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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo busca articular os processos de autoconstrução, autoempreendimento e autogestão da moradia com os conceitos de reprodução social e criação dos comuns discutidos pela pensadora feminista Silvia Federici.

english
The article seeks to articulate the processes of self-construction, self-development and self-management of housing with the concepts of social reproduction and the creation of commons discussed by feminist thinker Silvia Federici.

español
El artículo busca relacionar los procesos de autoconstrucción, autoempreendimiento y autogestión de la vivienda con los conceptos de reproducción social y creación de los comunes discutidos por la pensadora feminista Silvia Federici.


how to quote

BARBOSA PERAZOLO, Fabiana. Autoempreendimento da habitação e a criação dos comuns. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 261.07, Vitruvius, fev. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.261/8402>.

“Se o capitalismo foi capaz de reproduzir-se, isso se deve somente à rede de desigualdades que foi construída no corpo do proletariado mundial e à sua capacidade de globalizar a exploração. Esse processo segue desenvolvendo-se diante de nossos olhos, tal como se deu ao longo dos últimos quinhentos anos. A diferença é que, hoje, a resistência ao capitalismo também atingiu uma dimensão global” (1).

Para garantir a quantidade e qualidade do trabalho reprodutivo necessário para a manutenção e controle de uma grande massa de mão-de-obra produtiva, após as revoltas proletárias ocorridas em 1830 na Inglaterra, o sistema capitalista estabeleceu o padrão da família nuclear como instituição responsável pelo trabalho não assalariado do cuidado (2). É significativo que esta divisão dicotômica do trabalho em produtivo e reprodutivo, assalariado e não assalariado, venha acompanhada de uma divisão de gênero, onde as mulheres são responsáveis por cuidar, alimentar, limpar a moradia-abrigo da família, enquanto o trabalho dos homens nas fábricas fornece o salário que irá sustentá-los financeiramente. As categorias de análise articuladas pelo movimento feminista e pelos movimentos de libertação negra desde o século 19 favoreceram a ampliação do entendimento de trabalho para além da fábrica. Segundo Silvia Federici, ao compreendermos que a casa e o trabalho doméstico das mulheres são a base do sistema fabril, “também aprendemos a buscar os protagonistas da luta de classes não apenas entre o proletariado industrial masculino, mas sobretudo entre os escravizados, os colonizados e a massa de trabalhadores não remunerados marginalizada pelos anais da tradição comunista, à qual agora podemos acrescentar a figura da dona de casa proletária, reconceitualizada como sujeito da (re)produção da força de trabalho” (3). A desvalorização do trabalho reprodutivo dentro de um sistema político e econômico capitalista, no qual o trabalho das mulheres dentro de casa é responsável por assegurar a manutenção da vida humana, torna-se uma estratégia de controle de seus corpos e, consequentemente, da classe trabalhadora, mantendo-os em um constante estado de marginalização (4).

Pretende-se neste ensaio relacionar os conceitos de reprodução da força de trabalho e da criação dos comuns pela perspectiva da teórica feminista Silvia Federici com a prática da autoconstrução da moradia, analisada e teorizada por três profissionais envolvidos nestes processos na cidade de São Paulo nos anos 1980: Ermínia Maricato, Nabil Bonduki e Raquel Rolnik. Esta relação parte do pressuposto de que a casa é o suporte material da reprodução da força de trabalho realizada historicamente pelas mulheres (5), e portanto passa a ser essencial analisar os processos de construção e acessibilidade da população trabalhadora à este bem. É evidente que os aspectos materiais e técnicos da construção da moradia irão interferir e implicar nas condições adequadas de habitabilidade e portanto de reprodução, mas é fundamental se atentar ao fato de que as decisões determinantes no processo de sua construção e obtenção tem consequências diretas nas relações produzidas entre os sujeitos, sendo estes parte de uma família nuclear ou não. Sejam habitações construídas pelo mercado, pelo Estado ou pela própria família, outros fatores como sua localização geográfica na cidade, a infraestrutura urbana ou sua falta e a presença de equipamentos de bairro definem as condições de moradia da família.

Nesta relação, a retomada por Federici do conceito dos comuns não poderia ser mais pertinente. Além da tentativa de extinção das práticas comunais — base da sociedade campesina pré capitalista — estar ligada também à consolidação da ideia de que a família (particularmente a mulher) ser a única responsável pelo trabalho reprodutivo da vida, a autora aponta a recuperação potente de novas práticas comunais como reação às lógicas insustentáveis do capital. Assim, este ensaio busca apresentar contribuições que situem aspectos da autoconstrução e autogestão da moradia como parte destas práticas comuns de resistência.

Autoconstrução como sobrevivência

De acordo com Ermínia Maricato (6), a intensificação da migração campo-cidade na segunda etapa da industrialização (segunda metade do século 20) resultou em uma ocupação territorial de novas moradias pela periferia, principalmente nas grandes cidades como São Paulo, criando o chamado “cinturão da pobreza” (7). Neste momento em que a periferia urbana crescia em ritmo acelerado, a ideia de habitação como mercadoria e propriedade privada se fortalece. Ao mesmo tempo a importância da casa própria cresce no imaginário coletivo da população trabalhadora como única possibilidade de garantir sua reprodução até a velhice, já que os baixos salários não sustentam as despesas mensais com aluguel (8). O papel das políticas estatais de regular esses valores e criar programas de acesso à moradia para a população trabalhadora de renda mais baixa, como as políticas ligadas ao Banco Nacional de Habitação — BNH ou aos Institutos de Aposentadoria e Pensões — IAPs, muitas vezes acabaram por aliar-se ao mercado privado, aplicando recursos segundo a lógica da acumulação e dirigindo a produção de moradia à uma classe de maior poder aquisitivo. Assim, na atual fase de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, “a máquina administrativa do Estado ignora a reprodução da força de trabalho para investir em setores economicamente mais dinâmicos, onde a reprodução do capital se faz de maneira segura e mais rápida. Além de funcionar como instrumento do capital privado ele passa a funcionar também como um investidor capitalista” (9).

Com os baixos salários que não dão acesso à habitação construída pelo mercado — e tampouco à produzida pelo Estado — a autoconstrução da habitação surge naquele momento como única solução possível para grande parte da classe trabalhadora (10), que apela para seus próprios recursos e reproduz hábitos rurais de subsistência — mesmo tratando-se de trabalhadores assalariados e inseridos na economia urbana industrial capitalista (11). Apesar de que essa técnica possa ter resultados positivos no que se refere às dinâmicas de cooperação e solidariedade, é fundamental questionar quais são as lógicas capitalistas que mantêm o salário do trabalhador abaixo do necessário e coloca a construção da moradia na lógica da mercadoria. Logo, a habitação construída por meio de autoconstrução trata-se, segundo Francisco de Oliveira, de supertrabalho:

“Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado na produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração força de trabalho, pois seu resultado, a casa, reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho de que os gastos com habitação são um componente importante — e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas” (12).

Ainda que a vantagem da autoconstrução seja “a possibilidade de um maior contato do morador produtor com a habitação produto, permitindo-lhe uma visão integrada de processo produtivo e portanto um contato desalienante com o produto” (13), para Maricato é indispensável que esse processo seja visto de maneira secundária à sua relação com o contexto da construção de habitações destinada à população trabalhadora nos países “dependentes” do mundo capitalista. Com isso em vista, pode-se analisar o processo da autoconstrução sem cair na armadilha da romantização, tendo em mente que esse trabalho trata-se de uma questão de sobrevivência em um sistema que explora e isola os trabalhadores.

As bases do processo de autoconstrução se dão de maneira bastante espontânea, já que muitas vezes se faz necessária a colaboração de amigos, familiares e vizinhos como troca de favores, em contraposição às relações capitalistas de compra e venda. Trabalhando apenas aos fins de semana e horas de folga, a construção da casa chega a se estender por anos, levando também todas as economias da família, muitas vezes em detrimento de outras necessidades; e tendo um resultado inadequado do ponto de vista espacial e construtivo, com problemas decorrentes da falta de qualidade do material que cabe no orçamento (14). Ainda, a autoconstrução não se limita à habitação individual. Muitas vezes ela abrange a construção de equipamentos de uso comum para o bairro como igrejas, escolas, creches, centros comunitários, além de infra-estruturas como calçamentos, pontes, limpeza de córregos etc (15).

“A autoconstrução se estende portanto para a produção do espaço urbano e não se restringe aos meios de consumo individual. Nos domingos e feriados, nas horas de descanso, os trabalhadores constroem artesanalmente uma parte da cidade. O assentamento residencial da população migrante em meio urbano, fundamental para a manutenção da oferta larga e barata de mão-de-obra, se faz às custas de seu próprio esforço, sem que o orçamento “público” se desvie de outras finalidades, na aplicação” (16).

A potência do autoempreendimento

Já as concepções traçadas por Nabil Bonduki e Raquel Rolnik a partir de experiências locais nas periferias de São Paulo e da aproximação aos processos construtivos de habitação nestas áreas, tem como consequência um desapego do paradigma da superexploração de Francisco de Oliveira (embora a princípio estivessem guiados por ele) para dar espaço a um novo olhar que encontra possibilidades no processo de autoconstrução. A observação aos detalhes e especificidades comprovaram o valor da apropriação, controle e administração do processo de autoconstrução pelo trabalhador, que renomearam de “autoempreendimento”, afirmando que “não se trata de trabalho não pago, ao nível da produção de habitação, mas sim de um trabalho realizado como se o trabalhador fosse um produtor individual de mercadoria e não vendedor de sua força de trabalho para o capitalismo” (17).

Ambas interpretações acerca da autoconstrução da moradia pelo trabalhador estão contempladas pela análise do feminismo marxista de Federici, seja a autoconstrução como supertrabalho, pois considera que o capitalismo explora o trabalhador ao reduzir seu salário a ponto de que este não seja capaz de adquirir sua moradia e seja obrigado a construí-la, assim como a possibilidade da autoconstrução como experiência positiva na construção dos comuns, como irão demonstrar Bonduki e Rolnik.

Nos anos 1980 ocorreu na cidade de São Paulo um grande debate acerca da formulação e implementação de programas habitacionais populares, questionando basicamente todos os seus pilares naquele momento (18). Criou-se espaço então para a discussão e proposição de novos programas alternativos de habitação pelo poder público, e é neste contexto que as questões apontadas por Bonduki a partir da experiência empírica colocam os movimentos sociais e movimentos por habitação como importantes agentes na transformação das políticas públicas e sociais relacionadas à habitação popular.

De início, é fundamental entender o porquê dos movimentos de moradia neste momento estarem lutando principalmente pela casa própria unifamiliar, o que em um primeiro momento pode parecer uma luta conservadora se comparada a alternativas de formas coletivas de morar e de outros modelos de posse da propriedade (19). Deve-se atentar ao fato de que é desde a criação do BNH em 1964 que a visão da casa própria é incentivada como modo de popularização do governo e de evitar revoltas populares, em consonância com a tese de Engels de que “preso à propriedade, o trabalhador ficaria menos propenso a envolver-se em atos públicos condenados pela ordem vigente” (20). Mas isso não torna a aspiração pela casa própria menos legítima ou conservadora. Na ausência de outras opções que possam garantir o direito à moradia, a casa própria representa segurança para a família, além de possibilitar estabilidade e a criação de relações sociais importantes para a criação de identidade. Além disso a casa própria permite a realização de melhorias no espaço físico como reformas e ampliações de acordo com as necessidades e os desejos da família, incorporando recursos “num bem que se valoriza inteiramente em favor do morador-proprietário” (21).

Outra questão importante é a rejeição pela maioria destes trabalhadores do modelo vertical de habitação, quase sempre preferindo morar em casas. Essa tendência decorre das condições de sobrevivência e adaptação da classe trabalhadora, que no Brasil não tem garantias quanto às suas necessidades básicas de reprodução (22). A adequação da casa com o crescimento da família, agregação de parentes recém chegados à cidade, possível sublocação para obter renda adicional ou outras modificações conforme as necessidades se apresentam não são possíveis em conjuntos padrão como os Cohab. Outra técnica de sobrevivência apontada por Federici realizada em algumas regiões urbanas periféricas que pode explicar a preferência por casas é a prática da agricultura de subsistência realizada por mulheres do “terceiro mundo” como forma de garantir as mínimas condições para reprodução de suas famílias (23). A luta das mulheres em manter a agricultura de subsistência mesmo após sua expulsão das terras rurais pelos sistemas modernos de monocultura e de exportação, foi e é uma importante tática para garantir a alimentação de sua família com relativa autonomia do mercado, estratégia que costuma entrar em conflito com as moradias produzidas em série nos moldes comerciais (24). A autora nos recorda que as mulheres estão na vanguarda da luta por um uso não capitalista dos recursos naturais, “elas foram as principais oponentes da exigência neoliberal de que os “preços do mercado” devem determinar quem vive e quem morre, e são as que forneceram um modelo prático para a reprodução da vida em um caminho não comercial” (25). A questão da terra, que com os processos de urbanização parecia ter sido substituída pelas tecnologias industriais como meio fundamental para a reprodução, têm ganhado cada vez mais importância nos debates de um caminho para uma sociedade não exploradora (26), e o trabalho de reprodução das mulheres e suas condições de moradia fazem parte deste debate. Esta busca por um novo modelo de sociedade onde os recursos naturais não são economicamente explorados até sua extinção está associada à criação de modos de vida não competitivos, centrados na solidariedade e na criação de laços de ajuda e cooperação.

“Se a casa é o oikos sobre o qual a economia é construída, então são as mulheres, historicamente trabalhadoras e prisioneiras da casa, que precisam assumir a iniciativa de retomar a casa como um centro de vida coletiva, atravessado por múltiplas pessoas e formas de cooperação, oferecendo segurança sem isolamento ou fixação, permitindo o compartilhamento e a circulação de posses comunitárias e, acima de tudo, oferecendo uma base para formas coletivas de reprodução” (27).

É precisamente a criação de espaços co-habitados e o surgimento de novas formas de se relacionar e de viver em comunidade que justificam a adoção da construção por mutirão segundo Bonduki, ao afirmar que a fixação dos trabalhadores no local de moradia é o que permite a criação de identidade e a gestão de atividades comuns (28). A partir dessa convicção, o debate em conjunto com os movimentos de moradia propõe que sejam potencializados os aspectos positivos da autoconstrução — poder de decisão na utilização de recursos, organização do trabalho, envolvimento com o processo de produção — com a adoção do mutirão na construção de conjuntos habitacionais. O processo coletivo do mutirão aumenta a produtividade do trabalho da construção, já que a prática coletiva unida à produção em série resulta em ganhos de ordem econômica e possibilita uma melhor qualidade do conjunto, não só pela racionalização do processo e adoção de técnicas e materiais mais adequados como também pela possibilidade de acompanhamento de assessoria técnica (29). O autoconstrutor, isolado, não tem repertório suficiente para encontrar boas alternativas construtivas e acaba por reproduzir padrões dominantes incoerentes com seus meios, tornando a autoconstrução ineficaz para alcançar uma moradia de boa qualidade (30). O mutirão também implica em “abrir mão da liberdade individual para aceitar para uma alternativa formulada coletivamente” (31), o que positivamente interrompe com o isolamento entre os moradores de um bairro, assegurado pelo sentimento de individualidade onde cada um constrói no limite do seu lote.

Além das vantagens materiais resultado da adoção do mutirão na construção, um aspecto importante do processo coletivo de construção é sua transformação em um “instrumento de crescimento da organização de exercício da autogestão” (32). A opção pelo mutirão por si só não garante a construção de uma alternativa de organização popular, embora crie circunstâncias que favorecem a organização coletiva. É com a autogestão que os vínculos no local de moradia se fortalecem e criam um espírito solidário e cooperativo que se estende para outros aspectos da vida cotidiana, introduzindo debates políticos mais amplos no cotidiano dos trabalhadores (33). As decisões em um modelo de autogestão são tomadas em conjunto pelos futuros moradores em instâncias deliberativas da entidade, criando envolvimento e aproximação real com o processo. Para Bonduki, a criação de vínculos coletivos no processo da autogestão é fundamental para a construção de uma sociedade democrática organizada pela sua base (34), e é por meio dele que o debate do direito à moradia pode superar o problema da propriedade da terra e da habitação como mercadoria, estabelecendo relações coletivas para a gestão de equipamentos comunitários e espaços públicos.

Os comuns

O conceito de comuns tem ganhado popularidade como uma prática alternativa à lógica do Estado e da propriedade privada, sendo um ponto de convergência nas discussões de movimentos de esquerda contemporâneos — ainda que existam muitas diferenças entre estes grupos. No contexto de subordinação de todas as formas de vida e de recursos naturais à lógica do capital (os chamados “novos cercamentos”), as formas comunais de resistência que existem nas frestas do sistema ganharam visibilidade, mostrando que novas formas de cooperação são produzidas constantemente (35).

O surgimento da ideia de comuns e sua constante tentativa de extinção está relacionada com o surgimento da luta de classes e resistência às práticas capitalistas introduzidas na Idade Média. Após o declínio do sistema escravagista, se instaura na Europa, entre os séculos 5 e 7, um sistema de servidão que, embora sujeitasse o campesinato a uma relação de subordinação à lei do senhor, lhe concedia uma parcela de terra em troca pelo seu trabalho, o que “aumentou a autonomia dos servos e melhorou suas condições de vida, já que agora podiam dedicar mais tempo à sua reprodução e negociar o alcance de suas obrigações [...] por terem o uso e a posse efetiva de uma parcela de terra, os servos sempre dispunham de recursos” (36). Com o desenvolvimento de ideais políticos e ideológicos decorrentes da propriedade de terra surgiram os “espaços comunais”, que, ao mesmo tempo que eram de importância para a economia e sobrevivência camponesas, fomentavam a coesão e cooperação comunitárias (37).

“Além de incentivar as tomadas de decisão coletivas e a cooperação no trabalho, as terras comunais eram a base material sobre a qual podia crescer a solidariedade e a sociabilidade campesina. [...] A função social das terras comunais era especialmente importante para as mulheres, que, tendo menos direitos sobre a terra e menos poder social, eram mais dependentes das terras comunais para a subsistência, a autonomia e a sociabilidade” (38).

Esse espírito comunitário criado entre os camponeses durante boa parte da Idade Média desmoronou quando, em meio à escalada das lutas antifeudais, no século 16 os lordes ingleses e fazendeiros ricos iniciam um processo de despossessão de terras e cercamento agrário (eliminando também o uso comum da terra) com a justificativa de estimular a eficiência agrícola e o crescimento da produtividade da terra (39). Além de aprofundar as diferenças econômicas entre a população rural, “o cercamento físico operado pela privatização da terra e o cercamento das terras comunais foram ampliados por meio de um processo de cercamento social: a reprodução dos trabalhadores passou do campo aberto para o lar, da comunidade para a família, do espaço público (a terra comunal, a igreja) para o privado” (40).

Na análise dos sistemas de opressão que são premissa para o surgimento do sistema capitalista, o entendimento dos processos de cercamentos agrários, pauperização massiva e criminalização dos trabalhadores são essenciais para a compreensão do enfraquecimento dos modos de relação comunais ligados à terra até hoje. Segundo Federici, a história confirma que “nas regiões onde povos oprimidos mantêm suas estruturas comunais e algum controle sobre as condições de sua reprodução, há maior sucesso na resistência à exploração” (41).

“Para milhões, então, no Brasil e além, o ‘ponto zero’ é uma experiência cotidiana. [...] é tanto um local de perda completa quanto um local de possibilidades, pois só quando todas as posses e ilusões foram perdidas é que somos levados a encontrar, inventar, lutar por novas formas de vida e reprodução. Neste sentido, falar de ‘o ponto zero da revolução’ é tanto o reconhecimento de realidades vivas quanto um chamado para uma política de reversão na qual as mulheres desempenham um papel especial como principais sujeitos da reprodução de sua comunidade” (42).

Silvia Federici defende que o trabalho reprodutivo dentro do sistema capitalista é o estágio zero (ground zero) para a prática revolucionária, ou seja, é um estágio de privação e necessidade que propicia a potência das lutas. Estes processos sempre operam na chave dos comuns, pois “é pelas atividades do dia a dia, através das quais produzimos nossa existência que podemos desenvolver a nossa capacidade de cooperação e não só resistir à nossa desumanização, mas aprender a reconstruir o mundo como um espaço de educação, criatividade e cuidado” (43). A recuperação dos meios de produção e a criação de formas de cooperação social se colocam imprescindíveis em meio à realidade de pauperização e exploração de populações inteiras e à crescente privatização e comercialização dos recursos naturais (44). Assim, a criação dos comuns seria a criação de novas formas coletivas de reprodução, “confrontando as divisões que foram incutidas entre nós por meio das distinções de raça, gênero, idade e localização geográfica” (45). Neste sentido a inclusão de lógicas coletivas de organização e de construção aparecem como afirmação do direito à moradia, e por consequência do direito à cidade, e potência contra as formas de opressão e pauperização do proletariado urbano pelo sistema do capital.

O eminente protagonismo das mulheres na luta pela moradia ajuda a comprovar a tese de Federici. Além das diversas dificuldades impostas pelo gênero para obtenção da casa própria, cada vez mais o acesso à este bem significa para muitas mulheres a autonomia e independência financeira necessárias para se libertarem de relações de abuso de seus companheiros. Neste processo, estas mulheres passam também por uma transformação pessoal e política que acaba por alterar sua consciência da realidade social. A troca de experiências e socialização com outras mulheres enfrentando situações parecidas lhes da entendimento político do direito à moradia, chegando ao que poderiamos chamar de “ponto zero”, que faz com que muitas vezes acabem por assumir posições de liderança dentro do movimento (46).

É na condição coletiva da autogestão que muitas mulheres tomam a frente na construção de espaços de discussão e construção de relações de cooperação, o que, além de fortalecer seus laços políticos e sociais, produz um contexto coletivo de ajuda nas tarefas de reprodução, como limpeza e cuidado das crianças e idosos, principalmente para mães solteiras. A junção das dimensões pessoal e política é o que, segundo Federici, irá dar início à construção de uma sociedade alternativa que estabeleça o trabalho reprodutivo na chave da cooperação (47).

Esta relação de liderança das mulheres nos movimentos tem sido comprovada em experiências de assessorias técnicas como da Usina CTAH, que tem sido também responsável por algumas das principais teorizações acerca da prática dos mutirões autogeridos. No encontro da prática e teoria, os arquitetos da Usina se questionam ainda hoje: “guardaria a autogestão ainda a dimensão da velha política da luta de classes e de constituição de um “poder popular” no sentido de uma ruptura anti-capitalista — ou ao menos de resistência consciente a este sistema — ou teria ela definitivamente deslizado para o campo das novas formas de administração da pobreza e “culpabilização das vítimas” num quadro político conservador e neoliberal?” (48). Ainda que desde os anos 1980 a autogestão da moradia apresente este mesmo paradoxo, é inegável seu valor como resistência às formas de produção do capitalismo, dentro da chave de criação dos comuns, ao que a Usina complementa: “Não se está produzindo mercadorias com o objetivo imediato de troca e valorização de capital (mesmo que indiretamente esse valor de uso seja socialmente apropriado pelo capital, na medida em que abriga força de trabalho) — o que lhe confere uma qualidade outra. Esta distinção, combinada à relativa horizontalidade do trabalho no canteiro e coletivização das decisões, ao uso de riqueza social acumulada nos fundos públicos e uma perspectiva técnica diferenciada, são pontos nevrálgicos que permitem certa ruptura com a lógica do sistema capitalista — o que não é desprezível politicamente. Logicamente o mutirão não traz, por si só, a possibilidade de transformar o sistema, porém, as relações de produção que nele se demonstra e experimenta podem constituir alternativas ao modo de produção capitalista” (49).

Ao colocar lado a lado teorizações relativas a adoção do mutirão autogerido para construção da habitação e a força transformadora das mulheres e dos comuns identificados por Federici, pretendeu-se reforçar a importância da investigação de novas formas de enfrentar os problemas ligados à expropriação do capital. O conceito dos comuns apresenta-se então como ação possível para alcançar uma sociedade mais cooperativa e solidária, necessariamente informada pelos processos políticos e munida de uma concepção crítica ao contexto exploratório do sistema capital.

notas

NA — Este artigo foi desenvolvido como trabalho final da disciplina História da Habitação Social realizado pela autora em condição de aluna especial. Gostaria de agradecer aos professores Nabil Bonduki e Nilce Aravecchia e aos colegas pelas ótimas discussões durante o curso. Agradeço também à Lucia Lotufo e Isac Marcelino pelas fotografias que ilustram as ideias apresentadas no texto.

1
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. São Paulo, Elefante, 2017, p. 38.

2
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução. São Paulo, Elefante, 2019, p. 72.

3
Idem, ibidem, p. 23.

4
Idem, ibidem, p. 26.

5
A própria denominação “donas de casa” para se referir ao trabalho doméstico das mulheres associa a figura feminina (“donas”) à moradia da família nuclear (“casa”).

6
MARICATO, Ermínia. Autoconstrução, a arquitetura possível. In MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa e da cidade no Brasil industrial. São Paulo, AlfaOmega, 1979.

7
Idem, ibidem, p. 83.

8
Idem, ibidem, p. 84.

9
Idem, ibidem, p. 79. Para uma análise aprofundada de como o Estado resolve o problema da habitação, ver BOLAFFI, Gabriel. Habitação e urbanismo: o problema e o falso problema. In MARICATO, Ermínia (org.). Op. cit., p. 37-70.

10
Segundo dados coletados pela Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano — Emplasa em 1975, a autoconstrução representava mais de 50% do total de habitações em municípios da Grande São Paulo, chegando a 25% na capital. Esse dado evidencia a produção irrisória dos programas e políticas estatais, sendo principalmente a partir da autoconstrução que a população resolve o problema da moradia com suas próprias mãos.

11
MARICATO, Ermínia (org.). Op. cit., p. 76.

12
OLIVEIRA, Francisco de. Apud MARICATO, Ermínia (org.). Op. cit., p. 76.

13
MARICATO, Ermínia (org.). Op. cit., p. 72.

14
Idem, ibidem, p. 73.

15
Idem, ibidem, p. 79.

16
Idem, ibidem.

17
BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. Periferias. Caderno de Estudo e Pesquisa 2. São Paulo, Prodeur/Fupam/FAU USP, 1979. Apud BONDUKI, Nabil. Da experiência com os movimentos para a formulação de uma nova política habitacional. In Habitação e autogestão: Construindo territórios de utopia. São Paulo, Fase, 1992, p. 154.

18
BONDUKI, Nabil. Op. cit., p. 140. “Quase todos os aspectos da política habitacional foram questionados: mecanismos financeiros, fontes de recursos, o caráter (anti)social dos investimentos, as intermediações, o processo de produção, as tecnologias adotadas, a dimensão dos conjuntos e seus projetos arquitetônicos e urbanísticos, as formas de propriedade, a gestão política habitacional, o papel da iniciativa privada e do usuário, a centralização das decisões”.

19
BONDUKI, Nabil. Op. cit., p. 141.

20
Idem, ibidem, p. 142.

21
Idem, ibidem, p. 143.

22
Idem, ibidem, p. 144.

23
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução (op. cit.), p. 289.

24
Idem, ibidem, p. 295.

25
Idem, ibidem, p. 299.

26
Idem, ibidem, p. 278.

27
Idem, ibidem, p. 321.

28
“Ao contrário do que pensava Engels — que só dava importância para a organização nascida no mundo fabril — considero importante alguma fixação dos trabalhadores no local de moradia”. BONDUKI, Nabil. Op. cit., p. 151.

29
Idem, ibidem, p. 157.

30
Idem, ibidem, p. 156.

31
Idem, ibidem, p. 158.

32
Idem, ibidem, p. 157.

33
Idem, ibidem, p. 164-167.

34
Idem, ibidem, p. 162.

35
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução (op. cit.), p. 305.

36
Em “Calibã e a bruxa” Silvia Federici irá analisar a transição do feudalismo para o capitalismo a partir do ponto de vista da história das mulheres, o que a levou a questionar também o processo histórico da constante expropriação e pauperização dos trabalhadores no estabelecimento deste regime. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa (op. cit.), p. 49.

37
Idem, ibidem, p. 50.

38
Idem, ibidem, p. 138.

39
Idem, ibidem, p. 135.

40
Idem, ibidem, p. 163.

41
Idem, ibidem, p. 15.

42
Idem, ibidem, p. 14.

43
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução (op. cit.), p. 19.

44
Idem, ibidem, p. 31.

45
Idem, ibidem, p. 33.

46
A bibliografia aprofundada acerca do tema das mulheres na luta por moradia ainda é escassa, ainda que haja um número crescente de pesquisas dedicadas aos movimentos de luta por moradia em São Paulo e no Brasil, além da recente atenção ao debate de gênero na arquitetura. Para aprofundamento no assunto ver: HELENE, Diana. Gênero e direito à cidade a partir da luta dos movimentos de moradia. Caderno Metrópole: Dossiê: o ativismo urbano contemporâneo:resistências e insurgências à ordem urbana neoliberal, v. 21, n. 46, 2019; GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e luta pela moradia. São Paulo, Edições Loyola, 1991; GOHN, Maria da Glória. Mulheres: Atrizes dos Movimentos Sociais — relações político-culturais e debate teórico no processo democrático. Politica & Sociedade, v. 6, 2007, p. 41-70; SCHWARTZ, Rosana. Mulheres em movimento — movimento de mulheres: A participação feminina na luta pela moradia na cidade de São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo, PPGH PUC SP, 2007; CARVALHO-SILVA, Hamilton Harley de. A dimensão educativa da luta de mulheres por moradia no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo, FE USP, 2018.

47
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução (op. cit.), p. 322.

48
USINA. Arquitetura, política e autogestão: um comentário sobre os mutirões habitacionais. Revista Urbânica 3. São Paulo, Editora Pressa, 2008 <https://bit.ly/3BAuPmg>.

49
Idem, ibidem.

sobre a autora

Fabiana Perazolo é arquiteta e urbanista formada em 2017 pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Trabalhou como assistente editorial no Portal Vitruvius e na Romano Guerra Editora e atualmente desenvolve projetos e realiza pesquisa no escritório Raddar.

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261.01 especial Mies van der Rohe

Técnicas de construção moderna e monumentos históricos

Conservação, reparação, reintegração, restauração, reconstrução e nova construção na preservação da Nova Galeria Nacional de Mies van der Rohe de 2021 em Berlim

Klaus Brendle

261.02 homenagem

O arquiteto Marcos Konder Netto (1927–2021)

Uma homenagem póstuma

Antônio Agenor Barbosa

261.03 patrimônio e conservação

À luz de John Ruskin

Um horizonte possível entre paisagens e ruínas

Mariana Guarnieri de Campos Tebet and Cláudio Silveira Amaral

261.04 arquitetura ferroviária

O edifício no documento

Histórico das oficinas ferroviárias de Jundiaí através dos seus registros

Tainá Maria Silva and Eduardo Romero de Oliveira

261.05 urbanismo

Espaços teatrais em megaempreendimentos. Impactos e polêmicas nas cidades

Parte 2

Evelyn Furquim Werneck Lima

261.06 teoria da arquitetura

O ofício do artífice da pedra e as concepções de John Ruskin sobre o trabalho na arquitetura

Eliane Baader de Lima

261.08 culturas moche e chimú

Arquitetura pré-colombiana de Chan Chan e Huaca de Moche

Melissa Ramos da Silva Oliveira

261.09 literatura e produção espacial

A hegemonia da branquitude presente na produção espacial modernista e a narrativa de Carolina Maria de Jesus

Larissa Nunes Sena Gomes

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