O presente estudo é a síntese da pesquisa realizada para o trabalho final de graduação em Arquitetura e Urbanismo A Condição Litorânea de São Gonçalo, um município fluminense, apresentado a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro em dezembro de 2020. O trabalho estuda a orla marítima do segundo município mais populoso do estado, localizado na porção leste da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e banhado pelas águas da Baía de Guanabara. Somente a partir da caracterização apresentada nesse texto foi possível trabalhar com o recorte temático específico das relações sociais desenvolvidas no espaço entre a água do mar e a terra firme na busca de um projeto-resposta, objeto a ser compartilhado em uma outra ocasião.
A constituição em vigor garante a todos “o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” e classifica a Zona Costeira como um patrimônio nacional cuja preservação deve ser assegurada (1). No entanto, em um estado fortemente marcado pela dependência da indústria petroquímica e em um Estado marcado pela desigualdade social, há um descompasso entre garantias, deveres e direitos e seus rebatimentos espaciais em função do lugar. Assim, dentro do recorte temático, a condição litorânea e os valores paisagísticos intrínsecos ao litoral — como a excepcionalidade, a estética e o simbolismo do mar (2) — são menosprezados no planejamento e na configuração atuais de São Gonçalo. Isto é, há uma contradição de ser uma cidade litorânea alheia ou aquém de sua condição litorânea.
Parte significativa desse quadro, em que a fruição e o acesso à água e aos ecossistemas litorâneos foram interrompidos, é resultado direto da abertura e modelo de dependência da Rodovia Niterói-Manilha, trecho norte-fluminense da BR-101. A construção da rodovia modificou radicalmente as feições da orla do município e impôs um enorme custo de oportunidade pago, na dimensão local, pelos mais pobres em benefício de interesses distantes. A outra parte do quadro atual resulta da política de segurança pública e do exercício continuado de uma inócua guerra às drogas no estado. Somadas as partes, as porções que não foram destruídas pela abertura da rodovia encontram-se dominadas pelo tráfico. Além disso, a sujeição aos surtos econômicos característicos da commodity petróleo induzem um novo subjugo dos ecossistemas marítimos que ainda resistem e ampliam os conflitos distributivos.
Diante dessa realidade de injustiça sócio espacial, a pesquisa aqui apresentada foi realizada para sustentar o objetivo geral do trabalho final de graduação de elaborar um plano-resposta de natureza urbana para a orla marítima de São Gonçalo dedicado à valorização dos espaços comuns e cotidianos à beira d’água para uso da população local.
Considerações metodológicas e aportes teóricos
Para alcançar esse objetivo foram utilizadas estratégias da cartografia crítica, pesquisa documental em órgãos que atuam com o tema, visitas a campo e revisão bibliográfica do Projeto Orla (3). Os materiais utilizados consistem em fotos, planilhas e mapas físicos e digitais. Esses últimos foram o principal meio de representação utilizado, respeitando o limite escalar de 1:2000 com elaboração em ambiente de Sistema de Informação Geográfica — SIG. O conteúdo também foi tratado vetorialmente através de programas de ilustração digital onde foram processadas as informações obtidas em instituições diversas. As visitas a campo foram realizadas no segundo semestre de 2019 e nelas foi possível complementar as informações obtidas pelos outros meios citados com dados, fotos e desenhos.
De maneira complementar, duas publicações serviram para entender do que se trata a orla marítima tanto do ponto de vista do campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo quanto do ponto de vista legal, visto que a zona costeira é um Patrimônio da União(4). Elas são, respectivamente, 1. O artigo “Urbanização, Litoral e Ações Paisagísticas à beira d’água” do arquiteto e urbanista Silvio Soares de Macedo (5); e 2. O caderno “Projeto orla: fundamentos para gestão integrada” (6).
Orla marítima e zona costeira
A Zona Costeira é o “espaço geográfico de interação do ar, do mar e da terra, incluindo seus recursos ambientais” e abrange uma faixa marítima e uma terrestre (7). O trato desse espaço fundamenta-se nas leis n. 7.661/88, que institui o Plano Nacional de Gestão Costeira, e na lei 9.636/98 que aborda a propriedade estatal dos terrenos e acrescidos de marinha. O Plano Nacional de Gestão Costeira II define e delimita a Zona Costeira da seguinte forma: 12 milhas náuticas mar afora em sua faixa marítima e, em sua faixa terrestre, a totalidade da extensão dos municípios defrontantes com o mar ou que integram regiões metropolitanas litorâneas. No Plano Nacional de Gestão Costeira II estão listados todos os municípios costeiros e, dentre esses, verifica-se a presença de São Gonçalo, o município que contém o objeto de estudo deste trabalho. A Orla Marítima é uma unidade geográfica inserida na Zona Costeira (8), e seus limites podem ser averiguados de duas formas. A porção terrestre é aferida 1. Pela Linha do Preamar Médio de 1831 ou 2. Pelo limite do ecossistema do ambiente marinho predominante, como um mangue ou uma restinga, por exemplo. Já sua porção marítima é delimitada pela isóbata 10. Para as análises desenvolvidas, dividiu-se a orla em unidades de paisagem observando-as dentro do contexto das sub bacias hidrográficas que contém a unidade costeira.
O Projeto Orla foi desenvolvido pelo governo federal com o objetivo de instrumentalizar a descentralização da gestão da orla marítima da União para os Municípios. Dos cadernos desse projeto, foram extraídos os conceitos para o estudo da orla, as bases legais, os planos e abordagens que devem ser levadas em conta no trato desta unidade geográfica. O projeto propõe abordagem a orla dos municípios brasileiros a partir da definição de sua tipologia genérica, de diagnósticos da paisagem e complementares (aspectos socioeconômicos e geobiofísicos), da classificação da orla e da formulação de cenários desejados. Essas etapas visam definir as estratégias para elaboração de um plano de gestão integrada da orla. Aqui, guardadas as limitações da natureza do trabalho, foi utilizada a mesma estrutura para embasar a elaboração de um plano de intervenção que pudesse, hipoteticamente, subsidiar um plano de gestão integrada para a orla de São Gonçalo. A formulação de cenários desejados não será apresentada nesse texto.
Quebra dos nexos locais
De maneira complementar à estrutura descrita acima, foram acrescentados a avaliação dos espaços livres público e privado e do tecido urbano das sub bacias que contém a unidade geográfica em estudo. Essa avaliação foi pautada na categorização (9) elaborada pelo grupo de pesquisa Sistemas de Espaços Livres no Rio de Janeiro, vinculado ao Programa de Pós Graduação em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro — PPGAU FAU UFRJ. Além disso, foi preciso incluir outra colaboração para cobrir a especificidade da dinâmica espacial da cidade em estudo. Dessa forma, foram utilizados dois conceitos elaborados pelo geógrafo Milton Santos (10). O primeiro é 1. A tecnosfera, “mundo dos objetos”, que “frequentemente traduz interesses distantes; desde, porém, que se instala, substituindo o meio natural ou o meio técnico que a precedeu, constitui um dado local, aderindo ao lugar como uma prótese”. E o segundo é 2. A psicosfera, a “esfera da ação”, que constitui o “reino das ideias, crenças, paixões e lugar da produção de um sentido, também faz parte desse meio ambiente, desse entorno da vida, fornecendo regras à racionalidade ou estimulando o imaginário”.
São Gonçalo é um município de sucessivas próteses pelo progresso, destacadamente a BR-101, cujo traçado modificou substancialmente seu caráter litorâneo. Com a rodovia, a cidade consolidou um processo de desenvolvimento apesar do mar, com centralidades interiorizadas no município e concentração de atividades industriais na orla. Isto a difere dos processos de desenvolvimento de Niterói e da capital, por exemplo. Essa mesma rodovia liga a capital do estado à Região dos Lagos onde se concentram os endereços de segunda residência de veraneio. Porém, no caminho, promoveu sucessivos aterros na cidade e, assim, sua condição litorânea tornou-se uma variável quase exclusivamente geográfica. Justo por isso, e pela observação da distribuição sócio espacial da população fluminense na região metropolitana do Rio, é que se faz necessário situar essa pesquisa no campo da ecologia política. Entende-se assim pois, concordando com Joan M. Alier (11), estudioso desse campo, “o enfrentamento entre o crescimento econômico, a iniquidade e a degradação ambiental deve ser analisado nos marcos das relações de poder”.
O traçado da BR-101 é uma imposição de Estado e constitui o ponto de mudança de difícil reversibilidade do suporte físico da orla de São Gonçalo, recorte temporal do trabalho (1984). Salvaguardar os ecossistemas costeiros é uma prerrogativa constitucional. No entanto, apesar das amplas garantias legais, não é benefício para todos e, certamente, não se verifica na cidade em estudo. Some-se a essa realidade a obscena violência empreendida pelo estado fluminense não estão disponíveis aos locais viver, ou bem viver, à beira ou nas cercanias do mar. Diante dos preceitos e compromissos legais assumidos pelo Estado em seus diferentes estratos restam questionamentos que apontam para contradições que precisam ser estudadas. Como lidar com os municípios costeiros que tiveram a feição de suas orlas radicalmente modificadas? E, uma vez consolidadas, como lidar com essas modificações? Como reparar os danos gerados pelos conflitos ecológicos distributivos?
Objeto em estudo: São Gonçalo, um município costeiro fluminense
O Rio de Janeiro abriga 33 cidades cobertas pelo Plano Nacional de Gestão Costeira II. Sua costa ocupa, total ou parcialmente, quatro das oito regiões de governo com características distintas e variados graus de desenvolvimento econômico costeiro. Nela, vivem quase 87% dos fluminenses, cuja população projetada para 2019 (12) é de 17.264.943 pessoas. Toda a área do estado está contida na Mata Atlântica, bioma atravessado pela rodovia BR-101 que margeia o litoral brasileiro em toda a sua extensão, o que torna possível pensá-la como rodovia transatlântica. Dos 33 municípios costeiros, dezesseis são atravessados pela rodovia e quatorze têm planos de gestão integrada elaborados, o que cobre integralmente as regiões das Baixadas Litorâneas e da Costa Verde.
Não por acaso, essas regiões contêm, integral ou parcialmente, as Regiões Turísticas (13) do Estado com o maior número de municípios categoria “A”, em uma escala até “E”, onde “A” representa maior potencial turístico. Entre as regiões de governo interligadas pela BR-101 interessam ao objetivo do trabalho a Metropolitana, porque contém o objeto da pesquisa, e as Baixadas Litorâneas, porque, junto da Costa Verde, contêm as áreas que apresentam o maior número de “domicílios permanentes de uso ocasional” — categoria definida e recenseada pelo IBGE (14). A BR-101 é o principal meio de deslocamento entre elas e seu traçado implica impactos morfológicos amplos nos municípios que ocupam as demais áreas entre.
O município de São Gonçalo está inserido na Região Hidrográfica da Baía de Guanabara, que ainda não teve o seu Zoneamento Ecológico Econômico Costeiro elaborado. A atividade econômica industrial predominante na costa fluminense está associada à cadeia petroquímica, cujo modelo de desenvolvimento implica em conflitos com as unidades de conservação e áreas de proteção. Esses conflitos se repetem em muitas porções da costa e são essas as informações que é preciso guardar ao pensar sobre o município estudado como parte de um processo de desenvolvimento mais amplo. Ou seja, a dinâmica entre a infraestrutura empregada ao desenvolvimento das atividades e o patrimônio ambiental, as riquezas e custos desse processo oriundos e/ ou decorrentes, sua distribuição e seus rebatimentos sócio espaciais, “tecnosfera” e “psicosfera”.
São Gonçalo é a segunda cidade mais populosa do estado do Rio de Janeiro com 1.091.737 habitantes (15). Com densidade média de 4035,9 habitantes/km², forma, ao lado de Niterói, ao Sul, e de Itaboraí, a Norte, uma mancha urbana contínua ao longo da BR-101 e da RJ-104 no leste fluminense. Os outros limites do município são a divisa com Maricá, a Leste, e a lâmina d’água da Baía de Guanabara, a Oeste. A cidade apresenta IDH 0,739 e índice de Gini de 0,43, mas o PIB per capita da cidade (R$ 17.167,60) (16) é dos menores entre os municípios costeiros, especialmente quando comparado àqueles que têm receitas relacionadas aos royalties da exploração do petróleo como Maricá, com relação quase dez vezes maior (R$ 171.003,42) (17).
Do período anterior a abertura da BR-101, importa saber que o município era essencialmente agrícola até 1930, quando passou por um processo de industrialização e subsequente estagnação e desmobilização da atividade industrial (18). No decurso de uma década, entre 1974 e 1984 (início do recorte temporal do trabalho), a ponte conectou o Rio a Niterói e o tráfego na Rodovia Niterói-Manilha foi aberto. Ambos são trechos da BR-101. Durante a construção da rodovia, movimentos sociais lutaram pela configuração espacial de acessos, inicialmente inexistentes, e contra a remoção dos assentamentos (19). Enquanto decorria o desmonte da rede ferroviária no leste fluminense, a rodovia transformou-se em importante meio de deslocamento do município e consolidou-se como vetor de crescimento urbano. Já na década de 2000, o leste fluminense foi contemplado com o projeto do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro — Comperj em Itaboraí. Embora o projeto não tenha se concretizado, foi recentemente retomado em menor escala e sob a alcunha de Polo GasLub. Ainda assim, o processo deixou próteses e ampliou riscos ambientais em São Gonçalo que faz parte da cadeia logística do projeto.
Sobre os planos urbanos vigentes no município é importante observar que a cidade está na segunda edição de seu plano diretor (2009 e 2018). Apesar disso, as demais exigências legais do Estatuto da Cidade de competência do município não haviam cumpridas até o fechamento da pesquisa. É o caso do plano diretor de transporte urbano e do plano de rotas acessíveis. Em nível estadual, o Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Pedui — Região Metropolitana do Rio de Janeiro) foi publicado em 2018 e o órgão de governança interfederativa só se constituiu em 2019. Da leitura das ações propositivas do Pedui — Região Metropolitana do Rio de Janeiro (20) específicas para o município destacam-se seis pontos que abordam a orla do município. Contudo, a maior parte dessas ações propositivas prioriza porções não modificadas pela BR-101, observação fundamental para a diferenciação entre as unidades de paisagem da orla do município como se verá logo adiante. Ainda a nível estadual, outro plano que inclui o município de São Gonçalo é o Plano Diretor de Transporte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro — PDTU — Região Metropolitana do Rio de Janeiro, de 2014. Nele, estão previstos a execução da Linha 03 do Metrô e a ligação aquaviária entre com a capital. Nenhum dos cenários contidos no plano e que beneficiam a cidade foi concretizado.
Resultados: a orla de São Gonçalo
Delimitação espacial
A delimitação da orla de São Gonçalo foi realizada com base em dois documentos e com o auxílio de identificação visual sobre ortofoto. A primeira fonte documental foi obtida na SPU-RJ que dispunha da demarcação parcial do Linha do Preamar Médio referente ao loteamento da Fazenda da Boa Vista e trechos do distrito de Neves. As partes faltantes foram complementadas com o “Mapa em observância ao decreto-lei nacional número 311, de 2 de março de 1938”, obtida no Arquivo Nacional, e com a constatação visual do limite da vegetação do bioma nas imediações dos bairros Boaçu, Itaoca e Palmeiras. A partir do Linha do Preamar Médio delimitou-se uma faixa de cinquenta metros em direção ao continente e, fora dos limites obtidos por via documental, considerou-se apenas o limite do ecossistema. Em direção ao mar levou-se em consideração a isóbata 10 obtida em consulta a carta náutica n. 1501 da Baía de Guanabara.
Subdivisão e tipo genérico dos trechos da orla
A orla de São Gonçalo foi dividida em cinco unidades de paisagem — UP que são estabelecidas pela homogeneidade de uma determinada estrutura com base em elementos básicos da paisagem (suporte físico, drenagem e demais corpos d’água e cobertura vegetal) e estruturas de cobertura (matrizes, corredores e fragmentos), além da avaliação da malha urbana e do estágio de urbanização (21). Em seguida, foi realizada a tipificação dos trechos subdivididos obedecendo a duas tipologias (22): 1. Uma diz respeito à forma, à posição e às características físicas, e a outra 2. Está relacionada aos níveis de ocupação, densidade populacional e aspectos socioeconômicos. Com isso, observa-se que a orla de São Gonçalo está abrigada na Baía de Guanabara, protegida da incidência direta de ondas, e vê-se, também, que na maior parte dos trechos que a compõem sua urbanização é consolidada com médio a alto adensamento de construções e população. Esses aspectos constituem uma paisagem antropizada com multiplicidade de usos e alto potencial de poluição (sanitária, estética e visual). Os demais trechos são de interesse especial com ocorrência de áreas militares no distrito de Neves, instalações portuárias concentradas no bairro Gradim e uma unidade de conservação, a Área de Proteção Ambiental de Guapimirim, que ocupa, além do bairro Itaoca e Palmeiras, em São Gonçalo, trechos dos municípios de Itaboraí, Guapimirim e Magé.
A subdivisão e a tipificação da orla ficam definidas, então, da seguinte forma:
- Ilha das Flores (UP01) com área de 2,15 km², 4,6km de frente marítima e tipo genérico de interesse especial associado ao uso militar e industrial em área de urbanização consolidada;
- Ilha do Tavares (UP02) com área de 0,76 km², 3,6km de frente marítima e tipo genérico de interesse especial associado ao uso industrial-portuário em área de urbanização consolidada;
- Boa Vista I (UP03) com área de 0,88km², 1,1km de frente marítima e tipo genérico abrigado com urbanização consolidada;
- Boa Vista II (UP04) com área de 0,88km², 1,6km de frente marítima e tipo genérico abrigado com urbanização consolidada;
- Itaoca (UP05) com área de 27,78km² em que 19,16 km² desse total estão inseridos nos limites da Área de Proteção Ambiental — APA de Guapimirim, 11,7km de frente marítima e tipo genérico de interesse especial associado a proteção ambiental em área em processo de urbanização.
Diagnósticos complementares
Estrutura de planejamento
A examinar o Plano Diretor (2018) a pesquisa observou que o município está estruturado em macrozonas, zonas e que prevê a criação de áreas especiais. Do macrozoneamento vê-se que a orla marítima da cidade ocupa área inserida na macrozona de desenvolvimento urbano sustentável e de preservação ambiental (23). Ao comparar a interface das extremidades da cidade com os municípios vizinhos observa-se que no limite com Itaboraí a orla de São Gonçalo faceia a macrozona especial, ao passo que, na face de vizinhança sul, na divisa com o município de Niterói, coincide com a macrozona do ambiente urbano. Dentre os três municípios vizinhos banhados pela Baía de Guanabara, somente Niterói tem normativas para o espelho d’água fluminense em seu plano diretor, tanto no macrozoneamento quanto no zoneamento. São Gonçalo e Itaboraí dividem, em seus limites inseridos na orla, a extensão da Unidade de Conservação Federal da APA de Guapimirim onde prevalecem os indicativos de seu plano de manejo. Já Niterói apresenta macrozoneamento compatível na contiguidade da orla em sua porção mais ao sul, isto é, sem conflitos de ordem conceitual na elaboração do planejamento no limite entre os municípios.
Sobre mobilidade urbana e tendências de ocupação
A oferta de transporte público no município de São Gonçalo está, atualmente, restrita ao modal rodoviário, sendo a Rodovia Niterói — Manilha, trecho da rodovia federal BR-101, A principal via que corta o município. Ela obstrui o acesso direto ao mar em diversos pontos da frente marítima e sua construção requiriu diversos aterros. Os dados levantados por essa pesquisa apontam um total aproximado de 2,37km² de áreas aterradas, alteração significativa das feições da orla. Entre os projetos não consolidados há a Linha 03 do Metrô e a ligação hidroviária Gradim–Praça XV previstas no PDTU — Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Estava prevista, ainda, a construção da terceira pista da Rodovia Niterói-Manilha ao longo de 23km entre o Barreto, em Niterói, e Manilha, em Itaboraí para dar lugar a uma faixa adicional em cada sentido sobre o canteiro central da via. Essa operação foi interrompida devido ao pedido de relicitação da concessão feito pela concessionária Autopista Fluminense que administra o trecho da rodovia federal (BR-101 RJ/Norte, de Niterói a Campos dos Goytacazes). Ao observar a estrutura de mobilidade (existente e projetada) e, excluindo-se as áreas contidas em unidades de conservação ambiental é possível afirmar que a porção edificável da orla está ou estará, em um cenário futuro tendencial, irrigada pela infraestrutura de mobilidade com maior capacidade de carregamento.
Diagnóstico paisagístico da orla
Com o conjunto dos resultados mencionados acima, foi possível executar o diagnóstico paisagístico fazendo uso de uma base gráfica. Nessa avaliação foram incluídos os elementos de cobertura (matrizes, corredores e fragmentos) a partir de 1. Sua estrutura e 2. Sua malha; 3. As formas de acesso ao mar, 4. Os estágios de urbanização, 5. A configuração paisagística (rústica, bairro-jardim ou orla urbana comum) (24), bem como 6. A forma da orla.
O resultado da aplicação do modelo-diagnóstico para as cinco unidades de paisagem indicou:
- Ilha das Flores (UP01): estrutura em matriz urbana com malha industrial, acesso ao mar controlado e em área militar, estágio de urbanização horizontal, configuração paisagística do trecho comum e forma da orla linear;
- Ilha dos Tavares (UP02): estrutura urbana em corredor com malha portuária, acesso ao mar restrito, possível por porto e píer, estágio de urbanização horizontal, configuração paisagística do trecho comum e forma da orla em arco;
- Fazenda Boa Vista I (UP03): estrutura em matriz urbana com malha convencional, sem acesso ao mar, estágio de urbanização horizontal, configuração paisagística do trecho comum e forma da orla em arco;
- Fazenda Boa Vista II (UP04): estrutura em matriz urbana com malha convencional, acesso ao mar direto por rua beira-mar, estágio de urbanização horizontal, configuração paisagística do trecho como e forma da orla linear;
- Ilha da Itaoca (UP05): estrutura em matriz vegetal com malha urbana convencional, acesso direto ao mar, estágio de urbanização horizontal, configuração paisagística do trecho comum e forma da orla em arco.
Principais conflitos de ocupação territorial: ocupação (em seus diferentes graus de tipicidade) x oferta de espaços livres
Todas as unidades de paisagem da orla de São Gonçalo apresentam equívocos na ocupação do solo. Constata-se, visualmente, a ocupação na beira de rios e nas proximidades da BR-101 em aglomerações subnormais ou ocupações inadequadas sujeitas a inundações. Isso representa consequências socioambientais, tanto para o patrimônio e integridade física das pessoas quanto para a dinâmica hídrica dos ecossistemas locais.
Importa notar, também, que novas edificações têm se constituído em condomínios. Os parâmetros urbanísticos vigentes na cidade não impedem o isolamento das edificações criando ilhas de moradores sem inserção adequada dos novos empreendimentos em seus respectivos contextos. Tome-se como exemplo a Unidade de Paisagem 1, cuja estrutura morfológica é predominantemente industrial, onde há grandes lotes passíveis de parcelamento. Com a proximidade dos grandes centros da metrópole há uma tendência (já em curso) de verticalização moderada (até cinco pavimentos) através dos grandes condomínios fechados, enquadrados nos programas do Minha Casa Minha Vida em mais de uma categoria. O modelo imobiliário desses empreendimentos inviabiliza alternativas que busquem evidenciar os potenciais paisagísticos e o resgate do espaço público associados aos valores do litoral em São Gonçalo.
No passivo industrial da Cia. Siderúrgica da Guanabara — Cosigua, bairro Neves (UP1), o município admitiu que a mitigação dos empreendimentos resultantes do desmembramento do lote industrial ocorresse dentro dos condomínios, isto é, restrito aos condôminos (25). Tende-se a ocupar as áreas vegetadas remanescentes e os grandes lotes industriais sem contrapartida pública na oferta de espaços livres como praças e parques, escassos na Orla (0,84ha) e sub bacias (4,34ha) que a contém. A UP1 está dentro da área de influência direta (raio de 500m) de ao menos duas estações de metrô projetadas (Neves e Vila Lage) e a estação projetada das barcas está dentro da UP2; todas as unidades são cortadas ou margeadas pela BR-101. Na ausência de contrapartidas e na leniência na aplicação dos instrumentos de planejamento como o Estudo de Impacto de Vizinhança, por exemplo, o município segue no mesmo caminho desastroso e destrutivo de desenvolvimento urbano que produziu o tecido atual. Caminha-se para uma relação espaço livre público/número de habitantes (m²/habitante) que tende a zero, deslocando a demanda de espaços públicos de lazer ao ar livre para fora do município.
Há, ainda, um movimento de ocupação inadequada sobre as áreas da UP5 (Itaoca), onde é possível registrar o maior grau de ecossistemas íntegros, notadamente o mangue. Essa ocupação é reforçada pela abertura e ampliação da capacidade de carga de rodovias, caso da BR-101 e de elementos da sua rede como a via de acesso ao cais do Comperj/Polo GasLub, dela derivada.
Principais conflitos de ordem social: usos, atividades e infraestrutura x obstrução do acesso ao mar
O acesso ao mar nas unidades é restrito nas unidades de paisagem UP1 — UP4 onde o tecido urbano apresenta maior grau de processamento. Na UP1 (Ilha das Flores), as áreas em que há possibilidade de acesso a água estão inseridas dentro da Zona Estratégica, trechos de uso das forças armadas. Nessas áreas militares o acesso civil é restrito e controlado. Elas são abertas apenas para visitação guiada de civis onde é vedada a permanência não acompanhada. Os demais trechos da unidade estão permanentemente obstruídos pela rodovia Niterói-Manilha. Estes últimos apresentam raros pontos com faixas de areia exíguas e residuais dentro da faixa de domínio da rodovia.
Na UP2 (Ilha do Tavares) o acesso público ao mar acontece em suas extremidades onde há comunidades e atividades pesqueiras. Entre as extremidades o acesso ao mar é indireto e privado. Nesses locais estão localizados estaleiros e galpões diversos de uso comercial e industrial de médio e grande porte. Essa composição entre os usos nas extremidades e nas imediações configura um conflito escalar entre as atividades (navios e pequenas embarcações, veículos de grande porte e de passeio, galpões e residências, cais e diques).
As unidades três e quatro estão localizadas na porção em que houve o aterro mais significativo para a construção da BR-101. Na UP3 (Boa Vista I) não há acesso direto ao mar, integralmente obstruído pela rodovia federal. Já na UP4 (Boa Vista II) há acesso direto pela Praia das Pedrinhas. Apesar disso, suas áreas livres estão sub estruturadas e o piscinão de São Gonçalo — grande espaço público de lazer da cidade — está desativado. Na UP5 há acesso direto e indireto ao mar, por meio de costões, praias e áreas florestadas. No entanto, diversos pontos da unidade estão sob o controle do tráfico tornando-o um território de violência. Foi nessa unidade, nas imediações da Praia da Luz, bairro Itaoca, de atributos e potencial paisagísticos inequívocos, onde o menino negro João Pedro Matos Pinto, de apenas 14 anos, foi brutalmente assassinado pelo Estado no dia 18 de maio de 2020.
Classificação dos trechos da orla
A leitura comparada dos dados apresentados pelo diagnóstico permite classificar os trechos da orla e, assim, dentro dos objetivos do trabalho final de graduação a que essa pesquisa serve, definir o tipo de ação necessária para alcançar os cenários desejados. O Projeto Orla propõe uma classificação em escala alfabética, de A à C, em função do grau de processamento urbano onde A representa “baixíssima ocupação, com paisagens com alto grau de originalidade e baixo potencial de poluição” (26). Com exceção da UP5, que contém trechos inseridos na unidade de conservação federal APA de Guapimirim, os demais trechos da frente marítima apresentam alto grau de processamento urbano e requerem mais ações corretivas do que ações preventivas. Diante do quadro atual da orla, medidas corretivas requereriam, em muitos casos, mudanças substanciais e improváveis dado o grau de consolidação urbana da orla de São Gonçalo. Assim, a pesquisa ajustou a interpretação do termo ações corretivas para ações corretivo-mitigadoras a serem levadas em conta na formulação de um projeto-resposta. As unidades classificadas com a categoria C requerem mais ações corretivo-mitigadoras e a unidade de paisagem 5, a única classificada com a categoria B, requer mais ações preventivas.
Considerações finais: por uma outra condição litorânea
Nem todos os conflitos puderam ser atribuídos à abertura da BR-101 no município, mas é possível afirmar que 1. É uma estrutura que pautou o desenvolvimento da cidade a partir da década de 1980 e privou o município do espaço livre máximo que são as praias e equipamentos públicos a ela adjacentes. E 2. Sua abertura é responsável pela perda de um grande patrimônio ambiental que não presta serviços somente ao município, mas ao ecossistema em que ele está inserido. Ficou claro que a dinâmica entre realidade local e infraestrutura no meio ocorre em maior ou menor grau ao longo do estado, mas o desenvolvimento das áreas metropolitanas ocorre de maneira desigual de acordo com a capacidade de resposta das populações e dos municípios. Foi possível constatar que os conflitos de ordem social têm claro rebatimento espacial e produzem áreas onde há ou não a disponibilidade de equipamentos e o processo que permitem que a condição litorânea seja experimentada de maneira plena, no melhor interesse público. Em suma, o quadro identificado revelou dois vetores: àquele das mudanças do meio físico e àquele do controle do direito de ir e vir pela violência e disputas armadas, cuja resultante é a impossibilidade da realização plena das relações sociais, valores culturais e desenvolvimento associados ao ambiente costeiro que, ainda que gratuito, na base da vida cotidiana, está reservada a uns poucos privilegiados nas orlas atlânticas ou tornam-se o objeto de experimentação esporádica em lugar da vivência diária da qual não se deveria abrir mão.
Nesse sentido, a pesquisa apresentada teve como projeto-resposta-possível o “Plano Orla de São Gonçalo — Posg”, subproduto final do trabalho de conclusão em arquitetura, que será objeto de discussão em um texto dedicado a falar sobre questões de projeto por uma outra condição litorânea. Espera-se que a pesquisa do trabalho seja útil para a discussão de orlas marítimas em municípios com alto grau de processamento urbano que apresentam conflitos de naturezas similares e em especial àqueles que não são prioritários ao mainstream. Espera-se também que a pesquisa sirva de caso de aplicação do Projeto Orla para áreas com essa mesma realidade. Ao final do trabalho ficou claro também que a pesquisa é, na verdade, o ponto de partida de um estudo mais amplo sobre a estruturação da paisagem em áreas atravessadas por próteses supra municipais, acometidas por crimes ambientais onde houve quebra de nexos locais.
notas
1
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, Congresso Nacional, 1922 <https://bit.ly/3o1nyZV>.
2
MACEDO, Silvio Soares. Urbanização, litoral e ações paisagísticas à beira d’água. In TÂNGARI, Vera Regina (org.). Águas urbanas: uma contribuição para regeneração ambiental como campo disciplinar integrado. Rio de Janeiro, PPGAU FAU UFRJ, 2007, p. 64.
3
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE; MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. Projeto orla: Fundamentos para gestão integrada. Brasília, Ministério do Meio Ambiente, 2006.
4
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Op. cit.
5
MACEDO, Silvio Soares. Op. cit.
6
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE; MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. Op. cit.
7
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Plano Nacional de Gestão Costeira (Plano Nacional de Gestão Costeira II). Brasília, Ministério do Meio Ambiente, 1997.
8
Idem, ibidem.
9
MENDONÇA, Bruno Ragi Eis; TÂNGARI, Vera Regina; VASCONCELLOS, Virgínia. Espaços livres e arborização: uma análise do subúrbio ferroviário do Rio de Janeiro. Paisagem e Ambiente, São Paulo, n. 44, nov. 2019, p. 12–14 <https://bit.ly/3mjtTzC>.
10
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ª edição. São Paulo, Edusp, 2017, p. 253–256.
11
ALIER, Joan M. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. 2ª edição. São Paulo, Contexto, 2018, p. 356.
12
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2019. Rio de Janeiro, IBGE, 2010.
13
MINISTÉRIO DO TURISMO. Mapa do Turismo Brasileiro 2019-2021. Brasília, Programa de Regionalização do Turismo <https://bit.ly/3MrjIDA>.
14
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010.
15
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2020. Rio de Janeiro, IBGE, 2010.
16
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2018. Rio de Janeiro, IBGE, 2018 <https://bit.ly/43uSTEX>.
17
Idem, ibidem.
18
ARAUJO, Victor Leonardo de; MELO, Hildete Pereira de. O processo de esvaziamento industrial em São Gonçalo no século 20: auge e declínio da “Manchester Fluminense”. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, n. 4, Rio de Janeiro, mai. 2014, p. 65-87.
19
BIENENSTEIN, Regina; FREIRE, Eloisa Helena Barcelos; BIENENSTEIN, Glauco. A luta da Favela do Gato contra a remoção. In BIENENSTEIN, Glauco; BIENENSTEIN, Regina; SOUSA, Daniel Mendes Mesquita de (org.). Universidade e luta pela moradia. Rio de Janeiro, Consequência Editora, 2017, p. 37-68.
20
Produto n. 18 — Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Tomo II. Rio de Janeiro, 2018 <https://bit.ly/43cxoIR>.
21
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE; MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. Projeto orla: Fundamentos para gestão integrada (op. cit.).
22
Idem, ibidem.
23
Lei Complementar Nº 031/2018. São Gonçalo, Rio de Janeiro, 2018.
24
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE; MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. Projeto orla: Fundamentos para gestão integrada (op. cit.).
25
Ver RIV: Empreendimento — Rua Barão de São Gonçalo, Lote 2f, processo n. 36.623/2018, fev. 2019, item 3.4, p. 14 <https://bit.ly/40O7BF4>.
26
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE; MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. Projeto orla: Fundamentos para gestão integrada (op. cit.).
sobre o autor
Felipe Sacramento Xavier é arquiteto e urbanista (FAU UFRJ, 2020) e membro do grupo de pesquisa Sistema de Espaços Livres do Rio de Janeiro — SEL RJ (Proarq FAU UFRJ).