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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Partindo do princípio da cidade democrática, o artigo apresenta reflexões sobre o papel da informação e da legitimação de territórios informais na reconstrução da cidadania plena em contextos urbanos diversos.

english
Assuming the democratic city as a starting point, the article reflects on the role of information and of legitimacy of informal territories in the reconstruction of true citizenship in diverse urban contexts.

español
Partiendo de la base de ciudad democrática, el artículo presenta reflexiones sobre el papel de la información y la legitimación de los territorios informales en la reconstrucción de una ciudadanía de pleno derecho en distintos contextos urbanos.


how to quote

GUIMARÃES, Carolina Jorge Teixeira; FREITAS, Clarissa Figueiredo Sampaio; CUNHA, Lara Aguiar; PONTE, Luísa Fernandes Vieira da; SOUZA, Stelme Girão de. (Re)conhecer para legitimar. Reconstruindo a cidade pela perspectiva democrática. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 259.15, Vitruvius, dez. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.259/8614>.

A cidade democrática

Quando pensamos sobre democracia, o reflexo mais comum é defini-la como um regime baseado nos interesses da maioria em que existe a soberania popular. No entanto, dentro de uma sociedade capitalista, organizada por um aparato institucional que muitas vezes reforça as opressões desse sistema, os poderes se distribuem de forma desigual, o que impacta nos processos de tomada de decisão.

Mesmo nas experiências democráticas tidas como bem sucedidas, podemos destacar gradientes de democracia: apenas através de muita luta, as práticas entre grupos vulneráveis e minoritários influenciam o processo decisório democrático. O direito de existir, reivindicar e transformar da população negra e LGBTQIA+, por exemplo, ainda está sendo construído e conquistado a muitas mãos mesmo em regimes democráticos considerados consolidados.

Por sua vez, a cidade, encarada aqui como um organismo político, acaba por se tornar o cenário-palco das disputas de poder e das tentativas de efetivação das demandas populares. Sua morfologia, suas problemáticas socioeconômicas e dinâmicas reforçam o desafio de construir e, até mesmo, definir a democracia. Para o presente texto a experiência democrática na cidade se desenha a partir de sua radicalização. Assim, a cidade democrática seria aquela que retira o monopólio dos especialistas, técnicos detentores de um suposto conhecimento racional, do controle do espaço urbano (1). Na utopia da cidade democrática, os citadinos são vistos como seres emancipados que exercem sua cidadania no desenvolvimento da urbe, em função dos seus conhecimentos.

A perspectiva da cidade democrática também está no debate sobre o direito à cidade quando se reivindica uma cidade construída a partir do desejo de seus moradores, segundo os princípios do poder coletivo e da autonomia (2) e, também, quando demanda que todos tenham acesso aos equipamentos, serviços, recursos naturais e demais elementos que compõem o espaço urbano (3). A relação entre cidade e democracia evoca a possibilidade de um espaço de múltiplos desejos e múltiplos conhecimentos, que garante de forma igualitária o acesso aos seus bens comuns. Devemos considerar essa utopia como um horizonte.

O objetivo de uma cidade que exerce a democracia a partir do cumprimento das necessidades e dos desejos dos cidadãos requer olhar para o espaço urbano sob a ótica da diversidade — que representa a pluralidade de crenças, ideias, valores, formas e hábitos de vida, pontos de vista — ao mesmo tempo que se mistura em uma teia complexa que também é interseccionada por gênero, raça e classe. São essas diferenças que nos apontam para direções alternativas, para a construção de espaços heterogêneos e para a realização da emancipação social e construção da utopia urbana (4).

Para além de analisar a cidade com o enfoque nas desigualdades e nas problemáticas socioeconômicas, ambientais e morfológicas, a perspectiva da diversidade e suas potencialidades pode nos orientar para caminhos mais democráticos. Os interesses e desejos frutos das multiplicidades impressas na cidade dificilmente vão ser atendidos a partir de uma lógica que não reconheça a pluralidade dos territórios existentes. Dessa forma, um novo urbanismo deve considerar os conflitos e as complexidades inscritas nessa realidade e propor diferentes formas urbanas (5). A cidade democrática deve apresentar uma morfologia que expressa a pluralidade inerente ao espaço urbano.

Diante do exposto, é possível enxergar na cidade informal (6) a expressão de uma forma urbana diversa, que foge a regra dos padrões da cidade regulada e, frente ao sistema capitalista se expressa como resultado de um processo cruel de superexploração, mas que na sua resiliência, torna-se uma resposta coletiva às opressões e desigualdades estruturais. Apesar da precariedade presente nesses territórios, devido a falta de condições básicas de habitabilidade que suscitam uma intervenção do Poder Público, os assentamentos informais podem e devem ser vistos como movimentos de resistência que possibilitam reações criativas e revolucionárias para um processo de exclusão da cidade, destacando-se como espaços de organização popular. Nessa dualidade, a cidade informal é fruto da negação primordial ao direito de habitar, mas também da reivindicação desse direito pelas classes marginalizadas.

A cidade informal não deve ser descaracterizada nem destituída pelas intervenções lá propostas, nem mesmo analisada do ponto de vista único dos problemas e ausências. É necessário enxergar na não-formalidade um passo para a formulação de demandas legítimas, promessas para um novo modelo contra-hegemônico, parte da morfologia diversificada da cidade democrática radicalizada.

Para compreender essa promessa a produção de informação ocupa um lugar central. Construir novos conhecimentos a partir de informações que não gerem apagamentos, invisibilizações ou estigmas é um passo para o entendimento do que seria a diversidade almejada.

Conhecer a cidade informal torna-se ainda mais relevante se considerarmos o momento atual em que vivemos, a era da informação onde todo o nosso cotidiano tem potencial para transformar-se em dados, a multiplicação das fake news que ameaçam a democracia e os interesses coletivos, e a crise da Covid-19 que ressaltou a importância da pesquisa e da construção de bases de informação, inclusive relacionadas com a cidade. Como reforça Carlos Vainer (7), ao apresentar o slogan “informação pela democracia e democracia pela informação”, a produção, concatenação e posterior interpretação de dados tem papel indispensável na luta pela cidade democrática e na efetivação da participação cidadã. Conhecer a cidade é o caminho para viabilizar novos imaginários e, consequentemente, atender múltiplos desejos.

No entanto, a informação por si não basta se ela for monopolizada por uma narrativa que criminaliza e repreende a cidade informal. A situação de ilegalidade, ligada à forma de acesso à terra dos assentamentos informais, subverte a cidadania dos seus moradores, muitas vezes impedidos de acessar e reivindicar direitos (8). As consequências do status de ilegalidade impossibilitam a emancipação dos cidadãos que estão à margem da cidade legal e nos distanciam da cidade democrática. Legitimar esses territórios em sua diversidade é um ato político e solidário.

A reflexão que o presente texto se propõe a trazer é a de que para alcançar a democracia radical em nossas cidades é preciso, primeiramente, conhecê-las de forma aprofundada. O que significa ir além do olhar que estigmatiza ou invisibiliza determinadas diversidades, em particular os territórios informais (9).

Assim, é importante reconhecer as diversidades, buscando legitimar as práticas, saberes e experiências vividas daqueles que moram à margem da cidade legal e formal. São essas abordagens que nos fornecem um caminho para a reconstrução do espaço urbano mirando na efetivação da cidade democrática.

Conhecer: Informação sobre a diversidade do espaço urbano

Nas últimas décadas, a coleta e produção de dados urbanos aconteceu de forma bem mais acelerada em relação a outros períodos da história. Com as tecnologias que permitem gerar, armazenar e tratar um grande volume de dados, a sociedade se inseriu em uma realidade em que vários aspectos do cotidiano podem ser transformados em dados e, consequentemente, em informação (10).

Obter dados sobre o mundo e a cidade tornou-se um processo mais rápido e fácil, mas essas informações ainda são monopolizadas, muitas vezes, por grupos detentores de grandes recursos, sejam empresas ou o próprio aparato estatal. O Google é talvez o maior exemplo de empresa que produz uma grande quantidade de dados sobre o espaço urbano, o que contribui para muitas pesquisas. Por outro lado sua agenda não é necessariamente convergente com o interesse público (11) visto que suas ferramentas de mapeamento, em sua grande capilaridade, conduzem falsas percepções de mundo. Atualmente, a grande produção de dados confunde-se com a sua universalização, o que apaga os locais aos quais não há dados levantados. Com a certeza de conhecermos o mundo, devido ao alto fluxo de informação sendo gerada, nos iludimos pois na verdade o que sabemos se limita a agenda daqueles que manipulam a produção e disseminação da informação.

Entre as grandes contradições dessa cidade datificada está a discriminação do conhecimento relacionado a distintas realidades. Essa diferença é refletida por meio de políticas de desenvolvimento urbano condicionadas a um tratamento desigual, promovendo cenários por vezes de habilitação e por outras de exclusão. Essa grande divergência de tratamento entre espaços da cidade são reflexos de uma visão de planejamento assimétrico, gerando um fluxo contínuo de produção de informação sobre certos espaços da cidade em detrimento de outros.

Acerca dessas desigualdades, Milton Santos distingue como “espaços luminosos” áreas que possuem uma grande densidade de informações, enquanto que os “espaços opacos” seriam justamente aquelas cujo volume de informação permanece praticamente vazio, reconhecendo também a existência de uma infinidade de situações intermediárias entre elas (12). Assim, tomando como foco de análise a realidade de países do sul global, percebe-se que o processo de produção de informação e dados não acontece de maneira homogênea.

Considerando a realidade das comunidades localizadas em assentamentos informais, por exemplo, é notório a exclusão de grandes parcelas desses territórios nos registros oficiais. Dessa forma, mesmo ocupando grande parte do espaço urbano, a cidade informal é invisibilizada e deixada à sombra dos espaços formais, à medida que praticamente não há informações urbanísticas sobre ela (13). Esse retrato, no entanto, é reflexo de uma invisibilidade quase sempre intencional (14). Afinal, para o Estado parece muitas vezes confortável que as precariedades presentes na cidade informal seja de difícil mensuração, abrindo precedentes para não se priorizar aquilo que não se vê (15).

Comparativo de lotes oficiais registrados em dois bairros vizinhos: Dom Lustosa e Pici
Imagem divulgação [Sefin]

É importante reconhecer que essa desinformação representa um grande entrave para o atendimento das necessidades reais presentes nesses espaços, visto que, uma vez que o Estado não possui uma dimensão clara acerca dos problemas sociais e espaciais dessa parcela da cidade, qualquer ação direcionada a esses territórios torna-se meramente especulativa. Diferente do que se imagina, esse problema não repercute apenas ao nível individual, mas é também um problema nosso como sociedade pois, sem registros oficiais, parcelas consideráveis da cidade ficam de fora das estatísticas oficiais que informam políticas públicas de atendimento geral. Como exemplo, podemos citar a situação dos postos de saúde em áreas periféricas ou a falta de infraestruturas de saneamento básico em bairros populosos da cidade, onde a ausência de registros oficiais das ruas ou número das casas torna difícil o acesso aos serviços de atendimento básico, e sobrecarrega o atendimento dos equipamentos públicos existentes. Ademais, a ausência de dados impede a mensuração da cobertura do serviço, dificultando seu aprimoramento.

Nesse contexto, cabe mencionar as repercussões mais recentes acerca das políticas de desmonte e adiamento do Censo Demográfico organizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE que estava previsto para 2020, mas após uma sequência de atrasos justificados pela pandemia, foi empurrado para o ano de 2022 com uma série de supressões significativas. Por apresentar um vasto detalhamento das condições sociais e econômicas da população brasileira, o Censo contribui para fundamentar as políticas sociais, os projetos e, sobretudo, a distribuição dos recursos públicos no território. As supressões no questionário do Censo afetam a possibilidade de conhecer a fundo nossos problemas e desenvolver soluções realistas e democráticas.

Para além disso, o desconhecimento da cidade real muitas vezes facilita a implementação de políticas regressivas carregadas de percepções estigmatizadas sobre a cidade informal. Estudos recentes têm avançado na compreensão de que a visibilidade deve ser entendida também como uma dimensão social e reflexo de um exercício de poder (16). Sendo assim, o conhecimento sobre esses espaços assume o papel de um antídoto necessário para o desmonte de falsas percepções — fornecendo uma base crítica para uma ação mais efetiva e correspondente à realidade (17).

Portanto, é fato que se tem avançado na coleta e produção de informações com o auxílio de novas ferramentas, mas a tecnologia não é sozinha um fator de mudança nas desigualdades, são os aspectos políticos e ideológicos que ditam o que a técnica está a favor. É preciso portanto que essa prática seja crítica e alinhada com a realidade das comunidades, assim como apropriada por elas (18). Além da busca pela visibilidade também há a necessidade de produzir conhecimento emancipador sobre nossas cidades e sobre os territórios informais, chave para a construção de futuros alternativos.

Reconhecer: legitimação de territórios informais

A formação territorial atual das cidades brasileiras existe a partir de uma conjuntura de desigualdade em que a regulação tradicional rígida e inacessível cria como subproduto a ilegalidade e a consequente exclusão da população de baixa renda do planejamento formal (19). As fronteiras traçadas pela legalidade e ilegalidade, também definem uma relação de plena cidadania e cidadania limitada (20), nas quais as ações do Estado se baseiam. A esse propósito observa-se que nos espaços de urbanização informal, a ilegalidade articula uma situação de desequilíbrio entre os agentes produtores do espaço urbano, afinal, os marcos jurídicos tendem a refletir o interesse dos agentes dominantes (21).

Apesar da prerrogativa constitucional de atender a toda população e as diversas formas de se viver e se morar na cidade, os interesses do Estado se confundem com os interesses dos grupos hegemônicos a nível global, mesmo sociedades tidas como democráticas estão sujeitas a esse processo. As ações do Poder Público acabam por favorecer a manutenção das estruturas sociais e econômicas vigentes, amparando o acúmulo de capital pelo setor imobiliário. Este processo torna a cidade informal alvo de reintegrações de posse, gentrificação e periferização, além de espaços não prioritários para a alocação de recursos públicos.

Segundo Roberto Rocco e Jan van Ballegooijen (22), práticas de clientelismo, opressão e negação de direitos à população residente em assentamentos informais, torna os moradores reféns do Estado, a partir do poder coercitivo que determinados agentes Estatais exercem nos territórios pela prerrogativa da ilegalidade. Desse modo, observa-se que a condição de ilegalidade pode ser usada para justificar remoções forçadas, em paralelo, o status marginalizado desses espaços pode ser utilizado como justificativa para não atender às reivindicações feitas por seus moradores e negar equipamentos e infraestruturas, mesmo estes sendo direito de todo cidadão. Dessa maneira, Rocco e Ballegooijen (23) abordam a ilegalidade não só no âmbito jurídico, mas como um status que estigmatiza e marginaliza as comunidades, identificando essas duas problemáticas como fatores comprometedores no campo das negociações e das reivindicações pelo direito à cidade entre os grupos socialmente excluídos e o Estado.

No sentido de combater esse processo, a cidade democrática radical pressupõe o exercício plural da cidadania, reconhecendo na diversidade novos modos de construção do espaço, e identificando na informalidade o potencial para a criação de novas soluções e reestruturações para as relações e processos urbanos. Essas transformações devem vir de uma mudança na postura dos planejadores urbanos partindo do abandono do tecnicismo e racionalismo instrumental, comercial e monetizado vinculados ao planejamento modernista — visto que o modelo tradicional de urbanização criou o padrão de exclusão que hoje coexiste com a cidade legal (24). Ao encarar a complexidade das cidades atuais, novas experiências se abrem para o reconhecimento da cidade real, planejar a partir do existente em busca de proporcionar uma cidade mais justa e acessível para todos os seus habitantes, bem como ouvir as diversas vozes e reivindicações urbanas que ecoam no território, é o caminho para alcançar o exercício pleno da cidadania.

Reconhecer as multifacetas da cidade informal, os processos de resistência em suas formações e a importância identitária e afetiva desses territórios, leva o arquiteto a pautar soluções que busquem melhorar a qualidade de vida nesses espaços sem desterritorializar sua população. Desse modo, um dos caminhos para construir uma cidade democrática é, a partir do preceito do direito à cidade, construí-la de forma coletiva e para o coletivo, visando a redução das desigualdades sociais.

Para tanto, é preciso entender que os processos singulares de formação da cidade informal suscitam novas resoluções e projetos únicos. Não para encaixar os territórios nos moldes da cidade legal, mas para garantir dignidade a partir do que já existe, desenvolvendo as potencialidades desses espaços.

Por sua vez, a regularização fundiária pode ser um instrumento importante, quando inserida dentro de um processo emancipatório de legitimação desses espaços. Mesmo inserindo os processos de regularização em sua dimensão crítica, pela ênfase no modelo da propriedade privada e ampliação do modelo capitalista em territórios informais (25), o presente texto enxerga sua potencialidade à medida que consegue se integrar a ações que vão além da escrituração. A regularização fundiária, então, é vista a partir da possibilidade de provisão da segurança de posse e do acesso aos serviços e equipamentos públicos, podendo assumir modelos múltiplos e ser implementada de forma plena (26), adotando políticas complementares de intervenção urbana que assimilam os aspectos da realidade dos territórios.

Desse modo, criam-se novos parâmetros urbanísticos particulares, viabilizam-se serviços públicos e o acesso à infraestrutura, inclui-se a população em processos participativos nas tomadas de decisão, urbaniza-se a cidade informal a partir das perspectivas de seus moradores e liberta os moradores de práticas de clientelismo urbano. Para regularizar, entretanto, é necessário conhecer. E apenas um levantamento de informações comprometido com os desejos dos moradores será capaz de possibilitar uma análise que desencadeia propostas urbanas coerentes com a realidade.

Reconstruir: caminhos democráticos a partir da informação e da legitimação

Partindo das reflexões sobre a possibilidade de conhecer e reconhecer contextos urbanos diversos, por meio da produção de informações e da legitimação da cidade plural e informal, pretende-se por fim apontar caminhos para ações coletivas de reconstrução desse imaginário de urbe em um contexto local.

Fortaleza é uma das maiores metrópoles do nordeste brasileiro, região com altos indicadores de precariedade urbana e informalidade se comparada ao centro-sul do país. Seu Plano Diretor Participativo de 2009 — PDPFor 2009 deixa um pouco de lado o tecnocratismo dos anteriores e incorpora os instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade, dentre eles as Zonas Especiais de Interesse Social — Zeis e os instrumentos de regularização fundiária (27). Desse modo, está posto o entendimento de um planejamento que lida com a cidade real, prevendo, por exemplo, flexibilização dos índices urbanísticos de acordo com pactuações feitas com o coletivo, avançando para um debate sobre urbanização que se expande para além da rígida dicotomia estabelecida entre legalidade e ilegalidade.

A delimitação das Zeis neste plano foi fruto majoritariamente de mobilização popular nas instâncias participativas, e desde então os movimentos pressionam o poder público para a regulamentação deste importante instrumento de efetivação do direito à cidade. Assim, apenas uma década após a aprovação do PDPFor, se iniciou o processo de elaboração, em 2019, dos Planos Integrados de Regularização Fundiária — Pirfs (28) das dez Zeis de ocupação consideradas prioritárias. Eles foram produzidos por um órgão da prefeitura (Instituto de Planejamento de Fortaleza — Iplanfor) em parceria com UNIVERSIDADES locais, que formavam o corpo técnico das equipes. Nosso envolvimento direto na equipe de elaboração de três desses planos nos permite tecer algumas considerações sobre o potencial de reconhecimento e legitimação dos territórios.

Os planos consideram a importância da produção de informação sobre os territórios trabalhados para a elaboração de propostas embasadas na realidade urbana. Houve, por exemplo, grande esforço para complementar a base de dados espaciais institucionais, por meio da comparação dos shapefiles fornecidos pela prefeitura com imagens produzidas por meio de aerofotogrametria, dando maior visibilidade para a espacialidade existente. Como um todo, os processos de levantamento de dados e transformação destes em informação possibilitaram novas interpretações sobre a área. A elaboração se destaca, principalmente, pela preocupação em levantar problemas e potencialidades do território, que por vezes são tratados apenas sob a luz de suas precariedades (29).

De modo semelhante, a construção participativa dos planos viabilizou uma melhor apropriação e uma possibilidade de manipulação dos dados levantados por parte dos moradores, o que permitiu que eles tivessem maior expressão e segurança de proposição na elaboração das propostas futuras, bem como nas reivindicações por melhorias em outras disputas urbanas. O diálogo democrático, afinal, depende deste denominador comum dentre os diversos atores envolvidos: os dados sobre a cidade real.

Os Pirfs parecem apresentar um modelo que se aproxima da regularização fundiária plena, tanto do ponto de vista da multiescalaridade dos componentes do plano, quanto pelo processo participativo que foi conduzido pela equipe das universidades em parceria com mobilizadores territoriais. Para além de caminhos para a segurança de posse das casas e a redefinição dos padrões urbanísticos, temas debatidos com os moradores por meio de oficinas(30), os planos elaborados propõem a incorporação dos lotes existentes no sistema de controle e gestão urbana municipal, partindo do entendimento de que é necessária a legitimação de existências informais, especialmente em contextos urbanos de baixa renda.

A repercussão da elaboração dos Pirfs, até o momento, está mais ligada à mobilização popular em torno dos produtos do plano do que à sua implementação por parte da Prefeitura de Fortaleza. Finalizada a fase de elaboração dos produtos oficiais, os moradores têm buscado reforçar a narrativa do território como um espaço de potencial construção da diversidade urbana. Além disso, os moradores e os membros dos conselhos gestores das Zeis têm se organizado em torno de um processo de apropriação do conteúdo dos planos, a fim de que possam se tornar instrumentos de reivindicação por uma gestão democrática da cidade junto ao poder público.

Na Zeis Bom Jardim, por exemplo, as lideranças comunitárias têm investido em um "Observatório da Zeis", instrumento que propõe ações de monitoramento de políticas públicas, de disseminação de informações sobre o território e de formação política, por exemplo, sobre os produtos do Pirf, a fim de fortalecer as informações territoriais dentro da própria Zeis.

A Zeis Pici, por sua vez, tem mobilizado conselheiros populares, assessorias e demais interessados nas discussões a respeito dos dados trabalhados durante a elaboração dos Pirfs como forma não somente de propagar as informações produzidas no processo, mas também na intenção de apropriar o território acerca das próprias dinâmicas do espaço com a finalidade de embasar reivindicações populares e favorecer demandas locais. Além disso, destaca-se também o importante papel que as redes sociais assumem nesse processo, principalmente frente os desafios de mobilização comunitária diante dos entraves gerados pelo Covid-19. O perfil @zeispici no Instagram, alimentado por um grupo de moradores eleitos como conselheiros representantes da comunidade, tem servido como plataforma remota para a democratização das pautas discutidas localmente por meio da projeção do ponto de vista dos próprios moradores.

Instagram do Conselho Gestor do Planalto Pici
Imagem divulgação [@zeispici]

Em suma, o ideal da cidade democrática passa, como aponta Carlos Vainer (31), pela sua compreensão enquanto sujeito múltiplo e conflitual, e a informação é uma importante ferramenta para a construção deste caminho. Ela pode ser encarada do ponto de vista da produção de dados urbanos sobre os territórios informais de baixa renda, que, como apontado, auxilia no processo de conhecimento destas realidades e apoia a tomada de decisões, mas também da perspectiva do que é veiculado pelas grandes mídias, e até do que é incorporado por grandes empresas, como a Google. As informações, incorporadas como conhecimentos empoderadores nesse sentido, são parte importante do processo de legitimação social.

Assim, ao passo em que há aproximação das realidades urbanas de assentamentos informais vulneráveis ao processo de planejamento oficial, ele se beneficia de maior fidelidade entre a cidade formal (ou a ser formalizada) e a cidade real, afastando-se das lentes da estigmatização e da criminalização. Por meio do processo de conhecer o território, por exemplo, é possível apreender novos entendimentos sobre a informalidade, empoderando os moradores na sua luta por cidadania plena. A experiência do Pirf/UFC procurou avançar nessa direção a partir das oficinas de cartografia social e momentos de pactuação coletiva. Desse modo, nota-se pela luta popular para a efetivação do Pirf e pela forte mobilização dos territórios do Bom Jardim e do Pici após o processo de elaboração do projeto, que o Pirf desencadeou um crescimento da consciência coletiva, empoderando os moradores a partir da troca horizontal para um posicionamento mais firme bem como uma análise crítica apurada dos espaços em que residem, estimulando os diálogos e debates nas Zeis e em Fortaleza como um todo.

A legitimação destes territórios como parte da cidade, destituindo-os do estereótipo de áreas residuais, é central para o exercício pleno da cidadania de seus moradores. Jürgen Habermas (32) já propunha o direito construído por meio da legitimidade, a partir de políticas deliberativas que garantam a participação da população na construção das normas. É importante destacar, portanto, que a legitimidade não ocorre espontaneamente pela mudança do status de legalidade, ou pela regularização jurídica, e sim passando por um processo de democratização da pauta. A regularização fundiária plena, que envolve a regularização jurídica dos regimes de posse vigentes aliada a processos de urbanização, é fundamental para o reconhecimento social — ou seja, para a legitimidade — dos assentamentos (33).

A reconstrução, então, passa por processos de conhecimento e reconhecimento do que é a cidade, e não pela destruição de algo já posto. Em um contexto de políticas urbanas tecnocráticas e corporativistas, em que o planejamento se torna um vetor de agravamento da segregação socioespacial ao considerar o espaço urbano como sujeito homogêneo, a legitimação de práticas diversas de territórios informais se torna sinônimo do reconhecimento de formas de viver alternativas àquelas conhecidas pela formalidade. A utopia, assim, é muito mais a de incorporação desses espaços dentro do espectro da legitimidade do que da legalidade — as normas e a ordem vigente tem que ir ao encontro da pluralidade da cidade, e não o contrário. Esse entendimento é um passo importante no caminho da democratização do direito à cidade.

notas

1
VAINER, Carlos. Planejamento urbano democrático no Brasil contemporâneo. In ERBA, Diogo et al (org.). Cadastro multifinalitário como instrumento de política fiscal e urbana. Desenvolvimento em Questão, ano 16, n. 44, Ijuí, jul./set. 2018, p. 538–561.

2
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo, Documentos, 1969.

3
CASTELLS, Manuel. Luttes urbaines et pouvoir politique. Paris, Librairie François Maspero, 1973.

4
FAYAD, Karime; BESCIAK, Nadia. Cidade e diversidade: perspectivas para o próximo urbanismo. Anais do 18º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, São Paulo, FAU USP, 2017.

5
Idem, Ibidem.

6
Por "cidade informal'' entendemos os Assentamentos Populares Informais, na acepção de Pedro Abramo, ou seja, assentamentos resultante de acesso ao solo via ocupação alimentadas pela lógica da necessidade. ABRAMO, Pedro (org.). Favela e mercado informal: a nova porta de entrada dos pobres nas cidades brasileiras. Porto Alegre, Antac, 2009.

7
VAINER, Carlos. Op. cit.

8
ROCCO, Roberto; BALLEGOOIJEN, Jan van. The Political Meaning of Informal Urbanization. In ROCCO, Roberto; BALLEGOOIJEN, Jan van (eds.). The Routledge handbook on informal urbanization. New York, Routledge, 2019.

9
O termo informal utilizado ao longo do texto não é escolhido para explicitar o binarismo entre formalidade e informalidade, estabelecido pelos agentes dominantes, pois essa divisão culmina na fragilização de direitos em territórios de baixa renda. Mas pelo potencial questionador e transformador nas ambiguidades presentes no termo.

10
É importante ressaltar que a alta produção de dados possibilitada na contemporaneidade não se traduz, necessariamente, em conhecimento. Michael Batty já comenta que as novas correntes de planejamento urbano que se utilizam de um grande volume de dados ainda carecem de teoria que permita ir além da produção de dados em si. BATTY, Michael. Urban Analytics Defined. Environment and Planning B: Urban Analytics and City Science, n. 46 (3), p. 403–405, 2019.

11
COSTA-LIMA, M.; FREITAS, C.; FARIAS, S. Mapping Algorithms Are Failing to Address Urban Inequalities in the Global South. Failed Architecture, 2021 <https://bit.ly/3T6sMye>.

12
SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico específico-informacional. 5ª edição. São Paulo, Edusp, 2008, p. 48.

13
LIMA, Mariana Quezado Costa, FREITAS, Clarissa Figueiredo Sampaio; CARDOSO, Daniel Ribeiro. Modelagem da informação para a regulação urbanística dos assentamentos precários em Fortaleza. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 11, Curitiba, PUC PR, 2019 <https://bit.ly/3g61vgS>.

14
FREITAS, Clarissa. Moradores invisíveis e a cidadania urbanística. O Povo, Fortaleza, 5 out. 2017 <https://bit.ly/3CDXGHg>.

15
FEITOSA, Flávia. Big data e urban analytics à brasileira: questões inerentes a um país profundamente desigual. Revista de Morfologia Urbana, v. 8, n. 1, 30 jun. 2020 <https://bit.ly/3EGQtJh>.

16
MAIA, F. N. Smart Urbanism and the Politics of Digital Visibility: Mapping Informality in the City of Rio de Janeiro (2008–2016). Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Prourb UFRJ, 2018.

17
ARANTES, Otilia; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000, p. 186.

18
MILAN, Stefania; TRERÉ, Emiliano. Big Data From the South (s): Beyond Data Universalism. Television & New Media, v. 20, n. 4, 2019 <https://bit.ly/3CYU2Jq>.

19
CYMBALISTA, Renato. Regulação urbanística e morfologia urbana. In ROLNIK, Raquel (org.). Regulação urbanística e exclusão territorial. São Paulo, Instituto Pólis, 1999.

20
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei. Legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo, Studio Nobel, 1999.

21
CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. 3ª edição. São Paulo, Ática, 1995.

22
ROCCO, Roberto; BALLEGOOIJEN, Jan van. Op. cit.

23
Idem, ibidem.

24
ROLNIK, Raquel. Regulação urbanística no Brasil. Conquistas e desafios de um modelo em construção. Anais do Seminário Internacional: Gestão da Terra Urbana e Habitação de Interesse Social, Campinas, Puccamp, 2000 <https://bit.ly/3yDyorJ>.

25
O economista peruano Hernando de Soto, nos livros O outro caminho (1989) e O mistério do capital (2000), defende a regularização fundiária do ponto de vista do crescimento econômico. O teórico defende que, a partir da escrituração de negócios e moradias informais, o “capital morto” presente nesses territórios é transferido para a economia formal, ajudando a desenvolver o país e a erradicar a pobreza. Essa visão sobre a regularização fundiária, da perspectiva única da escritura da casa, já é criticada e questionada por pesquisadores como Edésio Fernandes e Raquel Rolnik.

26
FERNANDES, Edésio. Regularização de Assentamentos Informais: o grande desafio dos municípios, da sociedade e dos juristas brasileiros. In ROLNIK, Raquel et al. Regularização Fundiária Plena: referências conceituais. Brasília, Ministério das Cidades, 2007, p. 18–33.

27
MACHADO, Eduardo. Democracia e planejamento urbano na revisão do Plano Diretor de Fortaleza (2002–2008). Reflexión Política, v. 16, n. 31, p. 16, 2014 <https://bit.ly/3yGKdgA>.

28
Ver mais a respeito dos produtos publicados dos PIRFs em: Zonas Especiais Fortaleza. Fortaleza, Prefeitura Municipal de Fortaleza, 2002 <https://bit.ly/3EGkZTp>.

29
FURTADO, Lara; RENSKI, Henry. A construção de dados insurgentes em assentamentos informais. V!rus, n. 19, São Carlos, 2019 <https://bit.ly/3D1htC7>.

30
A metodologia do Banco de Dados está exposta em PPGAUD UFC. A data-driven approach to inform planning process in informal settlements. YouTube, San Bruno, 15 dez. 2020 <https://bit.ly/3MAtQrD>. As oficinas estão descritas em Pet Arquitetura <https://bit.ly/3MxaVOs>.

31
VAINER, Carlos. Op. cit.

32
O entendimento de Habermas sobre a questão da legitimidade é discutido no texto: BARRETO, Lucas. Legitimidade do ordenamento jurídico: entre Kelsen e Habermas. Jus.com.br, 29 jul. 2012 <https://bit.ly/3VxuQ3S>.

33
A esse respeito, ver nossa reflexão mais aprofundada baseada no caso de Fortaleza em: PONTE, Luísa; FREITAS, Clarissa. Participation as a step towards transformative land regularization policies: the case of Fortaleza. Critical Planning: A Journal of the UCLA Department of Urban Planning, 2022 (no prelo).

sobre os autores

Carolina Jorge Teixeira Guimarães é graduanda em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal do Ceará. Tem experiência em assessoria técnica e modelagem da informação. Foi membro da equipe de elaboração dos Planos Integrados de Regularização Fundiária e atualmente é voluntária do programa Pibiti do CNPq no projeto Invisible Dwellers: producing data to fight spatial injustices.

Clarissa Figueiredo Sampaio Freitas é professora do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design da Universidade Federal do Ceará desde 2009 e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Urbanismo e Design. Foi bolsista da comissão Fulbright durante o mestrado em Planejamento Urbano e Regional da Universidade de Illinois (2001–2003), e obteve o título de doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília em 2009.

Lara Aguiar Cunha é graduanda em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal do Ceará. Tem experiência no campo da assistência e assessoria técnica por meio de projetos de extensão universitária, e atualmente é bolsista de Iniciação Científica pela Funcap no projeto intitulado “Planejamento urbano e informalidade em Fortaleza: as potencialidades da regularização fundiária”.

Luísa Fernandes Vieira da Ponte é graduanda em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal do Ceará. Tem experiência no campo da extensão universitária e da assessoria técnica, foi membro da equipe de elaboração dos Planos Integrados de Regularização Fundiária e atualmente é bolsista de Iniciação Científica no projeto intitulado Planejamento urbano e informalidade em Fortaleza: as potencialidades da regularização fundiária.

Stelme Girão de Souza é graduando em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal do Ceará. Foi membro da equipe de elaboração dos Planos Integrados de Regularização Fundiária sob coordenação do Iplanfor e atualmente é bolsista de Iniciação Tecnológica pelo programa Pibiti do CNPq no projeto Invisible Dwellers: producing data to fight spatial injustices.

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