José Barbedo: Volto à questão inicial: o que é que mudou, como autorreflexão que nós podemos fazer...
Paulo Mendes da Rocha: Mas, eu te interrompo para dizer que não mudou nada. Há algumas novidades no quadro, mas a questão fundamental não é novidade. Que o dogma não é para ser aceite. Isso não é novidade. Como novidade? Só as religiões são muito antigas, a própria católica é recente, tem dois mil anos…
JB: Eu referia-me à reflexão sobre os riscos de determinadas tecnologias, que nos coloca numa posição nova.
PMR: Mas, você é livre, você não é obrigado a usar as tecnologias só porque elas existem. Aí que entra a política, o que você decide fazer.
JB: Mas, como…
PMR: Parece que você tem a preocupação de chegar a uma verdade final e definitiva. O conhecimento assim não tem graça enquanto uma coisa fluente. Eu sinto nas tuas perguntas, uma aflição para chegar a uma conclusão. Não vai chegar nunca. A não ser isso sim, isso não. Você tem que ter em relação às suas ações uma visão dialética de julgamento. Você pode nunca saber exatamente o que deve fazer. Entretanto pode ter a serenidade de saber o que é possível, e exatamente saber o que não fazer. Se um automóvel pesa 700 quilos você não pode enchê-lo de gasolina tirada do petróleo nas profundezas da Terra para enfiar lá dentro um cretino de 60 quilos para ser levado individualmente num engenho que ocupa 4 metros por 2 de largura, etc. etc. etc. Só o transporte público, que é um dos paradigmas de uma grande cidade, é um desiderato e um problema político – para desenvolver – e nunca o transporte individual. O meio de transporte individual com máquinas parece meio tolo. A graça de andar é melhor não perdê-la nunca. Não vejo nada que possa substituir. Um cara correndo com umas rodinhas no pé parece que não interessa.
JB: (risos) Sim.
PMR: Pode ter graça como esporte, como diversão, para jovens, para crianças, mas não é para ser meio de transporte, é uma coisa meio estúpida, me parece. Podemos julgar essas coisas. Mas você não vai proibir isso ou aquilo. Viver num regime democrático é algo que estamos aprendendo sempre a fazer. É uma experimentação que não vai cessar nunca. Outra coisa são fenômenos, já – deixamos acontecer como fenómenos, que não seriam propriamente fenômenos, fomos nós que fizemos, porém tem um desenvolvimento do quadro fenomenológico, que é a superpopulação do mundo. Se você constatar que o planeta não suporta uma superpopulação, você tem que se precaver (como estamos já fazendo) controlar…a multiplicação da espécie…muda completamente, a introdução de valores e horizontes no plano da moral, no plano da ética, no comportamento humano. A sexualidade mudou completamente as relações masculino-feminino…nós vivemos numa revolução. Quais são os paradigmas fundamentais? A preservação da espécie etc.
Os filósofos não fazem muito mal a ninguém – como reflexão, não como produtores de dogmas, não vamos entrar em contradição. Mas algumas reflexões são estimulantes. Um deles disse o seguinte: todos nós sabemos que a vida é curta, sabemos que vamos morrer. Entretanto sabemos também que não nascemos para morrer. Nascemos para continuar (10). Ora, continuar é dizer ao outro a sua experiência. É educação, discurso, política etc. – tá todo o bojo da questão. Nós não sabemos até hoje de onde viemos, nem o que somos nem porquê. E por outro lado, a natureza inteira é isso. Você não sabe porquê existe uma pequena abelha que se alimenta do néctar das flores, e que existe as variedades infinitas quase, de espécies vegetais, de espécies animais – quantas não existem mais e já existiram –, nada garante que nós sejamos eternos, mas enquanto podemos providenciar, podemos voltar aquela afirmação (não que eu queria ter razão, estou perguntando o que é que você acha) que não nascemos para morrer, nascemos para continuar? O discurso e o que ele quer dizer, portanto, a educação, é a base e a chave de tudo. Não uma educação que introduz a disciplina nas crianças, ao contrário. Uma educação que se propõe ao desenvolvimento da mente humana em relação à organização em sociedade sobre o seu próprio destino. Não é uma bobagem, é uma coisa para pensar.
JB: Eu acho isso fundamental e concordo plenamente. A Hannah Arendt falava muito nisso e eu por vezes tento lembrar essas mesmas palavras porque hoje parece que a autoestima do ser humano está tão em baixo que se criou um pouco a ideia de que o mundo seria melhor sem nós. Que vai também ao encontro dessas teorias malthusianas…
PMR: Você tem que imaginar, que o mistério é tão grande que é fácil imaginar – para manter esta nossa conversa que está muito agradável, muito interessante – que sem nós, o mundo não existiria. Sem nós! Existe porque nós estamos observando e dizendo, se não, o que é que é existir alguma coisa? É a nossa consciência ter uma visão daquilo. Seja um asteroide, seja os planetas, seja a incrível dimensão do espaço universal, as leis da mecânica celeste... Coisas que pouco a pouco vamos vendo, uma ou outra manifestação dessa incrível fenomenologia da natureza. Uma ou outra manifestação que é possível manipular: mecânica dos fluídos, e coisas assim, que já fazemos. Mas o horizonte é infinito. Não estamos aqui para resolver coisa nenhuma.
JB: Tem um filósofo português, Agostinho da Silva, que falava que nunca devemos resolver nada, devemos ir sempre adiando. Para não nos fecharmos ao futuro. Ele falava isso.
PMR: É. Você pode dizer hoje, nós falamos da descoberta da América, nessa altura imagina, uma pequena caravela de madeira flutuante, movida a vento nas velas, guiada pelas estrelas, fantástico aqueles homens. Equivale aos astronautas de hoje. Mas hoje um desses homens que está fora da estratosfera aqui, já vê o planeta inteiro. Uma coisa fantástica, como é que vê terra do outro lado, vê o planeta inteiro.
JB: Essa ideia…
PMR: Você pode dizer hoje tranquilamente – tranquilamente no sentido de dizer que não está falando um absurdo, não está querendo bancar o vidente do futuro – que o homem está experimentando a hipótese da expansão da vida humana no universo. Existe um engenho nosso nos anéis de Saturno que está enviando notícias etc. Existe uma estação orbital onde os homens podem passar um ano...
JB: Mas existe também uma ideia, que podemos falhar aqui na Terra e começar em algum outro lugar, isso não reforça a ideia de que o planeta é descartável? É uma ideia aqui que gostaria de discutir, que vem um pouco de volta a essa ideia de modernidade que está muito condicionada por essa visão do planeta azul. Essa ideia de que nós vivemos num globo terrestre esférico, e de nos identificarmos com essa ideia, e hoje estarmos a compreender que afinal apenas habitamos numa pele, nesse pequeno invólucro muito delicado que está à volta dessa esfera. E isso até é muito difícil de representar o que é esse mundo. Já não é um globo, já não é um planeta, é apenas uma película, uma pele. Isso talvez nos dê uma outra visão do que é ser moderno. Talvez seja um grande erro pensar que podemos ir daqui para outros planetas, ou pelo menos esse pensamento tem sido uma forma de legitimar o desastre que se tem feito aqui na Terra. São questões que eu coloco, algo que pode alterar a forma como nós vemos, essa própria ideia de expansão... Será que ela é benéfica ou ela está a contribuir também para a nossa autodestruição?
PMR: Não tenho a menor ideia. Porque é que você acha que deveria ter uma ideia? Eu só acho um absurdo, não tinha pensado nisso, que a hipótese de expansão da vida humana no universo – com providências humanas – não significa que se vá abandonar a Terra. Expandir é habitar novos espaços, além da própria Terra.
JB: Mas estamos perante um horizonte novo em que as condições de vida no planeta, podem realmente, num futuro relativamente próximo, não ser mais viáveis para a vida humana. Portanto, neste momento os esforços que estão a ser feitos, inclusive por empresas privadas, é de ser fácil construir barcos salva-vidas para algumas pessoas que terão a hipótese de ir para outros planetas. Isso é uma realidade. Então, essa ideia de expansão, que também está ligada a uma ideia de crescimento, e que também está ligada a uma ideia de progresso, podem no fundo ser ideias e ideais que legitimam os erros que têm marcado a nossa história.
PMR: Legitimam os erros?
JB: Sim, A ideia de progresso, a ideia de que há um A para um B e o A é melhor que o A.
PMR: Mas quem falou em progresso é você. Eu não falei em progresso. Andamento não é progresso. Essa visão de progresso depende muito do seu ponto de vista.
JB: Eu gostaria de saber a sua opinião, se essa ideia de progresso ainda é válida, se o Brasil não precisa de novas bandeiras?
PMR: Eu acho que a ideia de progresso nunca foi válida. Crescimento, progresso, são palavras muito ligadas a uma perspectiva capitalista: lucro, sucesso... Uma empresa progride.
JB: No entanto a ideia de sucesso é válida, como condição essencial à continuação da vida, algo necessário à vida. Falo no seu sentido mais prolífico, de um sucesso mais feito de ciclos talvez.
PMR: O sucesso de uma experiência científica por exemplo, pode-se usar a expressão. Mas esse mesmo sucesso tem matado muita gente por exemplo. A exploração da imagem, você já viu isso. A maioria dos grandes sucessos da televisão, da música popular, acabam se matando, drogados etc. Essa (Amy) Winehouse é um exemplo muito recente, de uma criatura maravilhosa que se complicou por excesso de exposição, por excesso de sucesso. Portanto as palavras podem às vezes dizer coisas que não é muito legítimo aceitar. Não é esse o significado mais vivo, mais frutífero da palavra. Você faz por exemplo um experimento de uma perspectiva do que quer provar e consegue, diante de um grupo científico, pode dizer que sua experiência teve sucesso. Você demonstrou que a água aquecida evapora e ocupa um espaço maior etc. em ambiente de laboratório, e chama aquilo de sucesso. Mas você fabricar, imaginar já, uma nova forma de fabricar os novos veículos que vão levar o homem para outros (espaços), isso é uma estupidez. É uma visão puramente de andamento dos ideais que parecem retrógrados do sistema de fabricar para vender e ter lucro – o que se chama o estrito capitalismo. No imediatismo, a gente mede o lucro em dinheiro como sucesso. Portanto é preciso ver como você está usando as palavras. As palavras – é preciso ter muito cuidado com elas. Quando o homem disse: a Terra é azul, não é para você pensar que a Terra tem que ser azul ou verde. O que ele disse, que foi notado, é que ele estava vendo a Terra inteira (11). Ele quis dizer que estava a ver o planeta todo.
notas
10
Na reflexão Arendtiana de que não nascemos para morrer, mas para continuar, somos chamados a agir com absoluta liberdade no discernimento do que é oportuno fazer, embasados no conhecimento adquirido através da nossa experiência prática. Pensar nossa acção com base na continuidade da vida e do conhecimento permite-nos afirmar as realizações humanas, incluindo a arquitetura, como um testemunho de consciência do ser no mundo, como uma expressão da vontade subjetiva do indivíduo não alienado (ARENDT, Hannah. Vita Activa. Stuttgart, Kohlhammer, 1960; ARENDT, Hannah. On Violence. Londres, Allen Lane, 1970).
11
Ao evocar o sonho mais fantástico do homem moderno, de escapar ao aprisionamento do planeta, não é tanto a ideia de expansão associada à conquista de novos territórios que lhe interessa verdadeiramente, e sim a conquista de um ponto de vista fora da terra que importa ao modo como o arquiteto lê o mundo.