Carlos Raúl Villanueva nasceu na Inglaterra em 1900; seu pai era diplomata, seu avô médico e apaixonado pela história. Sem outros antecedentes na família, seu irmão mais velho Marcel decide estudar Arquitetura, na Escola de Belas Artes de Paris. Ao mesmo tempo Carlos Raúl segue seus passos e entra na mesma escola; a partir desse momento a Arquitetura passaria a ser a paixão de sua vida. Logo depois de concluir seus estudos, os irmãos tomam caminhos muito diferentes: Marcel exercerá a arquitetura nos Estados Unidos, enquanto Carlos Raúl decide volta à Venezuela e começar ali sua vida profissional.
Por volta de 1920, quando se inicia sua formação acadêmica, estavam se organizando na Europa as vanguardas artísticas que posteriormente lhe seriam muito próximas. No entanto, nesses anos a Escola de Belas Artes de Paris permaneceria fiel à sua tradição acadêmica; e é dessa forma como a formação de Villanueva se realizará dentro dos cânones dessa tradição. Entre as influências que recebeu Villanueva durante seus anos formativos cabe mencionar o arquiteto Auguste Perret, que foi seu mestre e amigo. Graças a ele, o jovem estudante adquiriu seus primeiros conhecimentos sobre o uso de um novo sistema construtivo, o concreto armado, do qual Perret é pioneiro. Esse material mais tarde terá um papel fundamental em sua arquitetura.
Em 1929, depois de concluir seus estudos, e trabalhar brevemente na França e Estados Unidos, Villanueva chega à Venezuela. Na Venezuela de então as obras civis eram realizadas graças ao ofício dos engenheiros, e pouco se sabia do trabalho dos arquitetos. No entanto, a situação mudaria; a arquitetura venezuelana estava por abrir-se pela mão de vários arquitetos, que como Villanueva, tinham se formado no exterior. A cidade de Caracas, com sua violenta luz e sua densa vegetação, converteria-se no cenário onde se realizaria a maioria de suas obras.
“O arquiteto”, como gostava de autodenominar-se, concebe e realiza na Venezuela uma obra moderna de grande transcendência. Tal é seu valor que recentemente a Cidade Universitária de Caracas, um de seus projetos mais emblemáticos, foi declarada patrimônio da humanidade pela Unesco. Esse reconhecimento foi motivo de grande satisfação entre os conhecedores da obra desse arquiteto latino-americano, pois essa singular obra tinha passado inadvertida, apesar de sua qualidade e das valiosas obras de arte que abriga. A Cidade Universitária de Caracas reúne valores plásticos e arquitetônicos de significação indubitável até então ignorados e apenas resenhados a nível mundial. Alguns críticos de reconhecido prestígio como Benevolo, Lampugnani, Pevsner, e mais recentemente Curtis, Frampton e Montaner se referiram mesmo que brevemente a essa obra. No entanto, os editoriais dedicados à divulgação da arquitetura (que na sua maioria são editoras européias, norte-americanas e mais recentemente japonesas), evitam, salvo algumas poucas exceções, a arquitetura dos países periféricos, ou seja, aquela que se realiza fora dos circuitos consagrados. Dali a surpresa que causa a Cidade Universitária aos visitantes estrangeiros e que se deve, sem dúvida, à escassa difusão das obras de Villanueva fora da Venezuela.
A arquitetura de Villanueva se encontra imersa no movimento moderno, durante anos estuda com fervor os escritos e a obra de Lê Corbusier, a quem conheceu pessoalmente: “Nas oportunidades que tive a honra de encontrá-lo e conversar com ele, saí sempre impressionado pela clareza de seus conceitos” (1). Entre outras coisas o arquiteto venezuelano admirava o talento de seu colega francês para enfrentar a adversidade. Villanueva também segue com atenção os postulados e as obras da vanguarda européia, que se desenvolveu entre os anos 1917 e 1933, período que Alison e Peter Smithson descreveriam como “o período heróico da arquitetura moderna”. Nesse tempo surgiam as propostas dos neo-plasticistas holandeses, a Bauhaus, os construtivistas russos, entre outros. Cada movimento emergia com assombrosa radicalidade. No entanto, as guerras impediram que na Europa as propostas vanguardistas fossem colocadas em prática. Posteriormente, a escassez e as condições econômicas retardaram o processo de reconstrução; No campo da arquitetura os esforços se orientaram ao mais urgente. Os vanguardistas não tiveram outro remédio a não ser postergar a realização de suas idéias. Por exemplo, alguns dos fundadores da Bauhaus se viram obrigados a emigrar, principalmente para a América. Os construtivistas russos tiveram que trabalhar sob a tutela estatal e suas ilusões de que a arquitetura era um meio de transformação da sociedade, viram-se afogadas pelo realismo socialista. Em Paris, pese a presença de Lê Corbusier, o moderno incidiu muito pouco na vida da cidade e edifícios emblemáticos como a Maison de Verre de Chareau, a Villa Roche e outros edifícios de Le Corbusier, passam praticamente desapercebidos na cidade.
Na América Latina, pelo contrário, a modernidade entrou intensamente, para bem ou paramal, como bem indica Sybil Molí-Nagy, filha do famoso Lazlo Moholy-Nagy, da Bauhaus, a primeira a realizar uma monografía de Villanueva em 1964, referindo-se à modernidade: “Desde os anos cincuenta na América Latina (especialmente México, Brasil e Venezuela) a arquitetura alcançou um lugar proeminente, com base nas inteligentes variantes trazidas a uma nova revolução no campo do desenho que na Europa começara trinta anos antes. Os arquitetos vanguardistas não se contentaram com a realização de obras isoladas”.(2) A modernidade chegava tarde à América Latina porém encontraria um território com possibilidades inimagináveis.
Antes de falar da Cidade Universitária é necessário comentar as circunstâncias que permitiram a construção dessa obra. No fim dos quarenta, a população de Caracas começa a crescer. O fenômeno da migração do campo à cidade e as políticas de imigração promovidas pelo governo (Venezuela recebeu durante os anos cinqüenta grandes contingentes de emigrantes europeus) originou acelerado crescimento e uma demanda crescente de obras civis que propiciou o auge da arquitetura. Paralelamente, a Venezuela começava a desfrutar da bonança econômica que trouxe o petróleo. A partir desse momento se inicia um período no qual se realizarão grandes obras de infra-estrutura e arquitetura. Os arquitetos terão a oportunidade de realizar projetos de dimensões consideráveis. Carlos Raúl Villanueva encontrará nesse auge seu momento e seu lugar.
A realização de uma obra da magnitude da Cidade Universitária teria sido impossível sem os recursos que vieram da exploração petrolífera. A idéia de uma cidade universitária totalmente nova tem antecedentes em outras cidades universitárias da América Latina; na do Rio de Janeiro, em 1936, com um primeiro plano diretor de Le Corbusier, que chega no Brasil com a esperança de realizar grandes projetos que no final tornaram-se decepções. E na da Cidade de México, aonde se tenta com resultados muito distintos combinar arte e arquitetura e que se desenvolveu paralelamente à de Caracas. Villanueva teve a sorte de poder realizar, ele mesmo, praticamente a totalidade da obra. Foram vinte e cinco anos de dedicação contínua. O legado é considerável: uns quarenta edifícios, incluindo alguns de indiscutível complexidade como o da Aula Magna e a Praça Coberta. Estes espaços reúnem uma coleção de arte moderna sem igual, colocada em cena de maneira exemplar e única, aonde, ao final, o mais fino trabalho de integração de obras e espaços toma forma definitiva. A Cidade Universitária de Caracas é um testemunho inédito, onde se se torna realidade a integração das artes e se conjuga modernidade e trópico em uma aberta e triunfante totalidade.
Villanueva convocou artistas plásticos estrangeiros do mais alto nível, que aceitaram a convocatória de boa vontade e se envolveram no projeto, com curiosidade alguns, com incredulidade outros. Não estava demasiado claro como esta obra tão incrível poderia ser realizada em um país para a maioria deles desconhecido.
Por outro lado, temos que mencionar que a Venezuela vivia naquele momento um período de ditadura militar, com o conseqüente clima de ausência de liberdades e repressão.
Ainda que Villanueva tenha começado a Cidade Universitária com o governo democrático que antecedeu a ditadura, não vê interrompido seu trabalho com o advento do governo militar. A cidade universitária foi incluída dentro do vasto plano de obras públicas, que o novo governo empreenderia como uma maneira de obter reconhecimento e prestígio. Não havia tempo para dúvidas; Villanueva teve que se submeter a duras exigências para realizar esta obra titânica. A pressão era uma constante, a obra do conjunto central deveria estar terminada uma data previamente marcada e parecia impossível conseguir o feito. Villanueva cumpriu com o prazo estabelecido, o que lhe valeu o apelido de “o Diabo”, que carinhosamente lhe deu Alexander Calder, o escultor com quem fez uma grande amizade durante sua participação no projeto. Afortunadamente, o arquiteto tinha a virtude de superar os problemas que dia a dia a situação venezuelana lhe impunha.
Mesmo que os postulados das vanguardas européias gravitem no pensamento de Villanueva, até 1934 seu trabalho segue as pautas da escola de Belas Artes de Paris.
Finalmente teve a oportunidade de por em prática suas já assimiladas idéias modernas com a construção de sua própria casa. O jovem arquiteto projeta uma casa tão radical que foi incompatível com a vida familiar, como nos comenta Paulina, filha do mestre. Era mais “um manifesto” do que uma casa. A extrema fidelidade aos preceitos modernos, permitiu que aspectos importantes, como o climático, ficassem sem solução. O fato de que família finalmente tivesse que deixar a casa chamada “Os Manolos”, significou toda uma lição para Villanueva. Dali em diante, o manejo das condições do trópico será essencial em seu trabalho.
O clima de Caracas, ainda que quente por sua latitude tropical, é muito estável. Sua altura, 900 metros acima do nível do mar, modera o calor no vale. Pode-se dizer que Caracas tem um clima ideal. As temperaturas variam muito pouco ao longo do ano e com a adequada ventilação, não é necessário fechar os espaços para aquecer ou esfriar o ambiente. Em conseqüência, os espaços não têm que estar isolados do exterior. Esta premissa oferece uma maior liberdade ao arquiteto: a barreira entre o exterior e o interior não é indispensável e aceita muitas interpretações. Um teto generoso, grandes beirais, seriam elementos suficientes para resguardar-se das chuvas torrenciais e do sol tropical. Os fechamentos verticais poderiam ser utilizados com leveza, de acordo com as intenções do arquiteto. Em síntese, se abre a possibilidade de oferecer espaços que vinculem o espaço interior e o exterior, que podemos chamar espaços intermediários. Por outro lado, a vegetação no trópico permite a constante presença do verde ao longo do ano. O verde prevalece, mesmo que cada variedade tenha seus ciclos; enquanto uns perdem as folhas, outros florescem e renovam seu verde e outros dão frutos. A vegetação intensa sob a luz seria para Villanueva um elemento a mais na composição. Seu admirado Roberto Burle Marx, paisagista brasileiro, lhe ofereceu toda uma lição, e graças a ele Villanueva reconheceu nestas matérias verdes um vigor e uma força desconhecidos. Segundo Villanueva, Burle Marx foi o primeiro que tentou uma integração das artes e em suas composições paisagísticas inventou um novo caminho na arte de fazer jardins. Este paisagista inclui em suas composições elementos arquitetônicos e plásticos com uma estética de franca modernidade, que revolucionam e deixam em Caracas um legado, o Parque do Leste de Caracas, que ainda é um exemplo para os arquitetos e paisagistas venezuelanos.
A Cidade Universitária se desenvolveu em duas fases distintas. Uma primeira fase, que começou em 1944, que correspondia às noções clássicas que caracterizaram as obras do primeiro Villanueva. O Hospital Clínico e os Institutos de Anatomia e Medicina Experimental pertencem a esta etapa.
Nos anos cinqüenta, Villanueva sentiu a necessidade de realizar mudanças importantes na obra. De alguma maneira, vislumbrou que era o momento de mudar de rumo. O deslocamento de conceitos representou uma mudança total; o novo plano diretor contradizia os eixos de simetria planejados na primeira versão. Villanueva propõe, como diferença com o anterior, uma breve e larga estrutura que cruza o eixo de composição inicial. Este elemento mínimo, de estrutura simples de concreto à vista que alterna tramas de bloco fechado com vazios, separa e conecta a primeira e segunda Cidade Universitária. Com a colocação de ardósia em algumas paredes deste passeio especialmente largo, se propõe um uso de aula informal para este espaço. O Passeio Central, como é conhecido, separa o mundo clássico do moderno.
Daí em diante toda a experiência arquitetônica mudará. O Conjunto Central, coração da cidade universitária, ocupará agora o centro do projeto, ligando-se Norte-Sul, perpendicularmente ao eixo anterior, rompendo com as simetrias prévias. O conjunto central está formado pelo Edifício da Reitoria, que junto com outros edifícios conforma a Praça da Reitoria, espaço público de entrada. Em sucessão até o interior, continua a Praça Coberta, o Paraninfo, a Aula Magna e a Sala de Concertos (com entrada própria até o Oeste) e o Edifício da Biblioteca. O conjunto funciona como um todo unitário graças ao singular uso do espaço como articulador dos elementos dispostos de forma livre, cada um dos quais obedece às suas próprias leis, o que gera sistemas estruturais distintos.
O teto destes espaços, ainda que fragmentado, garante a continuidade do conjunto, enlaçando as distintas coberturas mediante o uso de sobreposições soltas. Este recurso permitirá a Villanueva resolver os encontros das distintas tramas estruturais, mudar de altura e articular os distintos edifícios. Na praça coberta estas quebras deixam filetes de luz, que complementam e atenuam a força da luz lateral. Os pátios, a vegetação e as obras foram cuidadosamente dispostos, convertendo-se a Praça Coberta no espaço social por excelência da universidade.
Ao referir-se ao Conjunto Central ou coração de cidade universitária Oscar Tenreiro, em seu texto Os espaços públicos em Carlos Raúl Villanueva, afirma: “Aqui Villanueva assume dois tipos de compromisso: o de refutar-se a si mesmo, ao violar as pautas estabelecidas em seu primeiro Plano, e o de explorar um modo de agrupamento, onde as direções das retículas estruturais, a sucessão dos espaços públicos e as conexões entre os edifícios, se aliena de toda referência oriunda da arquitetura internacional, se convertendo em reflexão pessoal” (3).
Ao se andar pela Cidade Universitária se pode apreciar a compreensão que tinha Villanueva do tropical, que se manifesta com profusão nos espaços intermediários, espaços que se abrem ou se fecham com tramas de blocos ocos, à maneira de gelosias, segundo seu lugar ou função. Villanueva compreende agora o ambiental em sua totalidade e potencializa sua singularidade. No contínuo fluir de espaços abertos, ou semi-abertos, fechados por paredes trabalhadas ou verdes, cobertos ou parcialmente ensombrecidos, as possibilidades do clima se convertem em tema, graças ao versátil manejo de Villanueva, sua gramática distinta, moderna e tropical.
Os postulados mais fortes e mais dogmáticos, que tinham como fonte original o pensamento de Le Corbusier, se matizam, se transformam e se particularizam em Villanueva, na medida em que os novos ingredientes do lugar tomam parte de uma nova originalidade. Ele o manifesta da seguinte maneira: “Temos que admitir a universalidade de um fato: não se constrói nada a partir da nada. É óbvio. Sempre se constrói a partir de algo, de alguma tradição ou de várias delas, ainda quando são contraditórias, ainda quando são recentes e precárias" (4).
Esta vontade de somar e integrar se faz evidente em um aspecto que talvez seja o mais conhecido da obra de Villanueva, a integração entre arte e arquitetura. Foi este aspecto o que motivou, sem sobra de dúvidas, a declaração que converte a Cidade Universitária em patrimônio moderno da humanidade. Sua obra foi reconhecida como síntese das artes, ainda que ele prefira falar de integração. Síntese para ele era a obra de Antonio Gaudí: “A arquitetura de Gaudí é interna e externamente escultura e pintura”. Um só criador, arquiteto, engenheiro, escultor e pintor, realizando uma só unidade.
Diferentemente, Villanueva aspirava conseguir, atuando como arquiteto, uma integração com obras de outros artistas, que por sua vez deveriam participar do propósito comum; em suas palavras queria conseguir “a criação de um novo organismo arquitetônico-escultórico-pictórico, aonde não se verifique a menor indecisão, aonde não se note nenhuma fresta entre as distintas expressões. O necessário de cada uma dessas expressões plásticas deve ser irremediavelmente evidente” (5).
Acreditava que as artes eram os grandes testemunhos culturais de uma época. Na Cidade Universitária tem a oportunidade de mostrar “o espírito de seu tempo” e é este o motivo que as obras foram encomendadas a artistas preferivelmente não figurativos. Convida a participar grandes artistas plásticos formando uma coleção de arte única, permanente e aberta. “O ambiente natural das obras de arte são praças, os jardins, os edifícios públicos, as fábricas, os aeroportos: todos os lugares aonde o homem perceba o outro homem como a um companheiro, como a um associado, como a uma mão que ajuda, como a uma esperança e não como a flor murcha do isolamento e da indiferença...” (6). A Cidade Universitária é, por sua vez, a obra de arte de Villanueva. Esta vontade de integração entre arte e arquitetura no espaço público marcou a diferença.
A fluidez espacial e a liberdade do espaço na Praça Coberta podem dar ao visitante desprevenido a impressão de acaso. Nada mais longínquo do acaso do que esta proposta: um olhar rápido na planta do conjunto central permite verificar a precisão de cada uma destas ilhas de luz, do abrigar cada uma das obras de arte, a fina maneira de articular os distintos elementos do conjunto e definir os percursos. Paulina Villanueva os descreve como “movimentos”, aonde se vislumbra um Villanueva com uma idéia musical, que articula notas em uma seqüência, e que na sua arquitetura são espaços, obras de arte, vegetação e luz. Nesta arquitetura, a luz e a sombra cumprem um papel fundamental e encontram sua maior nitidez na Praça Coberta, aonde o percurso alcança sua máxima frescura graças ao suave ir e vir de correntes de ar que se produzem neste espaço mágico. Destaca a presença da cor dos murais, obras primas de Ferdinand Léger, de Víctor Vasarely e do venezuelano Pascual Navarro, implantados com seu caráter particular em suas ilhas de luz e forte vegetação. Destacam-se a precisa implantação de Amphion de Henri Laurens, que recebe aos pedestres entre plataformas no acesso Leste, e o O pastor de nuvens de Jean Arp, que ocupa um espaço de honra na ante-sala da Aula Magna.
Tudo se encontra fixado de uma forma que parece natural e realizado sem esforço, mas que, no entanto, responde a um cuidadoso processo reflexivo e de comunhão com os artistas, que só se deteria ao encontrar o espaço preciso para cada obra e a obra precisa para cada espaço. A Praça Coberta é ante-sala, lugar de encontro e museu aberto que em um único acorde alcança seu maior virtuosismo. Se sente uma misteriosa leveza no ar e uma certeza: é talvez aqui aonde o caminhante habitual, o distraído ou o entendido, se dá conta e compreende. Como diz Sybil Moholy-Nagy, quando nos relata que Villanueva foi requerido em muitas ocasiões a falar desta integração: “sua visão no pode ser explicada em teoria. Corresponde a um processo interior de seleção intuitiva que percebe cada escultura rodeada de seu espaço arquitetônico e cada uma de suas criações espaciais enaltecida e definida por uma obra de arte. A intuição perceptiva convence pelos sentidos ou não convence de maneira alguma” (7), prescindindo de maiores explicações. A Praça Coberta é o auge do aberto, seu interior guarda um tesouro de cores, a Aula Magna, radiante, recoberta por nuvens, iluminada graças ao gênio de Calder no mais afortunado encontro. Os pratilhos voadores, como os chamou Calder, coroam o espaço mais emotivo da universidade. Pratilhos voadores pode ser um nome muito apropriado para esta obra, mas as pessoas da universidade têm preferido chamá-las de As nuvens de Calder.
A participação de Calder na Aula Magna foi uma experiência única, tanto para Villanueva, como para os que participaram da obra, e a seguir para todos aqueles que desde então temos admirado esta irrepietível comunhão. Também para o artista foi motivo de satisfação; “é este o melhor momento de minha arte”, afirmou Calder.
A Biblioteca Central com a presença do soberbo vitral de Ferdinand Lèger, é outra dessas magníficas coincidências da cidade universitária. O vitral de dois alturas fecha um espaço relativamente pequeno, que antecede as salas de leitura. É precisamente essa disparidade, entre o tamanho de obra e espaço, o que gera a leve tensão e mútua dependência que se percebe entre obra e espaço.
A vocação de integrar arte e arquitetura, que temos descrito, continuaria presente durante a execução dos edifícios seguintes. Em cada passeio, auditório, bar, biblioteca, ou encontro de caminhos, Villanueva tem a oportunidade de experimentar. Assim se sucedem entradas de luz, paredes tramadas, jardins, pátios interiores. Os edifícios altos, serão a ocasião para desenvolver quebra-sóis para a proteção de suas fachadas. Os auditórios e bibliotecas, e, no caso da Faculdade de Arquitetura, a Sala de Exposições, são parte dos múltiplos exemplos desta particular modernidade que a cada passo surpreende. Suas propostas de aulas abertas no exterior, que se davam no jardim, fazem crer que não há barreiras. Ainda se pode observar grupos deitados nos jardins e na Praça Coberta. Esta noção de liberdade, que se respira quando se transita pelas ruas e praças fechadas, é uma forma de se dar o máximo aproveitamento à liberdade que este clima oferece.
Dentro do mundo da arquitetura venezuelana, a figura de Carlos Raúl Villanueva é sem dúvida a primeira referência. Tem Villanueva o mérito de situar na Venezuela uma das experiências mais importantes da modernidade. Sua obra é extensa; existem 135 obras catalogadas. Assim mesmo teve uma intensa vida como docente.
Falar de tradição na arquitetura de Venezuela sem falar de Villanueva seria difícil, pois se existe hoje uma tradição é a que ele nos legou. A existência da Cidade Universitária em nossa cidade é uma grande lição, não só por sua qualidade, mas também pela coragem que teve para seguir adiante nessas condições. Porque Villanueva teve que enfrentar além das dificuldades da construção, os problemas e as tensões derivados do fato que seu cliente foi o governo militar. Igualmente teve que enfrentar as críticas de seus colegas e de alguns artistas venezuelanos, que se negaram a colaborar no projeto por razões políticas. Villanueva foi perseverante e se manteve firme frente às adversidades. Estava seguro de que este projeto merecia sua dedicação e, graças à atitude que adotou frente a uma situação ideologicamente condenável, as gerações seguintes herdou o conjunto urbano mais importante de Caracas.
Nos âmbitos universitários, especialmente na Faculdade de Arquitetura, havia uma grande preocupação pela escassa difusão desta e outras obras de Villanueva. A recente declaração da Cidade Universitária como patrimônio da humanidade provocou um novo interesse pela cidade universitária e por Villanueva. Atualmente estão sendo tentadas ajudas para garantir sua conservação. Por outro lado, a situação de desconhecimento começa a mudar; por exemplo, aqui na Espanha, se publicou recentemente o livro de Paulina, filha de Villanueva. Este livro, que coincide com a celebração do centenário do nascimento do arquiteto, é o primeiro da série Mestres Latino-americanos da Arquitetura da Tanais Arquitectura, associado com várias editoras. Ainda neste mesmo ano de 2000 foram realizadas exposições e conferências em Londres, Boston, Veneza e São Paulo.
Villanueva redige sua arquitetura com insumos variados, uns e outros vão se somando até que se manifestam nesta estrondosa afirmação, aonde não falta nem sobra nada. A forma particular com que coordena as “peças” ou elementos arquitetônicos de elaborada singularidade, conformando um conjunto, a maneira como resolve os encontros entre elementos distintos, sem comprometer sua estrutura particular, o uso do concreto armado em contraste com um uso intensivo da cor, a presença contínua da arte, a utilização das tramas e quebra-sóis para amenizar a luz e permitir a ventilação, a fluidez dos percursos através das plantas baixas enlaçadas pelos passeios cobertos e a forte presença da vegetação convertem a visita em uma experiência múltipla. Em poucas palavras, se pode afirmar que a obra de Villanueva traz suficientes elementos para a arquitetura venezuelana, assegurando que sua obra seja um fator de transformação da tradição arquitetônica do país. Na Cidade Universitária, Villanueva registra uma modernidade singular, como dizia Sybil Moholy-Nagy, uma “variante”, da arquitetura moderna, neste caso tropical.
Se de algo podemos estar seguros é que a arquitetura de qualidade sempre terminará por conquistar seu lugar na história. Próxima ou longe dos críticos e das mídias, no centro ou na periferia, de alguma maneira se abrirá caminho e transcenderá as fronteiras circunstanciais, e se converterá em universal.
Cada dia novos estudantes percorrem esta universidade. A cada ano ingressam na Faculdade de Arquitetura, com uma vocação mais ou menos definida, um novo grupo de estudantes. Aqui começa sua experiência acadêmica, o estudante vive estes espaços com maior ou menor intensidade, percebe e aprende, aprende na experiência de cada dia. Sem que seja muito claro, este habitar a universidade se transforma no melhor dos ensinamentos.
Nós, que não tivemos a sorte de ser um de seus estudantes presenciais, sabemos que todos os que ali têm estudado, fomos e somos seus alunos, e junto a nosso título de arquitetos, ali sob as nuvens de Calder, recebemos também uma distinção. Trata-se de uma maneira de ver a arquitetura.
[tradução de Flávio Coddou e Abilio Guerra]
notas
1
VILLANUEVA, Carlos Raul. Textos escogidos. Caracas, FAU, UCV, 1980, p. 2.
2
MOHOLY NAGY, Sibyl. Carlos Raúl Villanueva y la arquitectura en Venezuela. Caracas, Ediciones Lectura, 1964, p. 2.
3
TENREIRO, Oscar. Los espacios públicos en la arquitectura de Carlos Raúl Villanueva (texto de conferencia). Santander, España.1999, p. 5.
4
VILLANUEVA, Carlos Raul. Op. cit., p. 6.
5
VILLANUEVA, Carlos Raul. Op. cit., p. 6.
6
VILLANUEVA, Carlos Raul. Op. cit., p. 6.
7
MOHOLY NAGY, Op. cit., p. 7.
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sobre o autor
Isabel Sánchez Silva é arquiteta com mestrado no Royal College of Art (Reino Unido), atualmente professora pesquisadora do Instituto de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Central de Venezuela