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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O arquiteto Marcos Konder Netto, único remanescente de toda a equipe que venceu o concurso de anteprojetos para a construção do Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, recebe homenagem póstuma de Antônio Agenor Barbosa.

english
The Architect Marcos Konder Netto, the only remaining member of the entire team that won the preliminary design competition for the construction of the National Monument to the Dead in World War II, receives a posthumous tribute from Antônio Barbosa.

español
El arquitecto Marcos Konder Netto, único miembro restante de todo el equipo que ganó el concurso de diseño preliminar para la construcción del Monumento Nacional a los Muertos en la Segunda Guerra Mundial, recibe un homenaje póstumo de Antônio Barbosa.


how to quote

BARBOSA, Antônio Agenor. O arquiteto Marcos Konder Netto (1927–2021). Uma homenagem póstuma. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 261.02, Vitruvius, fev. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.261/8414>.

Nascido em Blumenau em 1927 e, desde jovem, radicado no Rio de Janeiro até o último dia 14 de dezembro de 2021 quando faleceu aos 94 anos de idade, o único remanescente de toda a equipe que venceu o concurso de anteprojetos para a construção do monumento aos pracinhas, Marcos Konder Netto era um homem generoso com os mais jovens e sempre muito elegante e discreto ao se referir às situações com as quais, de alguma maneira, não concordava sobre os fluxos de vida cotidianos do monumento por ele projetado (1).

Possuidor de uma prodigiosa memória, Konder me narrou, numa entrevista a respeito da sua infância que, segundo ele, poderia ser chamada de “memórias de um menino nem sempre feliz”, pelo fato dele “ter vivido momentos de muita melancolia e de tristeza” (2). Não tinha nem trinta anos de idade quando sagrou-se vencedor do concurso nacional de projetos para a construção, no então chamado aterro da Glória, do Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial.

Ao final da década de 1950, importante assinalar, tanto a arquitetura quanto o seu profissional correlato, o arquiteto, era uma figura já de grande destaque nos ambientes urbanos de um país que via a sua nova capital ser construída em menos de cinco anos como assim queria o presidente Juscelino Kubitschek, a quem coube inaugurar o monumento projetado por Konder e que correspondia ao “sonho” do Marechal Mascarenhas de Moraes (3), ex-comandante da FEB, que almejava trazer de volta ao Brasil os despojos dos pracinhas que estavam no cemitério de Pistoia, na Itália. Entretanto, se seguisse apenas as orientações de sua família, caberia ao jovem Marcos Konder Netto o destino de ser engenheiro e, sobre isso, ele assim revelou:

“Desde que eu era bem pequeno já gostava de desenhar. Quando eu não tinha amigos para brincar eu não ligava a mínima para isto porque eu ficava distraído sozinho com meus desenhos. E instintivamente, eu até já fazia alguns ‘desenhos de arquiteto’, por que eu fazia cortes. Eu gostava muito de imaginar túneis e com pessoas andando ali por dentro. E talvez muitos destes desenhos deviam ter a influência de revistas de histórias em quadrinhos que começavam a chegar no Brasil naquela época tais como: Flash Gordon, o Príncipe Valente, o Fantasma Voador. E todo mundo na minha família dizia: ‘esse menino tem muito jeito para desenho e quando crescer vai ser engenheiro!’ Aí eu cresci com esta ideia de que, pelo fato de desenhar bem, só me restava ser engenheiro’” (4).

Mas, para além do talento e gosto pelo desenho, Konder também teve a oportunidade de ser amigo próximo de Tom Jobim e de seu parceiro Newton Mendonça que, assim como ele, ambos também nascidos em 1927. Após se mudar para a rua Nascimento Silva, berço da bossa nova em Ipanema, Konder nos contou sobre a sua ocasional decisão de cursar arquitetura e não engenharia como desejavam os seus familiares:

“Quando eu tinha uns 16 anos eu me mudei para Ipanema, ali na Rua Nascimento Silva. E a Nascimento Silva lembra alguém da música popular? Pois bem, foi ali que nasceu a bossa nova e onde morava o Tom Jobim de quem eu fui grande amigo e companheiro por muitos anos. Fui amigo dele e do Newton Mendonça. Nós éramos três inseparáveis. Mas o fato é que a gente estava meio sem saber o que fazer da vida, e como a gente gostava muito de arte, resolvemos estudar arquitetura. Mas, inicialmente, eu comecei a me preparar para prestar o vestibular para engenharia, como queria a minha família. Em uma ocasião, eu estava na praia, num domingo, e conversando com um rapaz um pouco mais velho que eu, que tinha acabado de entrar pra faculdade, e estávamos conversando sobre vestibular e ele me perguntou o que eu iria fazer. Falei-lhe que iria fazer engenharia. E ele: ‘Engenharia, por quê?’ Respondi que iria fazer engenharia porque gostava de fazer projetos, desenhos. Não rapaz isso não é engenharia, isso é arquitetura (risos). E perguntei a ele: ‘E já tem essa faculdade de Arquitetura?’ E ele me disse que havia acabado de entrar para a faculdade de arquitetura, um curso da Escola de Belas Artes. Na época não era uma faculdade como hoje, mas apenas um curso da Escola de Belas Artes. E então decidi fazer o curso de arquitetura, num domingo na praia. E nos preparamos entre tantas farras, estudamos bem e passamos bem para arquitetura. Eu acho que eu passei em terceiro lugar e o Tom Jobim em quinto lugar” (5).

Ricardo de Souza Rocha (6) observa que se na fracassada tentativa pioneira, no final dos anos 1940, promovida pelo sindicato de professores de construir um monumento ao Brasil na Guerra a figura central era a o do escultor, no momento da elaboração do concurso do Monumento aos Pracinhas, a figura do arquiteto já ocupava grande destaque na sociedade, importante dizer até pelo fato de já serem conhecidas, até internacionalmente, as realizações icônicas da arquitetura moderna como o edifício do ministério da Educação e Saúde — MES e as obras da Pampulha de Oscar Niemeyer em Belo Horizonte. Desta maneira, Rocha argumenta que:

“Sem meias palavras, o caminho aberto pelo MES é exatamente o da nova monumentalidade. Desde esse prisma, o sucesso internacional da arquitetura moderna brasileira é menos a curiosidade despertada pelo milagre de uma arquitetura exemplar em um país periférico ou a inflexão com características culturais locais no vocabulário do modernismo arquitetônico internacional e mais a capacidade em (re)elaborar esse mesmo vocabulário, com maestria e eficácia invejáveis, no sentido da representação simbólica de valores. E o Monumento aos Pracinhas não constitui peça menor nesse quebra-cabeça. Pelo contrário, mesmo que Marcos Konder e Hélio Ribas fossem recém-formados desconhecidos, a linguagem de seu projeto era bastante ‘familiar’. [...] A hegemonia alcançada pela arquitetura carioca no panorama da arquitetura brasileira em meados da década de 1940 estende-se, nos anos 1950, aos projetos de monumentos. Dupla hegemonia, nesse sentido, no panorama da arquitetura e, para além deste, no campo de atuação profissional que, ampliado, passa a abraçar áreas disputadas com outros profissionais” (7).

Então aqui faz-se importante enfocar que, embora com juventude e inexperiência profissional, mas pelo fato de dominar e acessar os códigos da linguagem da arquitetura moderna de matriz corbusiana, é que Marcos Konder logrou êxito no referido concurso, projetando e construindo, certamente, a obra mais importante de toda a sua carreira profissional como arquiteto e um dos mais emblemáticos edifícios da arquitetura brasileira do século 20. As suas narrativas sobre o monumento guiavam e estruturavam discursos tanto no que se referia ao conjunto de toda a sua obra como arquiteto, como também aos fluxos de sua própria vida quando ao ser convidado para falar sobre a sua carreira, inevitavelmente tudo era sempre mediado a partir do projeto do monumento.

Sobre as circunstâncias iniciais de sua adesão e tomada de consciência das premissas conceituais propostas por Le Corbusier, Konder assim me relatou:

“Nós éramos privilegiados pelo fato de estudarmos em frente a dois dos maiores ícones da arquitetura mundial que são a ABI e o Ministério da Educação. E ali na ABI o Oscar Niemeyer fez uma palestra muito bonita, onde ele explicava o porquê de determinadas formas nos projetos dele. E foi aí que eu pude associar o que ele falava às ideias e aos projetos do Sullivan, onde ‘a forma segue a função’. Então eu percebi que a função está relacionada com a forma e a partir daí o arquiteto tira a sua motivação para conceber a forma dos seus projetos. Naquele momento eu comecei a encontrar um sentido e achei interessante esta ideia de que o arquiteto, ao projetar, nem faz uma forma gratuita ou aleatória e nem faz um edifício meramente utilitário. Então o papel do arquiteto era fazer alguma coisa que mesclasse a utilidade, a tecnologia e a beleza. E depois nós passamos a tomar conhecimento da arquitetura moderna brasileira através das ideias e dos projetos de Lucio Costa, Niemeyer e também de Reidy. E esta turma era, na verdade, composta por arquitetos nitidamente influenciados pelas ideias de Le Corbusier” (8).

Com muita regularidade eu observei Konder frequentando o monumento e, em algumas ocasiões, esta ida do arquiteto ao seu principal projeto se deu motivada por alguns convites meus para que me acompanhasse em algumas visitas guiadas por ele. Também fui recebido por ele muitas vezes na sua ampla residência em Santa Teresa. Ali, sempre com uma música instrumental ao fundo tocando em baixo volume, eu gravei alguns vídeos como parte das muitas conversas que tive com ele durante a pesquisa que realizei para a minha tese de doutorado sobre o monumento por ele projetado.

O arquiteto Marcos Konder conversando comigo em sua residência, por ele projetada, situada no bairro de Santa Teresa
Foto Antônio Agenor Barbosa, 29 mai. 2012

A ficha de registro do arquiteto Marcos Konder no Instituto de Arquitetos do Brasil, instituição que ele presidiu entre os anos 1966 e 1967
Foto Antônio Agenor Barbosa

Desde quando foi consagrado vencedor do concurso nacional de ideias para a construção do Monumento aos Pracinhas, Konder afirmou ser incapaz de precisar a quantidade de vezes em que desempenhou este papel de guia do espaço por ele projetado em parceria com o arquiteto Hélio Ribas Marinho.

O Noticiário do Exército publicado em 3 de julho de 1957, quando o Monumento aos Pracinhas ainda encontrava-se em obra, registra uma visita guiada em que “os arquitetos vencedores do concurso explicaram os detalhes da obra a ser construída” durante visita dos alunos do Curso de Construção da Escola Técnica do Exército ao canteiro de obras do monumento
Imagem divulgação [Arquivo Histórico do Exército]

Em primeiro plano a visão da maquete do projeto vencedor do concurso do monumento e, ao fundo, da esquerda para a direita, o escultor Alfredo Ceschiatti, o arquiteto Hélio Ribas Marinho e o arquiteto Marcos Konder
Imagem divulgação [Acervo do Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra]

Quando estava presente no monumento, à época já com 85 anos de idade, Konder seguia um ritmo narrativo intenso, em visitas que podiam durar mais de uma hora, e um roteiro muito metódico e sistemático a respeito da idealização e da construção de seu mais notório projeto arquitetônico. Tal roteiro era essencialmente organizado cronologicamente a partir do seu êxito no referido concurso quando, ainda um jovem arquiteto, consagrou-se vencedor, superando outros trinta e seis concorrentes.

Registro de uma visita guiada realizada por Marcos Konder para alunos de uma escola pública do município, no dia 12 de junho de 2012
Foto Antônio Agenor Barbosa

Registro de uma visita guiada realizada por Marcos Konder para alunos de uma escola pública do município, no dia 12 de junho de 2012
Foto Antônio Agenor Barbosa

Durante o trabalho de campo para a pesquisa de doutorado tive a oportunidade de encontrá-lo em diversos eventos militares, para os quais ele era convidado pelo coronel Germano Américo do Santos que dirigiu o monumento entre 2011 e 2013. Era comum vê-lo em uma atitude mais contemplativa e de introspecção, não exatamente em reverência aos pracinhas, tão festejados pelos militares, mas focado nas proezas de sua própria obra da qual, como já me havia revelado, ele “nunca se envergonhou de ter feito”. Um momento particularmente auspicioso desta atitude contemplativa do arquiteto em relação à sua obra foi quando o observei no dia 8 de maio de 2012, Dia da Vitória, após o encerramento da cerimônia e quando todas as autoridades civis e militares já tinham ido embora e, num monumento já praticamente vazio, Marcos Konder circulou solitário, introspectivo e silencioso por cerca de trinta minutos por várias partes do monumento.

A atitude dele diante de seu monumento foi de grande encantamento e poesia. Vagarosamente, em passos muito lentos, porém sempre firmes, sem o uso de nenhum apoio ou bengala, Konder caminhava um pouco e, subitamente, parava e girava o corpo a olhar para várias direções como se também, suponho, estivesse mirando não apenas o seu monumento como também uma série de transformações arquitetônicas no seu projeto original e também numa parte considerável do entorno do Parque do Flamengo e da cidade que muito se transformaram desde o ano de 1960 quando o monumento foi inaugurado.

O que me alertou como um ponto fundamental naquele passeio contemplativo do arquiteto pelo seu monumento foi o fato de que, em nenhum momento, ele se dirigiu ou se aproximou da entrada do mausoléu, situado no subsolo. Se nas visitas guiadas para os estudantes ele costumava terminá-las no mausoléu explicando que ali “era a razão de ser do monumento” que projetou, naquele dia, sozinho e contemplativo, Konder não se interessou por esta “razão de ser”.

Faz sentido especular que, aquilo que está no subsolo, escondido da vista magnífica emoldurada pela baía de Guanabara com o Pão de Açúcar ao fundo, não precisaria ser contemplada já que faz parte também de uma concepção arquitetônica muito mais sóbria e austera em relação à parte superior do monumento que se destaca fortemente na paisagem até mesmo por suas qualidades formais e pela ousadia de sua estrutura, como era comum em obras da arquitetura moderna.

De certa maneira, Konder praticou neste dia um mesmo tipo de comportamento e de apropriação do monumento que vi ser bastante frequente em muitos visitantes e interlocutores com que quem conversei e/ou entrevistei durante o trabalho de campo. Fora dos enquadramentos narrativos oficiais e sem o compromisso de ter que fazer uma narrativa cronológica e sistematizada sobre a sua obra, não fazia muito sentido despender tanta energia para visitar o mausoléu no subsolo e se conectar com uma atmosfera diametralmente oposta daquela que a própria paisagem da baía de Guanabara, em um dia ensolarado, poderia proporcionar de forma mais leve e lúdica.

Se para o coronel Germano, então diretor do monumento, o mausoléu nada tinha a ver com “morte” e sim com “vida” (9), para Konder, assim como para a maior parte dos visitantes que por ali passam, não valeria à pena descer até o subsolo para visitar o mausoléu e se desconectar da dimensão lúdica e de encantamento que o Parque do Flamengo propõe, a não ser que se tenha um interesse específico na história dos pracinhas e da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial.

Através da minha colega arquiteta Juliana Mattos, conheci Konder pessoalmente em 2007 e, na ocasião, quando completava oitenta anos de idade, perguntei se poderia nos conceder uma entrevista a respeito da sua trajetória na arquitetura. O convite foi prontamente aceito sem maiores delongas e, por três tardes consecutivas, Konder recebeu Juliana Mattos e eu, na sua bonita residência, por ele também projetada, situada na rua Doutor Júlio Ottoni, no alto do bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro.

A partir de então, por diversas razões, sempre estive ligado afetivamente ao arquiteto Marcos Konder e, por uma dessas facetas do destino, cada vez mais também ao próprio Monumento aos Pracinhas, sua principal obra que, por algum tempo tive a oportunidade de também observar cotidianamente da janela de um apartamento onde residi no bairro da Glória (10). Cabe aqui enfatizar que esta entrevista foi, certamente, uma das mais completas que o arquiteto já havia concedido em toda a sua trajetória profissional e que, talvez por isso, obteve uma grande repercussão e ressonância no meio acadêmico e entre os arquitetos e estudantes, não apenas da sua obra como de outros importantes personagens protagonistas do movimento moderno no Brasil.

Ao retomar o contato com Konder em 2012 já não conseguia mais enquadrar o Monumento aos Pracinhas (apenas) dentro daquelas mesmas categorias e concepções formais e tipológicas que o meu olhar de arquiteto privilegiara alguns anos antes quando realizei a primeira entrevista com o arquiteto em 2007. Por razões intrínsecas às próprias necessidades da pesquisa antropológica, era preciso ver, investigar, observar e saber mais sobre aquele arquiteto e, principalmente, sobre o monumento por ele projetado.

Tornou-se necessário elaborar um difícil processo de deseducação do meu olhar para me permitir conhecer um outro Monumento aos Pracinhas e não apenas aquele tão festejado por suas virtudes formais e por sua tipologia arquitetônica mas, sobretudo, pelos tipos de usos, contra-usos, apropriações e pelas representações memoriais que a partir dele e mediadas por ele, produziam efeitos e consequências, não apenas no monumento propriamente dito como também em muitos usuários e frequentadores. Neste processo de deseducação das minhas concepções iniciais do monumento, cabe enfatizar que cada vez mais eu fui desconstruindo-o como um simples objeto inerte sobre o qual lançava um determinado olhar para agora compreendê-lo como um sujeito ativo capaz de, em torno de si, gerar, organizar, demandar, agregar, manter, mediar e, eventualmente, até destruir ou transmutar valores e símbolos que anteriormente não imaginava que a própria arquitetura fosse capaz de fazê-lo (11). O fato é que após o trabalho de campo que realizei no monumento já não havia mais garantias de nenhuma visão determinista, cronológica e estabilizadora lançada sobre ele sem o risco de que o próprio monumento me lançasse de volta outros questionamentos e “incertezas” (12) para as quais, a despeito do muito que ele me deu a conhecer pela etnografia, era impossivel abarcá-las em sua totalidade espacial devido, em grande parte, à multiplicidade de “controvérsias” (13) que transitam em torno das narrativas oficiais que constituem o monumento aos pracinhas.

Como já assinalado por George Perec, “gostaria que existissem lugares estáveis, imóveis, imutáveis”, e prossegue, “esses lugares não existem, e é porque não existem que o espaço se torna uma questão, deixa de ser evidência, deixa de ser incorporado, deixa de ser apropriado. O espaço é uma dúvida” (14). Alberto Goyena, em sua etnografia sobre processos de demolição de arquiteturas observa que:

“Espaços, assim como lembranças, subsistem na medida em que forem constantemente remarcados, referidos e “conquistados”. Mas a conquista de um espaço é a demolição de outro e, decerto, formas arquitetônicas importam tanto que sua demolição não poderia se constituir senão como uma atividade das mais profanadas” (15).

Foi, portanto, a etnografia que me fez conhecer “um certo” monumento e alguns dos seus múltiplos, mas foi também ela que me mostrou o quanto podem ser infindáveis estas múltiplas concepções e “controvérsias” sobre o Monumento aos Pracinhas a ponto de não termos sequer condições de aqui quantificá-las já que a cada novo olhar para ele lançado reaprendemos e/ou desaprendemos sobre o que imaginávamos ser fixo ou estável a respeito da arquitetura do monumento. Não há, portanto, um só Monumento aos Pracinhas, mas sim vários monumentos aos pracinhas ainda que a suposta estabilidade, perenidade e permanência de sua arquitetura (16) e do destaque do seu pórtico monumental na paisagem, nos possa iludir do contrário.

Um aspecto relevante é que ao reencontrar pessoalmente o arquiteto Marcos Konder a partir de 2012 em diante, já por conta dos meus interesses na realização da pesquisa de doutoramento em antropologia, eu observei que ele mantinha intacta nas nossas conversas a mesma narrativa que me relatara na entrevista de 2007. Era mediado por essa narrativa bem estruturada e pelo seu carisma, que ele se constituiu enquanto persona pública, arquiteto autor do projeto do Monumento aos Pracinhas. De certa forma e, paradoxalmente, na medida em que me reaproximei de Konder durante o trabalho de campo eu também me afastei dele pois se no campo, vivendo cotidianamente as rotinas do monumento por mais de seis meses consecutivos, observei uma pletora de controvérsias que apareciam evidentes à minha observação, nas conversas e entrevistas com o arquiteto estas sequer existiam e as narrativas ainda eram muito conectadas ao que transcrevo abaixo:

“Quando surgiu o concurso do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra em meados dos anos 50, eu comecei a esboçar muita coisa e desenvolvi sozinho as questões centrais do projeto arquitetônico. Quando já tinha muita coisa avançada e uma ideia já bem alinhavada, eu procurei o Hélio Marinho para colaborar comigo, pois os prazos estavam muito apertados e eu tive receio de não dar conta sozinho. O Hélio Marinho topou colaborar comigo e nós entramos como sócios. Na verdade, aqui cabe esclarecer que, embora nós tivéssemos entrado como parceiros no Projeto do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra, eu não tenho nenhum pudor e nem falsa modéstia de dizer que era, na verdade, um projeto da minha autoria em que o Hélio foi meu colaborador em função das questões que já mencionei. E o resto da história todo mundo sabe, pois nós vencemos o concurso e o monumento foi construído. Para mim foi uma excelente notícia já que eu era ainda um jovem arquiteto, tinha menos de trinta anos, e ganhar um concurso daquele porte foi muito bom para alavancar a minha carreira” (17).

Cabe destacar que a entrevista que realizei em 2007, embora bastante completa, possui um certo caráter celebrativo em torno da figura de Konder até mesmo em função da homenagem que queríamos fazer pela passagem dos seus oitenta anos de idade à época. Já no meu reencontro com o arquiteto de 2012 em diante, com vistas à realização da minha tese sobre o monumento, me vi, de certo modo, instigado, incomodado e provocado diante daquele mesmo senhor extremamente gentil e generoso que repetia, de maneira quase padronizada, uma certa narrativa mítica dentro da qual eu já havia encontrado fissuras, conflitos, dissonâncias e, eventualmente, algumas “controvérsias”, conforme sugerido por Bruno Latour (18).

Mais uma vez, não custa enfatizar, eu me vi diante de uma instigante provocação que, se por um lado me alinhava às concepções nativas apoiadas por um saber técnico do que seria o monumento e seus mitos de origem na visão de seu arquiteto, por quem nutria tanta admiração e afeto, por outro lado, cada vez mais não conseguia enquadrar as suas concepções no que a própria etnografia vinha me revelando. Possuidor de uma excelente memória, capaz de relembrar com detalhes nomes, datas e situações ocorridas durante a construção de sua principal obra entre 1957 e 1960, Konder operava com muita habilidade e competência um certo enquadramento narrativo que não só reforçava o olhar treinado de um arquiteto diante da cidade como, sobretudo, não se mostrava muito interessado em questões outras que não fossem alusivas apenas às características formais que, para ele, garantiriam, passados tantos anos, a integridade do seu mais notório projeto arquitetônico.

Poeta, escritor, professor, artista plástico e apreciador de música clássica mas, sobretudo, um arquiteto, Konder já na maturidade publicou um livro de poemas intitulado Dimensões (19) onde na apresentação assim se autorretrata:

“Sou arquiteto, e a arquitetura é a arte de poetizar volumes, espaços, formas e cores. Talvez por isso, desde jovem, sempre tenha tido grande afinidade com a poesia. [...] Apesar disso, nunca tive a pretensão de escrever poemas, mesmo porque todo o meu potencial criativo estava canalizado prioritariamente — durante os primeiros anos de minha carreira de arquiteto — para a arquitetura” (20).

No referido livro boa parte dos poemas não só possuem títulos tais como “Problema habitacional”, “Caos na Cidade”, “Lagoa Rodrigo de Freitas”, “Catedral sombria”, “Teoria da arquitetura, em 1988 (21)”, “Curva helicoidal” e “Considerações sobre a espiral” onde o arquiteto, de forma recorrente, se mostra interessado em escrever sobre formas, volumes, espaços e, por assim dizer, arquitetura. E assim também ele refletia sobre o monumento, sempre considerando-o como uma artefato arquitetônico em que predominam as suas concepções formais e plásticas, fruto da criatividade daquele jovem arquiteto que sagrou-se vencedor do concurso. O monumento de Konder era sempre enfocado por ele como um objeto de grande destaque na paisagem e uma obra rara que, ao seu tempo, já anunciava a sua capacidade de expressar aqui no Brasil, grande parte do vocabulário arquitetônico moderno e da própria linguagem arquitetônica à qual se liga, notadamente aquela que se conecta diretamente com o pensamento do arquiteto Le Corbusier, a quem o monumento agradou imensamente quando na ocasião de uma visita a cidade.

Em uma das muitas conversas que tive com o arquiteto no próprio monumento, Konder também não se mostrava muito ligado a questões sobrenaturais ou mesmo curioso em especular a respeito da morte ainda que, segundo ele, a “razão de ser do monumento tenha sido a construção do mausoléu” onde estão depositados os restos mortais dos que morreram nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial na Itália. Portanto, sua visão do monumento era eminentemente estética e técnica, pautada fundamentalmente nas concepções formais de sua estrutura e na sua plasticidade, sintonizadas com o pensamento corbusiano. Na entrevista de 2007 ele já havia me respondido que, desde criança, nunca fora “muito ligado a estas questões religiosas” e nunca fora “muito católico, até porque”, argumentou ele, “minha mãe era espírita e meu pai não era também muito ligado a estas questões e nunca acreditou muito naquela história toda” (22). De forma literal e direta ao ser indagado sobre o que pensava a respeito da morte ele me disse: “não acredito em nada após a morte não, pra mim morreu, acabou e pronto”. Assim, em dois dos poemas do seu livro, ele escreveu:

“Desagrada-me particularmente nos mortos sua imobilidade e incomunicabilidade totais, aquele ar ausente, como se o que acontecesse em volta não fosse com eles. Por que não se mexem um pouco? Por que não falam conosco? (mesmo baixinho...)? Seria tão mais aceitável[...] Mas não, os mortos são inexoráveis e incorruptíveis (menos na carne). Insistem em permanecer rígidos e mudos, e em ostentar aquela cor inexprimível. Positivamente não gosto dos mortos assim: solenes, distantes. Demasiadamente mortos” (23).

E também em outro poema chamado “Consolo” onde escreveu:

“A morte, desejada ou não, é sempre morte. Sob a terra ou sob o céu, o morto deve aceitar que o jogo já terminou. E seu único consolo é saber que outros também terão o seu dia de exclusão” (24).

Teci estes comentários acima sobre a produção poética de Konder para deixar marcado o quanto este tipo de apreensão espacial, preconizada pelo olhar específico com que boa parte dos arquitetos percebe e enquadra a cidade e a arquitetura, começou a me provocar gerando não apenas um estranhamento da minha própria condição de arquiteto, admirador da obra de Konder, como também para o fato de pressupor que a etnografia estava desconstruindo e demolindo o Monumento aos Pracinhas tal e qual eu o conhecera alguns anos antes mediado apenas pelas lentes de seu arquiteto.

*****

Durante a gestão do coronel Germano, achei particularmente auspiciosa a sua ideia de colocar duas grandes faixas, improvisadamente fixadas, no monumento onde se lia: “Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial — Casa de HERÓIS da Força Expedicionária Brasileira — Aqui se preserva a memória dos que lutaram e honraram o Brasil com sangue e vitórias — VISITE-OS”.

Registros das faixas colocadas em grande destaque no monumento durante a gestão do coronel Germano. No capítulo 1, as imagens de número 35 até 40 também destacam a maneira improvisada como estas faixas foram fixadas
Foto Antônio Agenor Barbosa, 2012

Registros das faixas colocadas em grande destaque no monumento durante a gestão do coronel Germano. No capítulo 1, as imagens de número 35 até 40 também destacam a maneira improvisada como estas faixas foram fixadas
Foto Antônio Agenor Barbosa, 2012

Questionado por mim sobre a colocação das referidas faixas o coronel respondeu que era uma forma de fixar para os visitantes do que se tratava exatamente o monumento já que muitos poderiam visitá-lo e depois nem sequer ter um registro resumido ou uma lembrança sobre o que de fato observara na visita. Contrariando as argumentações do coronel, o arquiteto Konder não ficou nada satisfeito e, ao contrário, até se mostrou visivelmente irritado quando percebeu as referidas faixas ali colocadas no “seu” monumento.

Meio que como uma sina, não fora esta a única vez em que Konder precisou ir de encontro a este tipo de identificação em uma “obra de sua autoria” que, segundo ele, seria absolutamente desnecessária numa obra de arquitetura moderna, cujas concepções abstratas deveriam ser destacadas pelo próprio projeto sem a necessidade de nenhuma ilustração, ornamento ou painéis explicativos. Este, não era, segundo ele, o espírito da arquitetura moderna que, justamente, veio para clarear aspectos que em “estilos” mais antigos eram encobertos ou escondidos pelo excesso de ornamentos que, muitas vezes, “impediam a legibilidade do edifício”.

Alguns anos antes destas faixas colocadas pelo coronel Germano no monumento, outro projeto de autoria de Konder, nem tão reconhecido quanto o primeiro, o Centro Administrativo São Sebastião, sede da prefeitura da cidade, cujo apelido é “piranhão”, já fora alvo de um tipo de “identificação” semelhante durante a gestão do prefeito Cesar Maia que governou a cidade de 1993 a 1996 e de 2001 a 2008. Sobre isso Konder assim me narrou:

“Eu até gosto deste apelido ‘piranhão’ (risos). Acho um apelido simpático e nada tenho contra. Ele faz referência ao fato de que aquela região onde foi construído o edifício era, originalmente, uma região famosa de prostituição naquela área que se chama Cidade Nova. Quanto à concepção, eu fiz um projeto de um modo geral composto por um grande edifício e dentro de uma estrutura modular. Eu fiz ali na verdade dois edifícios que se comunicam horizontalmente e lá vocês poderão observar que existem duas prumadas de elevadores o que faz com que eles sejam independentes verticalmente. E um outro aspecto que eu tinha receio era de que o fato de tratar-se de uma obra pública, esta poderia não ser bem executada e bem construída como em geral ocorre com este tipo de coisa no Brasil, infelizmente. Então eu parti para um projeto relativamente simples, sereno, baseado na tal estrutura modular que já mencionei. Mas, ao mesmo tempo, é um edifício que marca a presença na paisagem e criou, a meu ver, uma boa referência como sede da Prefeitura Municipal. E é um edifício muito funcional, parti para uma planta livre que pode ser adaptada como for necessário. E a estrutura é feita apenas por apoios externos que aparecem na fachada do edifício. E as tais colunas de apoio, que são côncavas, também recebem internamente toda a parte de dutos de infraestrutura do edifício. É um projeto que eu gosto muito e que atende bem a uma função de edifício público. Mas, infelizmente, o nosso pequeno imperador o César — o Prefeito César Maia — resolveu fazer aquilo que eu considero, como autor do projeto, uma barbaridade. Ele mandou pintar, sem que eu fosse consultado, no topo do edifício uma faixa enorme, cor de laranja, que é a cor da Comlurb (empresa de limpeza urbana do município), fazendo referência à prefeitura e ao site da prefeitura. Um dia eu fui surpreendido por um repórter do jornal O Globo que me ligou perguntando se eu concordava com a faixa que havia sido pintada no topo do edifício. Eu confesso que tomei um susto ao ser informado. O que soube é que o Prefeito tinha a ideia de que a tal pintura fosse provisória mas, ao que parece, infelizmente ela já está lá há muito tempo descaracterizando a integridade do meu projeto arquitetônico. Espero que o próximo prefeito tenha o bom senso de tirar aquilo” (25).

Centro Administrativo São Sebastião, sede da Prefeitura Municipal, edifício popularmente conhecido como “piranhão” e que foi projetado pelo arquiteto Marcos Konder
Foto Antônio Agenor Barbosa, 2007

E, a respeito da faixa colocada no monumento, Konder também se ressentia de não ter sido consultado pelo Diretor pois, se o fosse, “jamais concederia autorização para a colocação daquela faixa”, conforme argumentou em uma conversa comigo.

Para o arquiteto Marcos Konder, o monumento tinha um caráter emblemático apenas do ponto de vista tipológico e arquitetônico por ter se configurado na sua mais importante obra de toda a sua carreira. Na entrevista que me concedeu, Konder afirma que:

“Na verdade o meu primeiro grande projeto foi o do monumento. E mesmo tendo vencido o concurso houve sim, muitas críticas desfavoráveis ao projeto. Houve por exemplo um crítico de arte chamado Jayme Maurício (26) que era muito ligado à velha guarda dos arquitetos. Ele escrevia muito bem e a coluna era publicada no Correio da Manhã. Os arquitetos em geral até que gostaram muito, mesmo porque era tudo muito diferente das formas que estavam acostumados a ver na cidade. O monumento, desde que foi erguido, fugiu à rotina visual da cidade. Mas cabe dizer que certa ocasião com o monumento já construído, o Le Corbusier esteve no Brasil e você acredita que as pessoas que estavam guiando o Corbusier não iam levá-lo para conhecer o monumento? Mas o fato é que ao passar de carro ali pelas pistas do Aterro do Flamengo o próprio Le Corbusier fez questão de descer e de ver e passear pelo monumento. Pois saibam que ele ficou uma hora e gostou muito do que viu. De maneira que para mim isto foi também um fato muito importante, pois é como se eu tivesse sido legitimado por um grande mestre. Naquela ocasião eu recebi um telefonema do Lucio Costa narrando este episódio e dizendo que o Le Corbusier gostaria de conhecer os arquitetos responsáveis pelo projeto do monumento. O fato é que ao saber disto eu logo depois tomei um porre de felicidade” (27).

Quando Konder argumentava que o monumento fugia à rotina visual da cidade, ficava evidente o seu elogio aos aspectos formais do edifício que, com suas linhas sintonizadas com a arquitetura moderna de matriz corbusiana, tinha a missão de apontar para o futuro onde se garantiria, através da arquitetura, a perpetuação da memória da FEB, dos pracinhas e da campanha do Brasil na Segunda Guerra Mundial.

Nas muitas conversas que tive com Marcos Konder era recorrente, nas suas narrativas sobre o monumento, esta alusão frequente a uma forma inovadora que, segundo ele, “definiria e possibilitaria uma nova maneira de relação do cidadão comum com a arquitetura moderna brasileira” — e a carioca em particular — num momento em que a nova capital Brasília também estava sendo construída pela dupla Lucio Costa e Oscar Niemeyer.

Fotos do Monumento aos Pracinhas no período da sua construção e já após a sua inauguração onde se pode ver o grande contraste entre uma arquitetura de estilo eclético como o do Palácio Monroe e do próprio monumento já ilustrativo da linguagem moderna. Cer
Imagem divulgação [Arquivo Histórico do Exército]

Fotos do Monumento aos Pracinhas no período da sua construção e já após a sua inauguração onde se pode ver o grande contraste entre uma arquitetura de estilo eclético como o do Palácio Monroe e do próprio monumento já ilustrativo da linguagem moderna. Certamente estas fotos são emblemáticas deste atributo conferido por Konder quando afirmava que “o monumento, desde a sua inauguração, fugiu à rotina visual da Cidade”
Imagem divulgação [Arquivo Histórico do Exército]

Konder, de maneira singela e sem nenhum pedantismo, mas sempre envaidecido, se vangloriava em suas declarações desta aprovação que recebeu do arquiteto Le Corbusier e, ao mesmo tempo, sempre ressaltava que no Parque do Flamengo somente três arquitetos tiveram o “privilégio” de construir suas obras, a saber: Affonso Eduardo Reidy, Lucio Costa e, ele próprio, Marcos Konder que além do monumento também é autor do menos notório e até esquecido projeto do antigo restaurante Rio´s, onde até recentemente funcionava uma grande rede de churrascaria. Tais comentários tecidos acima são, sem dúvida, reveladores da construção da persona pública do arquiteto Marcos Konder. Relevante enfatizar que se, do ponto de vista internacional, o seu monumento já fora elogiado fartamente pelo mestre Le Corbusier, no âmbito nacional, este fato de estar ali na companhia de Reidy e de Lucio Costa com suas respectivas obras no Parque do Flamengo, é mais uma forma dele se destacar em meio a tantos mestres, assim por ele considerados. Com Reidy, Konder trabalhou por muitos anos no Departamento de Habitação Popular — DHP da prefeitura e ali aprendeu a ter uma “enorme admiração” pelo arquiteto. Para Lucio Costa (28), Konder sempre reservou os mesmos elogios e, em suas falas, se referia a Costa como “o grande pensador da arquitetura brasileira”. Oscar Niemeyer bem que tentou (29), sem êxito, em diversas ocasiões inserir algum projeto de sua autoria no Parque do Flamengo mas ali, “não tem nenhuma obra de Niemeyer” costumava enfatizar Konder sem disfarçar uma certa vaidade nesta situação com relação ao mais famoso arquiteto brasileiro do século 20. Rocha (30) traz uma argumentação surpreendente sobre uma destas tentativas frustradas de Niemeyer de construir, ainda na década de 1980, o Monumento Tortura Nunca Mais no Parque do Flamengo:

“De fato, em meados da década de 1980, foi barrada a ideia de localizar no parque, em frente ao Morro da Viúva, o Monumento Tortura Nunca Mais, concebido por Oscar Niemeyer. A reprodução de objetos soltos ao longo do local poderia fazer com que ele se tornasse um museu a céu aberto, com uma sucessão de formas plásticas variadas, eventualmente desconexas. Se isso pode ter sido um dos motivos para a recusa do monumento de Niemeyer, treze anos antes, curiosamente, havia sido permitida a construção do Monumento a Estácio de Sá, projeto de Lucio Costa — nesse sentido, a razão do embargo a Niemeyer, para além da qualidade duvidosa de sua proposta, que gerou bastante polêmica na época, talvez tenha sido a possibilidade de algo inusitado de um mesmo lugar abrigar um monumento homenageando militares próximo a um monumento contra os abusos por eles cometidos” (31).

No meu trabalho de campo, tirando os militares do staff que administra o monumento, grupos de arquitetos, simpatizantes e frequentadores habituais do espaço, a questão da autoria do monumento é sempre recheada de muitas surpresas, dúvidas e controvérsias. Para quem, como eu, em função da minha formação e da atuação como docente, sempre estive ligado a este aspecto referente à autoria dos projetos arquitetônicos e sempre dei muita importância a este tipo de acionamento discursivo, confesso que foi por demais surpreendente ver que as minhas certezas e os meus conhecimentos sobre o arquiteto do monumento (32) não só não eram socialmente compartilhados e nem considerados tão importantes como também atribuíam, sem nenhum pudor ou cerimônia, esta autoria a figuras inusitadas, algumas delas até mesmo de fora do métier de arquitetos, como era o caso do marechal Mascarenhas de Moraes, do presidente Getúlio Vargas e do governador Carlos Lacerda.

Tais considerações, evidentemente, iam de encontro não apenas daquilo que aprendi na minha formação de arquiteto e no meu percurso como professor de arquitetura, como também me revelavam, inicialmente, algum incômodo e constrangimento diante de pessoas que até tinham algum apreço pelo monumento e conhecimento das histórias da segunda guerra mundial, mas que achavam totalmente irrelevante e, com frequência, até desconheciam solenemente o autor da referida obra.

Durante o meu percurso etnográfico este foi um ponto de grande tensão e de conflitos tanto internos como externos pois, durante um determinado episódio no campo em que acompanhei pessoalmente Marcos Konder numa visita guiada para um pequeno grupo de uma escola militar encontrei um casal que, nos vendo ali em grupo, se aproximou e um deles perguntou, espontaneamente, se o “Oscar Niemeyer costumava vir aqui também”?

Na ocasião, muito constrangido, questionei o casal o porquê daquela pergunta. Ao que eles trouxeram a informação, que havia sido passada por outra pessoa, de que “achavam ser uma obra do Oscar Niemeyer”, e por isso a pergunta. Konder interveio na sequência e, à sua maneira sempre gentil, discreta e tranquila, assim falou para o casal: “Sigam aqui com a gente para vocês saberem mais sobre o projeto do monumento e por quem ele foi realmente projetado. Vocês vão se surpreender”.

Então durante o trabalho de campo algumas pessoas me disseram que o monumento fora projetado por Oscar Niemeyer, por Lucio Costa, por Roberto Burle Marx, pelo mesmo arquiteto do Museu de Arte Moderna — MAM (não citaram o nome de Affonso Eduardo Reidy), pelo marechal Mascarenhas de Moraes, por Lota de Macedo Soares quando ela idealizou o Parque do Flamengo e até pelo ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda.

Com muita frequência Konder costumava narrar, com um certo tom de constrangimento, uma história na qual se viu envolvido pelo fato de a autoria do monumento ser atribuída ao arquiteto Oscar Niemeyer que, como sempre enfatizava, a despeito da sua merecida fama, não possuía nenhuma obra no Parque do Flamengo. Copio do meu caderno de campo algo que já ouvi dele, em diversas ocasiões, a seguinte história que resume e ilustra bem a situação:

“Uma vez eu estava em uma copiadora no centro da cidade fazendo cópias coloridas em grandes formatos do monumento para poder apresentá-las em uma exposição. Ao meu lado uma curiosa senhora puxou conversa comigo e assim me disse: “Na minha opinião esta é umas das obras mais bonitas do Oscar Niemeyer” (33).

Ato contínuo ele narra que gentilmente agradeceu à senhora pelo elogio à beleza da obra, mas a respondeu dizendo que não se tratava de uma obra de Niemeyer e sim de um arquiteto chamado Marcos Konder, o mesmo que ali estava na sua presença.

Esta pequena, mas significativa controvérsia sobre a autoria do monumento, dependendo de quem fosse o meu interlocutor era algo extremamente divertido de ouvir no campo, pois colocava em destaque este aspecto pouco disseminado para um público mais amplo (fora dos círculos de especialistas em arquitetura) que vai até a origem do processo de criação do monumento e de sua tão festejada arquitetura, mesmo para aqueles que não sabem ou não acham relevante saber quem a projetou. Que importância prática teria, portanto, fora dos limites por onde transitam a comunidade de arquitetos, por exemplo, a questão do amplo conhecimento da autoria do projeto arquitetônico do monumento?

E ainda sobre autoria, o próprio Konder, por exemplo, relativiza com muita frequência a participação de seu parceiro oficial, já falecido há muitos anos, o arquiteto Hélio Ribas Marinho no processo de concepção geral do monumento. Costumava narrar que convidou Hélio Ribas Marinho “apenas porque ele não daria conta sozinho dos prazos apertados e da parte logística e operacional que um concurso deste porte exigia na época”. Segundo narrava, quando Marinho entrou como colaborador, convidado por ele, no processo de elaboração do projeto, quase tudo já estaria previamente pensado por ele, restando ao parceiro uma colaboração de natureza mais prática e operacional que criativa, digamos assim (34).

Certamente, em parte desta controvérsia sobre a autoria do monumento aos pracinhas, devemos levar em consideração o fato objetivo e real de que muita gente também atribui ao arquiteto Oscar Niemeyer a autoria do referido projeto. Antes de retomar, na sequência, sobre esta questão, faço uma pequena digressão que enfatiza, pela ótica de Konder, o ponto que aqui apresento. Embora não tenha sido o foco da minha pesquisa, argumento que as controvérsias sobre a autoria do Parque do Flamengo também não são menores. Vejamos aqui o que narrou o próprio Marcos Konder em uma palestra que proferiu, no Monumento aos Pracinhas, em 16 de setembro de 1994, para alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro — FAU UFRJ:

“Esse projeto do Aterro foi feito pelo Affonso Eduardo Reidy. Há alguns dias atrás eu tive a oportunidade de esclarecer uma coisa que saiu no jornal e que dizia que o projeto do Aterro do Flamengo tinha sido de uma senhora chamada Carlota Macedo Soares. Não é verdade. A Sra. Carlota Macedo Soares foi designada pelo governador da época, o Carlos Lacerda, para dirigir as obras. Mas o projeto do Aterro, das pistas, dos pavilhões etc., foi projeto do arquiteto Affonso Eduardo Reidy. E nesse projeto, então, ficou fixado o local para o Museu de Arte Moderna; e os militares pediram que fosse designada uma área onde eles queriam implantar um monumento em homenagem aos brasileiros que tinham morrido na Itália, na campanha da Força Expedicionária Brasileira. Como vocês sabem, o Brasil mandou uma pequena força para a Itália, simbólica; mas de qualquer forma foi um esforço muito grande para um país como o Brasil, um país subdesenvolvido. Coitados dos pracinhas! Sem treinamento nenhum, sem roupas, sem alimentação adequada foram para lá sofrer os rigores do frio italiano e fizeram um bonito papel, mesmo que simbólico!” (35).

Mais famoso e bem-sucedido arquiteto brasileiro do século 20, Oscar Niemeyer era de uma geração anterior à de Konder e, também por isso, em muitas narrações de Marcos Konder sobre o arquiteto há um misto de admiração e, talvez por conta também desta situação sobre a autoria do monumento, indiferença em relação a certas posições adotadas por Niemeyer ao longo de sua longa carreira. Na mesma entrevista que me concedeu em 2007, Konder falou sobre a conflituosa relação entre Affonso Eduardo Reidy, arquiteto com quem ele trabalhou e conheceu mais intimamente, e Niemeyer:

“Aliás, aqui eu faço um corte para relatar um episódio que eu considero que foi muito traumático na vida do Reidy. Naquele tempo, antes de eu chegar para trabalhar com ele, houve um concurso que era o do Centro Técnico da Aeronáutica — CTA, ali em São José dos Campos. Foi um concurso fechado em que foram convidados cinco dos mais importantes escritórios do Brasil na época. O Oscar Niemeyer, os Irmãos Roberto, o Reidy e outros. E os arquitetos modernistas do Rio, naquela época, trabalhavam todos juntos numa grande sala em um edifício no centro da cidade. Os ambientes de trabalho de cada arquiteto eram divididos apenas por algumas baias que separavam os espaços. De maneira que cada um circulava livremente pelas pranchetas dos outros e podiam conhecer os projetos e as ideias dos demais colegas.

E o Oscar que, inegavelmente, é um arquiteto muito talentoso, mas que nunca foi de se aprofundar muito nas coisas, ao contrário do Reidy que, talvez até tivesse menos talento que o Oscar, mas que era muito estudioso. O Reidy então se dedicou com o seu tradicional profissionalismo a estudar de maneira muito aprofundada o programa, os organogramas e outras questões sobre o projeto do CTA. O Oscar ficou muito interessado nas ideias e nos estudos do Reidy e, vez por outra, passava nas pranchetas do Reidy para observar e também fazer perguntas ao Reidy sobre determinadas questões que ele havia estudado. Depois cada um foi pro seu canto desenvolver os seus projetos individualmente. Mas, talvez devido àquele convívio tão próximo entre os principais concorrentes do concurso, o fato é que os projetos realmente ficaram muito semelhantes, principalmente nos critérios de implantação. O Júri desclassificou a proposta do Reidy alegando que, de certa maneira, havia influências em relação à proposta apresentada pelo Oscar que, já naquele tempo, gozava de muito mais prestígio do que o Reidy. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Não estou dizendo que o Oscar tenha plagiado o Reidy, mas que ele conheceu toda a sistematização do projeto que o Reidy tinha proposto. E muitas coisas ele usou deste estudo na proposta que ele apresentou ao concurso do CTA. Na verdade esta história era meio que um tabu na vida do Reidy e ele, na sua sempre discreta elegância, ele era um gentleman, nunca ficava remoendo estes fatos. Mas, até onde eu sei, isto contribuiu muito para o gradativo afastamento do Oscar e do Reidy a partir daquele momento. Ao que sei eles nunca brigaram, mas este episódio foi um divisor de águas na relação que os dois passaram a ter dali em diante” (36).

Também, muito frequentemente, no meu trabalho de campo fui surpreendido com pessoas me questionando se, de fato, fora mesmo o arquiteto Oscar Niemeyer o autor do projeto arquitetônico do monumento. Na ocasião de uma das cerimônias de troca de guarda do monumento, em junho de 2012, encontrei por lá um senhor de 53 anos, identificado como João, militar, que foi bastante solícito em conversar comigo. Indaguei o porquê de estar ali e ele me disse que fora convidado especialmente pelo coronel Germano, então diretor do monumento, devido ao fato de ter doado ao museu do monumento uma série de DVDs e filmes da sua coleção particular sobre a Segunda Guerra Mundial. Estava visivelmente emocionado e ali começou a me dar uma verdadeira aula sobre a Segunda Guerra Mundial e também sobre o processo de repatriamento dos pracinhas (por ele chamado de “heróis da Pátria”) brasileiros que culminou na construção do monumento. Na sua fala, importante dizer, também evocou o “sonho do Marechal” (37), acessando os mitos de origem do monumento. Disse-me, com bastante segurança, que voltaria ali no dia 5 de agosto daquele ano para o evento de aniversário do monumento, que completou 52 anos em 2012, e “neste dia seria uma festa das três forças” (38).

E passou a narrar, com os olhos lacrimejando, que ali era um “lugar santo, um lugar sagrado, de gente que foi viva para a guerra e que voltou morta de lá”. Deixei que fosse falando mais sobre a sua percepção do monumento e, entre idas e vindas não muito lineares na sua narrativa, afirmou que:

“Somente por causa do zelo (39) e do cuidado dos militares é que o monumento está assim tão bonito e tão bem conservado (40) como se pode ver. O que não é cuidado pelos militares é um lixo e graças a Deus que há um batalhão aqui permanentemente tomando conta. Ali junto ao MAM você vai verificar como tudo está em péssimo estado de conservação e com manutenção precária. Isto aqui à noite é zona perigosa, zona de prostituição, de tráfico de drogas e cheia de vândalos. Ali no MAM tem muitas festas à noite e estas festas só trazem este tipo de gente. É um perigo este parque à noite e os militares cuidam para que isto seja sempre bem preservado” (41).

Por um momento ele deu uma pausa em sua fala e lhe perguntei se sabia quem fora a pessoa que fez o monumento do qual tanto se orgulhava e ele me disse categórico que fora o marechal Mascarenhas de Moraes, não sem antes também evocar de forma emocionada tanto a “inacreditável façanha que foi a participação do Brasil na guerra como o fato de o Marechal ter conseguido realizar o seu sonho de repatriar os pracinhas de Pistoia”. Em seguida lhe questionei sobre o projeto de arquitetura do monumento, se ele sabia quem o fizera e ele, mostrando muita hesitação e dúvida que não demonstrou ao falar do marechal Mascarenhas de Moraes, falou:

“Dizem por aí que foi mesmo o Oscar Niemeyer, mas hoje mesmo eu quero até tirar esta dúvida. Mas, sinceramente, acredito mesmo ter sido mesmo o Oscar Niemeyer” (42).

Perguntei então por que ele achava que o projeto arquitetônico do monumento fosse do arquiteto Oscar Niemeyer e ele me disse que era pela “grande perfeição dos traços. Como tudo que ele faz tem esta perfeição então as pessoas dizem que este monumento foi ele que fez também”.

Um aspecto também bastante controverso ainda sobre o tema da autoria do projeto do monumento era o diálogo conflituoso, à época do concurso, entre os arquitetos Marcos Konder e Hélio Ribas Marinho com o próprio marechal Mascarenhas de Moraes, este sim, o primeiro a sonhar e vislumbrar a possibilidade de repatriar os corpos do pracinhas mortos e já enterrados no Cemitério de Pistoia na Itália. No trabalho de campo, constantemente, eram evocadas algumas falas do Marechal, sobretudo a mais célebre em que, sumariamente, simbolizava “a razão de ser” (ou a autoria também?) do monumento que é a seguinte: “Eu os levei para o sacrifício; cabe-me trazê-los de volta”.

Konder também costumava narrar algumas investidas que, tanto ele quanto Marinho, fizeram diretamente sobre o marechal Mascarenhas de Moraes no intuito de mediar questões e decisões do projeto arquitetônico e fazer prevalecer suas ideias de autores que, não raro, eram desfiguradas e/ou descaracterizadas no decorrer do processo de execução das obras do Monumento aos Pracinhas. Creio que uma das falas mais significativas destas investidas sobre o Marechal foi a que Konder narrou, na sua já mencionada palestra proferida em 16 de setembro de 1994, para os alunos de arquitetura e urbanismo da FAU UFRJ, quando afirma:

“Quando nós ganhamos o concurso, nós chamamos esse escultor (Alfredo Ceschiatti) para colaborar conosco. Mas ele era meio vedete, meio metido a não dar muito ouvido ao que os outros diziam. Aí ele me fez um projeto duma ‘pietá’. Vocês sabem o que é uma ‘pietá? ‘Pietá’, na estatuária clássica, é a mãe sustentando o filho morrendo, é a Virgem Maria tirando Cristo da cruz. Tem a famosa ‘pietá’ de Michelangelo, não é? Aí ele fez uma ‘pietá’. Nós não gostamos nada da tal ‘pietá’, porque achamos que não combinava com o aspecto do monumento. E essa coisa foi rolando, rolando, e chegamos a fazer o contrato, ele fez o contrato. Os contratos foram separados: o nosso, de arquitetura, foi um contrato; o escultor teve o contrato dele, o pintor teve o contrato dele. Ele fez o contrato e nós não estávamos gostando; e já tinha mandado começar a fazer. Aí um dia eu virei pro Hélio Marinho e disse assim: Não aguento essa ‘pietá’! Não vai poder ter esse negócio aí no monumento! Aí falei com ele: Ó, nós vamos tirar essa ‘pietá’ de lá, não vai dar! Mas aí, como é que a gente vai fazer? Vamos falar diretamente com o Marechal, né? O Marechal era um velhinho, baixinho assim, ele era sério, mas muito gozador. A gente disse: olha, nós não estamos gostando daquilo ali. Em primeiro lugar, não está espelhando as três Forças Armadas. Aí nós entramos com uma demagogia desgraçada! (risos) Tá parecendo que ela tá sustentando um soldado do Exército, aí os outros vão reclamar! O pessoal da Marinha vai reclamar, o pessoal da Aeronáutica vai reclamar! Aí, ele ponderou e disse: “Tem razão. Então como é que faz?” Eu disse: vamos substituir! E não é que esse danado desse escultor recebeu uma grana pra começar a fazer o negócio e conseguiu um novo contrato? E fez esse projeto, que foi muito legal, e ainda ganhou duas vezes! (risos) Enfim, para ele foi bom, mas para nós também, porque ficou muito melhor do que com aquela ‘pietá’” (43).

A celebração da forma final, do êxito plástico de um projeto apoiado em uma determinada linguagem arquitetônica, é exemplarmente disseminada no que se refere a muitos edifícios ditos ícones da arquitetura moderna carioca, dentre os quais se enquadra o Monumento aos Pracinhas. Repositório ainda de um forte apelo memorialístico, o espaço do monumento engendra também diversas outras interpretações que buscam associar muitos dos seus aspectos formais que o constituem às memórias dos feitos heroicos dos pracinhas nos campos de batalha da Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Assim, os dois pilones paralelos que se elevam em mais de 30 metros de altura acima do nível do mar e que podem ser vistos de diferentes partes da cidade são relacionados por muitos ora como se “fossem duas mãos em direção aos céus em oração”, ora, mais jocosamente, com as “muletas dos pracinhas” que tiveram seus membros amputados durante a guerra.

A marquise em balanço que, do ponto de vista construtivo, demonstra a capacidade técnica da arquitetura moderna brasileira, é constantemente associada aos “braços fortes” (alusivo também ao slogan oficial do Exército Brasileiro, “Braço forte, mão amiga”) dos pracinhas que lutaram nos campos de batalha da Itália. O lago, com 70 metros de comprimento e escalonado em quatro níveis, gerando uma espécie de cascata de água que confere um ar de penumbra e de introspecção no interior do mausoléu, costuma ser associado “ao choro e às lágrimas das mães que perderam seus filhos na Guerra”.

Tudo ali aparece estabilizado e naturalizado para uma grande parte da comunidade de arquitetos como também para os técnicos empenhados em salvaguardar aquele patrimônio. Mas é necessário saber também sobre as constantes tensões cotidianas pelas quais passam os administradores do monumento, que têm a missão de garantir (numa “guerra” constante entre o monumento e o cotidiano, entre a purismo e o hibridismo, entre o espaço concebido e o espaço vivido, entre humanos e não humanos, entre o campo de experiências passadas e o horizonte de expectativas futuras) a atmosfera de aparente estabilidade dos materiais que, no mais de meio século desde a construção do monumento, mobilizam e absorvem diferentes memórias coletivas e narrativas que reelaboram e ressignificam constantemente o Monumento aos Pracinhas, tornando-o outro em cada nova mirada que sobre ele lançamos.

Por tudo isso e por tantos aprendizados proporcionados pelo monumento aos pracinhas e por seu arquiteto é que tenho muito a agradecer ao arquiteto Marcos Konder por suas contribuições. Descanse em paz mestre Konder e a sua obra seguirá por aqui nos desafiando a compreendê-la sob o prisma das novas dinâmicas urbanas e sociais desta sociedade certamente muito mais complexa do que aquela de quando o monumento fora erguido.

notas

1
BARBOSA, Antônio Agenor. Memórias e Fluxos de Vida no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial. Uma etnografia no Monumento aos Pracinhas no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, PPGSA IFCS UFRJ, 2017.

2
BARBOSA, Antônio Agenor; MATTOS, Juliana. Marcos Konder. Entrevista, São Paulo, ano 08, n. 029.02, Vitruvius, jan. 2007 <https://bit.ly/3K3H3XL>.

3
BARBOSA, Antônio Agenor. Homenagem aos mortos: missão e sonho militar na instalação e manutenção do Monumento aos Pracinhas. In GUIMARÃES, Roberta Sampaio; BARBOSA, Antônio Agenor; MOREIRA, Gabrielle da Costa (org.). Mediações Arquitetônicas. Redes Profissionais e práticas estatais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens, 2021.

4
Idem, ibidem.

5
Idem, ibidem.

6
ROCHA, Ricardo de Souza. A arquitetura moderna diante da esfinge ou a nova monumentalidade: uma análise do Monumento Nacional aos Mortos na Segunda Guerra Mundial, Rio de Janeiro. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 15, n. 2, São Paulo, dez. 2007, p. 151-167 <https://bit.ly/3LZ0Ysu>.

7
Idem, ibidem, p. 165.

8
BARBOSA, Antônio Agenor. Homenagem aos mortos: missão e sonho militar na instalação e manutenção do Monumento aos Pracinhas (op. cit.).

9
Idem, ibidem.

10
BARBOSA, Antônio Agenor de Melo. Memória, usos e apropriações do Monumento aos Pracinhas. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v. 21, n. 29, Belo Horizonte, PUC MG, 2º sem. 2014.

11
GOYENA, Alberto. A demolição em sete obras: patrimônio, arquitetura e esquecimento. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, IFCS PPGSA UFRJ, 2015; PATERMAN, Rachel. Monumento e Cotidiano: uma perspectiva etnográfica sobre o Palácio Gustavo Capanema. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, PPGSA IFCS UFRJ, 2012.

12
Bruno Latour sugere que trabalhemos as intuições nas ciências sociais a partir de cinco grandes incertezas: 1) a natureza dos grupos (onde há formas contraditórias de se atribuir identidade aos atores); 2) a natureza das ações (onde em cada ação existe toda uma variedade de agentes que promovem os deslocamentos dos objetivos iniciais); 3) a natureza dos objetos (o tipo de agências que participa das interações está sempre aberto); 4) a natureza dos fatos (os vínculos das ciências naturais com o restante da sociedade são constantemente fonte de controvérsias); 5) o tipo de estudo sob o rótulo de ciência social, pois nunca fica completamente claro o sentido exato de dizer que as ciências sociais são empíricas. LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador, Edufba, 2012, p. 42.

13
Idem, ibidem.

14
PEREC, George. Espèces d'espaces. Paris, Galilée, 1974.

15
GOYENA, Alberto. Op. cit., p. 22.

16
INGOLD, Tim. Building, dwelling, living: how animals and people make themselves at home in the world. In INGOLD, Tim. The perception of the environment: essays in livelihood, dwelling and skill. London, Routledge, 2000, p. 172-188.

17
BARBOSA, Antônio Agenor. Homenagem aos mortos: missão e sonho militar na instalação e manutenção do Monumento aos Pracinhas (op. cit.).

18
LATOUR, Bruno. Op. cit.

19
KONDER NETTO, Marcos. Dimensões. Rio de Janeiro, Ibis Libris, 2005.

20
Idem, ibidem, p. 7.

21
Este poema, na página 73 do seu livro, ainda apresenta o seguinte subtítulo: “para eventuais leitores arquitetos ou estudantes de arquitetura”. Idem, ibidem, p. 7.

22
BARBOSA, Antônio Agenor; MATTOS, Juliana. Marcos Konder. Op. cit.

23
KONDER NETTO, Marcos. Op. cit., p. 24-25.

24
Idem, ibidem, p. 67.

25
BARBOSA, Antônio Agenor. Homenagem aos mortos: missão e sonho militar na instalação e manutenção do Monumento aos Pracinhas (op. cit.).

26
Crítico de arte de destacada atuação no jornal carioca Correio da Manhã, Jayme Maurício Rodrigues Siqueira nasceu em Porto Alegre RS. Ainda no Sul, foi aluno do Liceu de Artes e Ofícios e, depois, quando se mudou para Belo Horizonte MG, estudou pintura com Alberto da Veiga Guignard. Ao fixar residência no Rio de Janeiro, em 1952, aproximou-se do designer gráfico e gravador Tomás Santa Rosa, de quem se tornou amigo. Jayme Maurício iniciou sua carreira de jornalista no Correio da Manhã, em 1950, onde escreveu sobre teatro, música, rádio, televisão, cinema e balé. Sua atuação no cenário cultural do Rio foi além da colaboração na imprensa: participou com entusiasmo do movimento que, em 1951, buscava uma sede definitiva para o Museu de Arte Moderna — MAM, criado em 1948. O projeto, que contou com o apoio de Paulo Bittencourt e de sua mulher, Niomar Moniz Sodré, donos do Correio da Manhã, teve em Jayme Maurício, a partir de 1952, um de seus vorazes batalhadores. Nas novas instalações do MAM, Jayme Maurício passou a promover exposições de artistas como Manabu Mabe, Djanira e Hélio Oiticica. Morreu em 1997, no Rio de Janeiro <https://bit.ly/3tg9FWM>.

27
BARBOSA, Antônio Agenor. Homenagem aos mortos: missão e sonho militar na instalação e manutenção do Monumento aos Pracinhas (op. cit.).

28
Autor do Projeto do Memorial a Estácio de Sá, fundador da cidade, e que está situado no parque do Flamengo.

29
Conforme reportagem do Jornal O Globo, publicada em 23 de janeiro de 2011, caderno RIO: “Revelado pelo Globo no último domingo, o projeto encomendado a Oscar Niemeyer de um grande teatro no Parque do Flamengo ‘é impossível de ser aprovado’ se for respeitado o que está estabelecido no decreto que tombou a área, em 1965. A afirmação é do superintendente no Rio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan, Carlos Fernando Andrade. O decreto especifica e enumera os equipamentos que o parque pode conter. Já que não existe qualquer teatro previsto, não há, na instância técnica do Iphan, como aprovar — diz o superintendente. Segundo ele, o grupo BFG, que controla o Porcão e fez a encomenda ao arquiteto de um teatro para ser vizinho à churrascaria, poderá fazer uma consulta prévia ao Iphan, como é o procedimento padrão. No entanto, diz Andrade, a legislação é muito clara ao determinar as áreas do Aterro do Flamengo em que podem surgir edificações e o que ainda poderia ser erguido no parque: uma biblioteca e um aquário, por exemplo. Naquela área (para onde o teatro foi concebido), está previsto um restaurante, que já existe. Um teatro não está previsto — ratifica ele, lembrando que qualquer consulta será respondida pelo instituto. O projeto de Niemeyer, que está na edição da revista “Nosso Caminho” a ser lançada em 15 de dezembro, dia do 104º aniversário do arquiteto, prevê um Teatro Musical Rio’s — alusão ao nome do primeiro restaurante do local, mais tarde transformado em Porcão Rio’s — com 2 mil lugares na plateia e mais 500 no balcão, além de camarotes. O acesso seria por rampas em torno de uma grande cúpula. No térreo haveria um auditório e um salão de exposições. VIANNA, Luiz Fernando. Legislação impede projeto de Niemeyer no Aterro, diz Iphan Decreto de tombamento não prevê um teatro no Parque do Flamengo. O Globo, Rio de Janeiro, 23 nov. 2011 <https://glo.bo/3JYfqiD>.

30
ROCHA, Ricardo de Souza. Op. cit., p. 155.

31
BARBOSA, Antônio Agenor. Homenagem aos mortos: missão e sonho militar na instalação e manutenção do Monumento aos Pracinhas (op. cit.).

32
Na verdade sobre os arquitetos do monumento para ser mais preciso. Ainda que Konder relativizasse e até minimizasse a participação efetiva de seu parceiro Hélio Ribas Marinho, é o nome de ambos que consta em todos os registros históricos oficiais como autores do projeto do monumento. Inclusive a decisão da dupla de que os nomes dos autores fossem sempre destacados em ordem alfabética fazendo com que, portanto, Hélio Ribas Marinho aparecesse sempre antes de Marco Konder Netto.

33
BARBOSA, Antônio Agenor. Homenagem aos mortos: missão e sonho militar na instalação e manutenção do Monumento aos Pracinhas (op. cit.).

34
Na história da arquitetura moderna brasileira está ainda por se estudar melhor estas parcerias e suas reais atribuições durante os processos de elaboração dos projetos arquitetônicos. O caso mais emblemático é, sem dúvida, o do Projeto do Ministério da Educação e Saúde que, sob a consultoria de Le Corbusier e tendo Lucio Costa como líder da equipe que chegou a envolver, além do próprio Lucio Costa, outros cinco arquitetos, a saber: Carlos Leão, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcellos e Jorge Machado Moreira. Ver PATERMAN, Rachel. Op. cit.

35
BARBOSA, Antônio Agenor. Homenagem aos mortos: missão e sonho militar na instalação e manutenção do Monumento aos Pracinhas (op. cit.).

36
Idem, ibidem.

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BARBOSA, Antônio Agenor. Homenagem aos mortos: missão e sonho militar na instalação e manutenção do Monumento aos Pracinhas (op. cit.).

38
Assim dito por ele: Exército Brasileiro, Marinha do Brasil e Força Aérea Brasileira.

39
A categoria “zelo”, de forma recorrente, é mobilizada tanto pelos militares que administram o monumento quanto por parte de um determinado público que o visita. Tal categoria é, comumente, evocada para fazer uma oposição diametral entre o monumento e o seu entorno no parque do Flamengo.

40
Não era esta, porém, a percepção interna de alguns funcionários militares da administração do monumento. Um destes informantes me disse que existia um grande projeto pronto há mais de dois anos em que o valor para fazer uma grande restauração urgente e necessária no monumento estaria em torno de um milhão de reais. Mas que, segundo ele, dificilmente o governo iria liberar este dinheiro, pois não é prioridade nas demandas das Forças Armadas. Há problemas sérios de infiltração em toda a parte edificada do monumento, de impermeabilização, problemas estruturais, pastilhas, azulejos e outros revestimentos soltos, dois elevadores quebrados, placas de granito e de mármore quebradas, problemas de instalação elétrica. Também me revelou que há certa dificuldade técnica de manter o jardim interno do monumento etc. Isto se revelava, por exemplo, no fato de que foi plantada uma palmeira imperial no referido jardim. Trata-se de um equívoco, segundo o próprio informante, e também era esta a opinião do arquiteto Marcos Konder. Para o arquiteto a referida palmeira, ao crescer, configurar-se-á num elemento vertical que vai atrapalhar e comprometer a integridade do conjunto arquitetônico por ele projetado. Enfim, mesmo os militares (ao contrário do que o senso comum opera em relação a eles por acharem que têm a capacidade de exercer grande controle sobre tudo que vigiam e guardam) enfrentam sérios problemas cotidianos na administração do monumento.

41
BARBOSA, Antônio Agenor. Homenagem aos mortos: missão e sonho militar na instalação e manutenção do Monumento aos Pracinhas (op. cit.).

42
Idem, ibidem.

43
Idem, ibidem. Grifo do autor.

sobre o autor

Antônio Agenor Barbosa é professor adjunto no DPHT FAU UFJF. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Santa Úrsula, é mestre em Urbanismo pelo Prourb UFRJ e doutor em Antropologia Cultural pelo PPGSA IFCS UFRJ e Com pós-doutorado pelo PPCIS UERJ. Pesquisador associado do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Espaço, Simbolismo e Poder (NESP UFRJ). Co-organizador do livro Mediações Arquitetônicas: Redes profissionais e práticas estatais no Rio de Janeiro (Papéis Selvagens, 2021). Tem experiência de pesquisa na área de Antropologia da Arquitetura e do Espaço e em Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em História e Teoria e Crítica da Arquitetura e do Urbanismo.

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