todavia, esta solução paliativa não impede a retenção do trânsito nos horários da manhã e do final da tarde e a interdição frequente dos mergulhões após chuvas fortes. Não há calçadas para os pedestres circularem ao redor do terreno e adentrarem a edificação, portanto, o edifício sobressai na paisagem como uma escultura desconstrutivista quase inacessível, conforme já constatado nas pesquisas quantitativas de Pasquotto (19).

Articulando enormes pilares curvilíneos acoplados ao volume de um paralelepípedo, o prédio ainda causa estranhamento aos habitantes do bairro. O arquiteto utilizou volumes e vazios encerrados entre grandes cascos de concreto com formas orgânicas, que separam luz e sombra, isolam salas e elevam o complexo. Almeida lembra que os primeiros esboços apresentavam linhas verticais ligeiramente inclinadas, representando colunas denominadas de “velas” por Portzamparc (20).

Impactos econômicos, sociais e ambientais

Inicialmente intitulada Palácio da Música e destinada à sede da Orquestra Sinfônica Nacional, a Cidade das Artes acabou por se transformar em um centro cultural gigantesco gerido com grandes dificuldades, inclusive porque o público carioca entusiasta do teatro e da música clássica prefere os teatros mais centrais da cidade, a não ser no caso de espetáculos internacionais. A visibilidade nos camarotes laterais é muito prejudicada, mas no que tange à acústica, tanto a Grande Sala quanto a Sala de Câmara apresentam grande sofisticação e eficácia. No entanto, os bailes de sexta feira — que acontecem nos espaços abertos como forma de ampliar a receita do empreendimento — provocam forte impacto pelo som propagado em raio de mais de mil metros, alcançando as edificações residenciais do entorno.

Quase uma década após a inauguração, o edifício não constitui ainda um “lugar praticado”. O público das classes mais altas chega ao teatro em seus automóveis particulares diretamente para os estacionamentos, para dali acessar as salas de espetáculo. As camadas mais populares chegam por meio de um túnel que parte do Terminal Rodoviário Alvorada, porém, como comprovado por pesquisa qualitativa de Pasquotto, estas camadas pouco participam dos espetáculos como espectadores (21).

Considerações sobre os impactos

Nos três estudos de caso, os edifícios teatrais destacam-se na paisagem como indivíduos arquitetônicos de qualidade que promoveram o poder público, sendo que dois deles resultaram em política pública sociocultural eficaz, enquanto no terceiro ainda não se verificam impactos tão positivos. Cabe relembrar que a Ópera Bastille foi inaugurada há três décadas, a Casa da Música há uma década e meia e a Cidade das Artes ainda não tem uma década funcionando.

O quadro sintético comparativo constando dos diferentes impactos permitiu algumas considerações, apesar das diferentes temporalidades dos objetos analisados.

Tabela sintética dos impactos dos três empreendimentos culturais
Elaboração Evelyn Furquim Werneck Lima, 2020

Recorreu-se neste estudo a De Certeau, que afirma ser possível discernir as representações que as práticas imprimem ao espaço sob múltiplas interpretações, pois o espaço é um lugar praticado (22). A partir das práticas do espaço identificadas ao longo da pesquisa foram esboçadas algumas considerações sobre os impactos dos edifícios teatrais selecionados nas cidades em que foram erguidos.

Apesar das muitas polêmicas surgidas durante a construção — inclusive com críticas à estética alusiva a um shopping-center (23)e das inúmeras adaptações necessárias nos primeiros anos de funcionamento, a Ópera Bastille não causou forte impacto urbanístico e teve reflexos positivos na vida cultural parisiense, tendo realmente promovido a popularização das óperas de repertório e peças experimentais em seus auditórios. Às críticas iniciais dos primeiros tempos, sucederam-se críticas elogiosas como pode ser percebido nos periódicos da hemeroteca do Centre Georges Pompidou e na frequentação do teatro. Considera-se, portanto, que o edifício teatral se tornou um “lugar praticado”, com poucos impactos significativos, e foi inteiramente apropriado pela população, não obstante ter causado gentrificação naquela área do bairro, com a expulsão paulatina de inúmeros artesãos tradicionais que tiveram seus imóveis tombados readaptados como galerias de arte, escritórios e pequenos restaurantes.

No caso da Casa da Música do Porto, a despeito da forma de poliedro irregular do edifício subverter a implantação tradicional no terreno, desobedecendo o alinhamento existente, e das inúmeras críticas jornalísticas relativas ao alto faturamento e ao atraso das obras, não se verificou impacto negativo no tecido urbano. A pesquisa de campo comprovou que ainda não ocorreu gentrificação da área ou valorização dos imóveis no entorno da edificação, mas há possibilidade de tal fato vir a acontecer (24). À imagem icônica do objeto arquitetônico, soma-se uma intensa programação sociocultural, enfatizada pela ocupação da edificação por uma das orquestras sinfônicas mais famosas da cidade, mas, sobretudo, cabe ressaltar o impacto social positivo das programações e dos projetos educativos para todos os públicos, abrangendo diferentes tipos de música.

A caracterização da Cidade das Artes como um “lugar praticado” para a música e para o teatro ainda não se fez sentir no bairro, apesar de gestões culturais bem-intencionadas. Para manter o empreendimento, o edifício icônico tem sido alugado para grandes feiras de negócios e até para bailes funk, que causam poluição sonora nas adjacências. Em que pese o valor estético, a obra sobrepujou-se às necessidades dos cidadãos. Parece difícil a apropriação de um edifício cultural cujos acessos não se comunicam com os transeuntes e que interferiu na mobilidade urbana de vários bairros. Apesar de o empreendimento resultar de uma estratégia da municipalidade para valorizar e “vender” a cidade, a Cidade das Artes é ainda um entrave no cotidiano dos cidadãos da zona oeste do Rio de Janeiro, que dela não se apropriaram.

notas

NE — A primeira parte deste artigo foi publicada em LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espaços teatrais em megaempreendimentos. Impactos e polêmicas nas cidades. Parte 1. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 260.01, Vitruvius, jan. 2022 <https://bit.ly/3JtcXfV>.

NA — Este artigo é um dos resultados da pesquisa mais ampla intitulada “Estudos do Espaço Teatral-7aetapa” apoiada pelo CNPq. Agradeço ao bolsista IC Rafael Perrone e à doutoranda Carolina Lyra que participaram das pesquisas de campo.

1
Agradeço a participação inestimável da doutoranda Carolina Lyra de Barros Esteves (Unirio/Capes) que colaborou nos levantamentos de campo de setembro a novembro de 2017, na etapa portuguesa da pesquisa.

2
Vencedor do Prêmio Pritzker em 2000.

3
Ver GANSHIRT, Christian. Casa da Música, Porto, Portugal. Rem Koolhass/OMA, Rotterdam. Architecture D´Aujourd´hui, n. 361, nov./dez. 2005, p. 38-47.

4
Ver críticas em SILVA, Hugo. Construção da Casa da Música teve 127 contratos. Jornal de Notícias, Porto, 5 dez. 2008 <https://bit.ly/3HWA4iK>.

5
A dissertação de Bruno M. Campos Pereira, Entrelinhas: Uma proposta de requalificação e desenvolvimento de um imóvel de interesse público de grande escala, defendida na Universidade do Minho em 2018, trata de um projeto para terreno adjacente à Casa da Música do Porto e forneceu dados bem precisos sobre o histórico e as características daquela região do Porto. PEREIRA, Bruno M. Campos. Entrelinhas: Uma proposta de requalificação e desenvolvimento de um imóvel de interesse público de grande escala. Dissertação de mestrado. Braga, Universidade do Minho, 2018.

6
GUATELLI, Igor. A Casa na cidade e a cidade na Casa. A Casa da Música da cidade do Porto e o estranhamente domiciliar. Projetos, São Paulo, ano 10, n. 112.01, Vitruvius, abr. 2010 <https://bit.ly/3gLKWns>.

7
KOOLHASS, Rem. Introduction for the New Research “The Contemporary City”. Architecture and Urbanism, n. 217, out. 1988, p. 152. In NESBITT, Kate (org.) Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 356-357.

8
A autora e sua assistente de pesquisa permaneceram em frente à Casa da Música das 9:00 às 18:00, nos dias 18 (segunda-feira) e 26 (sexta-feira) de novembro 2017, verificando se havia problemas de tráfego e elaborando observações.

9
DE CERTEAU, Michel [1980]. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 2008, p. 174.

10
Guilherme de Almeida descreve e ilustra minuciosamente como Koolhaas foi desenvolvendo o projeto desde os primeiros esboços, a partir da brochura explicativa da proposta do OMA para a Casa da Música. ALMEIDA, Guilherme de. A Casa da Música e a Cidade das Artes, por uma monumentalidade. Tese de doutorado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2018, p. 98-110.

11
Conforme entrevista do engenheiro e gestor técnico do edifício, Ernesto Costa. COSTA, Ernesto. Depoimento à autora, 12 fev. 2019.

12
Foram aplicados questionários respondidos pela Associação de Pessoas e Empresas Imobiliárias do Porto — Apemip e pela Remax, uma das maiores imobiliárias do Porto que fica bem próxima a Casa da Música. Também consultamos a Associação Comercial do Porto, em 2017, que opinou pela ausência de gentrificação até então.

13
Já em 2019, o gestor técnico da Casa da Música e sete dos dez usuários entrevistados nas adjacências da Rotunda da Boa Vista entenderam que a ocupação deste extenso terreno em futuro próximo com atividades comerciais e residenciais poderá vir a modificar os estratos sociais na área, causando gentrificação.

14
Em janeiro de 2006, instituiu‑se a Fundação Casa da Música tendo como entidades fundadoras o Estado português, o Município do Porto, a Grande Área Metropolitana do Porto e 38 entidades de direito privado, responsável pela programação orientada para públicos‑alvo específicos. Dados oficiais indicam que, entre 2006 e 2019, a Casa da Música registou um total de 7.249.846 milhões de visitantes e espectadores, ratificando a aprovação dos entrevistados. Cf. Jornal de Notícias, Porto, 11 jan. 2020.

15
Pesam muito na imagem da edificação as críticas não só à equivocada situação do terreno escolhido, mas as intensas controvérsias quanto à relação custo final da obra x benefícios alcançados, bem como a questão do superfaturamento dos contratos.

16
Atualmente denominada Philarmonie 1.

17
PORTZAMPARC, Christian. Entrevista a Haifa Sabag. Arquitetura e crítica, n. 14, jan. 2005.

18
Diretores teatrais entrevistados no Rio de Janeiro foram unânimes sobre a equivocada solução para os camarins, entre outros problemas apontados.

19
PASQUOTTO, Geise Brizotti. O edifício cultural como estratégia de intervenção urbana. A Cidade das Artes na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU USP, 2016.

20
ALMEIDA, Guilherme de. Op. cit.

21
PASQUOTTO, Geise Brizotti. Op. cit., p. 258.

22
DE CERTEAU, Michel [1980]. Op. cit., p. 202.

23
Ver crítica sobre a semelhança da estética da Ópera Bastille com um shopping center em SANTIS, Sophie. Les designers relookent Paris. Le Figaroscope. Le Figaro, 9 fev. 2005.

24
A Associação de Pessoas e Empresas Imobiliárias do Porto — Apemip distribuiu o questionário por imobiliárias que identificaram que aquela região já era valorizada pela própria localização, antes da construção do edifício, mas há ainda extensa área a construir no entorno.

sobre a autora

Evelyn Furquim Werneck Lima é arquiteta, urbanista, doutora em História Social pela UFRJ/EHESS. Pós-doutora (Paris X, EHESS e Collège de France), professora titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora 1-B do CNPq. É autora, entre outros, de Arquitetura do espetáculo (Editora UFRJ, 2000), prêmio IAB/RJ. É líder dos Grupos de Pesquisa Estudos do Espaço Teatral e Espaço, Memória e Projeto Urbano, cadastrados no CNPq.

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261.05 urbanismo
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